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A transferência de habilidades do saber-fazer histórico

Cenário criado por inteligência artificial a partir do seguinte comando: “Reunião do conselho de revolucionários, roupas de trabalho sujas, luz vermelha fraca, iluminação cinematográfica, iluminação fluorescente, difusão, fotorrealista, 8k, estilo dieselpunk” | Imagem: IA/Midjourney [council meeting of revolutionaries, dirty work clothes, dim red light, cinematic lighting, flourescent lighting, diffusion, photorealistic, 8k, dieselpunk style].

 

Até os anos 80 do século passado, as habilidades do saber-fazer História estavam em grande parte sob o domínio e a responsabilidade do humano professor que as publicizava e exigia.

Assim, transferir notações de leitura de fontes e bibliografia (fichar), organizar fichas em ordem cronológica, topográfica, temática e alfabética, identificar palavras e expressões-chave em textos, construir tabelas e gráficos manualmente, datilografar textos, recortar, colar e (re)datilografar textos fazia parte do rol de fazeres necessários.

O domínio de determinada habilidade era exigido por alguns ciosos mestres que sonhavam em formar eruditos em domínios (então) da História. Alunos eram destinados à especialização em Paleografia, Diplomática, Arquivística e Biblioteconomia ou dominariam as artes de classificar e extrair informações de objetos tridimensionais classicamente estudados pela Numismática, Heráldica, Arqueologia e Museologia.

Outras habilidades exigidas na pesquisa, escrita e ensino estavam fora de alcance dos profissionais da história. Assim, habitualmente, eram terceirizadas as funções de datilógrafo, cartógrafo, fotógrafo, estatístico e ilustrador.

Da década de 90 em diante, com massificação do uso de computadores pessoais e a emergência da internet 1.0, algumas dessas habilidades historiadoras foram literalmente transferidas para as máquinas. Os processadores eletrônicos de textos tornaram possíveis as ações de excluir, copiar, duplicar e corrigir textos com facilidade e rapidez.

Depois vieram as planilhas inteligentes e os bancos de dados. Com programas como o software Excel, os cálculos também foram concentrados em uma só pessoa e o papel e a calculadora manual perderam em grande parte a sua função.

Com os softwares Access e AskSan, o trabalho de achar termos e expressões, codificar, contar e fazer cruzamentos também se popularizou (diferentemente dos usos de programas específicos para os Cientistas Sociais). O fichamento em papel e na posição vertical, transformou-se em bites expressos em linhas e colunas (o “registro” e o “campo” que constituem as planilhas).

Logo em seguida, na primeira década do nosso século, as buscas por livros em bases de dados das bibliotecas tornaram obsoletos os volumosos fichários (por assunto, lugar, autor e gênero textual).

Com a invenção do PDF e dos formatos EPUB, a forma de buscar e de registrar observações nos livros se modificou radicalmente. A estante de livros cabia nos computadores pessoais, um exemplar de livro pôde ser multiplicado e compartilhado a distância e as notas de leitura foram transformadas, automaticamente, em fichamentos eletrônicos.

Com a internet 2.0, a mais recente geração de smartphones e o armazenamento em nuvem todas essas facilidades ficaram à disposição nos mais diferentes ambientes. O arquivo, a biblioteca, o museu, o centro de documentação e todas as fontes processadas cabem, literalmente, no bolso de cada um.

Além disso, a habilidade registrar posições espaciais por GPS (Sistema de Posicionamento Global), perceber e reter sons, imagens fixas e imagens em movimento deixou de ser ação terceirizada para incorporar-se às capacidades requeridas ao profissional da História.

No encontro de ontem, exploramos o processo de descarga mental de habilidades macro do trabalho do historiador profissional entre as duas últimas décadas do século XX e as duas primeiras décadas do século XXI. Por meio de breves exemplos, descrevemos como as habilidades de problematizar a realidade, investigar, escrever e comunicar os resultados de pesquisa foram transferidas da mente e do corpo dos profissionais da história para uma combinação de softwares e hardwares que receberam o nome de Inteligência Artificial (AI).

Hoje, vamos conhecer um pouco dos mecanismos que fizeram com que o Chat GPT (a mais discutida IA do momento) se transformasse em um potencial auxiliar do profissional de História em todas as etapas do seu trabalho. Isso inclui uma nova rodada de exemplos sobre descargas mentais sutis que os profissionais da História têm efetuado nos últimos 20 anos.

Também vamos explorar as razões pelas quais a transferência dessas operações às máquinas pode tornar os resultados mais precisos, apesar das “alucinações” esporádicas apresentadas pelo Chat GPT.


Como opera o Chat GPT

Como indica a palavra Chat, o nosso GPT é uma ferramenta de conversação (de bate-papo). Ele responde aos comandos dos humanos, fornecendo respostas textuais, traduzindo textos e lendo imagens. Tudo isso ele faz dentro de uma atmosfera mágica para qualquer iniciante, já que responde aos nossos comandos como um ser humano que demonstra familiaridade em vários domínios, inclusive os da História.

O mistério é revelado no próprio nome. GPT são as iniciais de “Generative Pre-trained Transformer” (transformador gerador pré-treinado). O “Transformer” é a tecnologia que possibilita mapear contextos de ocorrência de pedaços de textos por meio do exame das dependências e da importância relativa (auto-atenção) entre uma palavra e os demais termos de uma frase, como também entre frases, possibilitando a previsão da próxima palavra ou frase (El Amri, 2023, p.8-9).

O exemplo que se segue demonstra apenas algumas das tarefas do “Transformer”, mas oferece aos leigos (nós) uma ideia de como a tecnologia opera para aprender e oferecer uma resposta preditiva. Ao se deparar com frase “O método histórico é constituído por operações de problematização, heurística, crítica, interpretação e composição”, capturada em uma página de manual de Introdução à História, a tecnologia segmenta as palavras (o/método/é/constituído/…), numera, codifica cada palavra e tipifica a relação que cada uma mantém com as demais como merecedora de maior ou de menor atenção.

Assim, com base na comunicação científica dos seus inventores (Vaswani, 2017) e nas exemplificações do próprio Chat GTP, é possível inferir que entre as relações mais relevantes da referida frase estão os substantivos “método histórico” e “operações”. Em contrapartida, entre as menos relevantes estão o artigo “o” . A máquina presta atenção na primeira palavra porque ela dá a entender que o “método histórico” é constituído por um conjunto de “operações”. Pelo mesmo princípio, a máquina presta menos atenção à palavra “o” porque ela importa menos para a compreensão de que o método histórico é constituído por operações.[i]

Passemos à segunda letra inicial. O “G” de “Generative” significa a capacidade de o Chat gerar uma nova frase a partir de “continuações plausíveis” sempre que solicitado. Para facilitar o entendimento da mágica e do desdobramento da sigla, tentem escrever qualquer texto no Gmail, no Google ou no Watts app. Logo vocês perceberão trabalho similar de recuperar padrões semânticos e sintáticos de escrita, de previsão e de complemento de sequências de texto executados pela IA. (Giansiracusa, 2021, p.24).

Da mesma forma, quando questionamos ao GTP: “O que significa método histórico?”, o Chat utiliza o mapeamento produzido pelas ações da tecnologia “Transformer” (como descrito acima) e apresenta a mais provável sequência de texto. Segue uma possibilidade de resposta: “método histórico é um conjunto de princípios e técnicas utilizadas por historiadores e pesquisadores para estudar e analisar eventos, ideias e documentos do passado. Ele busca estabelecer uma compreensão precisa e objetiva dos acontecimentos históricos e fornecer uma interpretação baseada em evidências e fontes confiáveis.”

Para ampliar a sua convicção sobre o modo de gerar a resposta, pergunte ao Chat quais as duas palavras mais prováveis de seguirem a frase: “O método histórico é”. Muito provavelmente, ele responderá que os termos são “uma” e “baseado”.

Se vocês incorporarem as duas respostas (“uma” e “baseado”) e replicarem a questão, ele responderá e justificará a resposta: “Se estamos usando uma versão do GPT treinada em um grande corpus de textos em português, as duas palavras mais prováveis de seguirem as frases ‘O método histórico é uma’ e ‘O método histórico é baseado’ são: 1. ‘ferramenta’ – já que ‘O método histórico é uma ferramenta fundamental para entender o passado’; 2. ‘em’ – já que ‘O método histórico é baseado em evidências documentais e fontes primárias’.”

Se, por fim, perguntarem sobre as 30 palavras mais prováveis de seguirem à frase “O método histórico é uma”, ele responderá: “ferramenta”, “área”, “disciplina”, “ciência”, “maneira”, “abordagem”, “metodologia”, “teoria”, “das”, “das mais”, “das principais”, “das áreas”, “das disciplinas”, “das ciências”, “forma”, “das melhores”, “das mais importantes”, “das mais utilizadas”, “das mais eficazes”, “das mais úteis”, “das mais populares”, “das mais avançadas”, “das mais relevantes”, “das mais conhecidas”, “das mais valorizadas”, “das mais complexas”, “das mais completas”, “das mais abrangentes”, “das mais antigas” e “das mais modernas”.

A última letra da sigla, o “P”, expressa a qualidade e a proveniência dessa resposta plausível. Quando o Chat responde que “A expressão ‘método histórico’ refere-se a um conjunto de técnicas e princípios empregados pelos historiadores para analisar, avaliar e interpretar informações do passado, buscando compreender a evolução de sociedades, culturas e eventos históricos”, ele emprega padrões inferidos durante o exame de milhões de textos, entre os quais estão livros, capítulos, artigos, teses e dissertações que exploram método histórico. Esse treinamento captura estruturas sintáticas e semânticas plausíveis. Isso é diferente de memorizar, recuperar e gerar trechos integrais de um ou outro texto em particular. É diferente de plágio e é semelhante à criação (ou produção autoral).


A transferência de habilidades com o Chat GPT

Cenário criado por inteligência artificial a partir do seguinte comando: “Hiena cercada por animais enquanto conta com entusiasmo as histórias do livro antigo. Ao fundo, vê-se o urubu pesquisando sozinho a história, com expressão focada e determinada. Ao seu redor, avista-se a savana africana, com árvores altas e vastos campos abertos” | Imagem: IA/Midjourney [the hyena surrounded by a throng of animals as she enthusiastically tells the stories from the ancient book. In the background, the vulture can be seen researching the story on its own, with a focused and determined expression. All around them, the African savannah can be seen, with tall trees and vast open fields. – (fast)]

Todas as modificações acima foram listadas para justificar uma tese: a cada facilidade oferecida pelas novas tecnologias, uma habilidade humana foi transferida às máquinas. O cérebro gosta e nós somos tomados pelo prazer da descarga mental/corporal. Mais dopamina, como costuma afirmar Margarida Dias.

Se observarmos as mudanças do saber-fazer do profissional da História na duração conjuntural, perceberemos certa regularidade nesse processo. Isso justifica uma tomada de posição menos apocalíptica e mais integradora em relação às tecnologias publicizadas nos últimos três anos, especialmente o Chat GPT.

Essas transferências não nos tornaram menos capazes mental ou corporalmente. Não nos deixaram mais preguiçosos. Pelo contrário, a transferência de habilidades para as máquinas desonerou nossa capacidade perceptiva e reflexiva para o uso em novos e sofisticados problemas (ao menos, idealmente), modificando a oferta de trabalho e reposicionando princípios éticos.

O que ocorre com o Chat GTP é uma radical transferência de habilidades do profissional da História para as máquinas. É radical em termos de qualidade e de extensão.

Em termos de extensão, o Chat GTP e similares abre a a possibilidade de colaboração das máquinas em todas as etapas de produção sobre as quais os profissionais convergem ao tipificá-las como “de História”.

Saber-fazer do profissional de História

 

Comandos para o Chat GPT
Problematização da realidade Sugira três questões de pesquisa sobre a crise da História como reservatório social das verdades sobre o passado.
Elaboração de hipóteses Formule uma hipótese que responda à segunda sugestão.
Revisão a literatura ou assenhorar-se da produção dos pares Liste teses e dissertações que explorem a segunda questão e/ou a hipótese relativa.
Heurística – tipificar potenciais fontes Considerando a hipótese acima, apresente tipologia de fontes que forneça informações sobre a mesma e dê exemplos de cada tipo de fonte.
Heurística – localizar fontes Liste prováveis locais de acesso às fontes que você acaba de citar.
Crítica – externa Informe autor, data tópica, data cronológica, objetivo, hipótese, questões, fontes, declarações centrais.
Interpretação (ou crítica interna) – extração de fatos e evidências Identifique significado de termos e expressões, erros de informação, sinonímias, ambiguidades, contradições, falácias.
Inferência Compare declarações e construa argumentos.
Composição Elabore um plano de redação em estilo formal.
Narração/escrita Conte uma história.
Divulgação científica Transforme esta história em um texto tópico para um público acadêmico.
Divulgação científica Transforme esta história em um texto informal e criativo para um público adulto e leigo.
Reescrita da história Transforme esta história em um texto didático para um público escolar.
Reescrita da história Encontre histórias didáticas sobre o mesmo tema com perspectiva diferente e/ou divergente.
Crítica historiográfica Elabore critérios de classificação e avaliação de perspectivas diferentes e/ou divergentes sobre a mesma história.
Composição com fins escolares Construa uma nova narrativa a partir desta perspectiva, adaptando o final aos fins disciplinares desta escola ou sistema escolar.
Planejamento escolar Elabore um plano de curso e o  desenvolva.
Investigação e prática escolar Elabore uma avaliação diagnóstica sobre crenças epistêmicas dos alunos.
Investigação e prática escolar Classifique e avalie o resultado da avaliação diagnóstica.
Planejamento e prática escolar Reelabore plano de curso e o desenvolva.
Prática escolar Crie atividades e materiais de apoio os alunos em trabalhos com heurística, crítica e interpretação.
Prática escolar Crie atividades e materiais de poio aos alunos em trabalhos de composição e resolução de problemas.
Prática escolar Elabore uma prova com itens de resposta construída e de resposta selecionada, apresentando distratores, gabaritos e rubricas.

Esta lista de tarefas do profissional da História e de comandos (“prompts”) para o Chat GPT pode se estender por várias páginas, a depender do nível de detalhamento e/ou de sofisticação exigido pelo domínio de pesquisa. Pode inclusive ser enriquecido com as tarefas de comunicação mais comuns, como a construção de ensaios, reportagens, posts e cards para as redes sociais e roteiro de vídeo, entre outros gêneros de difusão da sua pesquisa.

Conclusões

Neste minicurso, tentei convencê-los de que as habilidades do saber-fazer história, codificadas nos últimos dois séculos, sofreram rápido processo de transferência, do mundo humano ao mundo das máquinas, sobretudo nas últimas duas décadas do século passado.

Com a emergência das novas Inteligências Artificiais, impulsionadas nos anos da Covid 19, as ferramentas de construção de texto por meio de conversação ganharam o gosto do público não acadêmico, sob estímulo de espetacularização provocada pela grande mídia. Novamente, o conflito entre integrados e apocalípticos (ao modo de Umberto Eco) se instaurou, espalhando, por exemplo, o temor de que os profissionais de História sejam substituídos por professores-robôs.

Apesar do fatalismo reinante, tentamos demonstrar que a ocorrência apenas amplia o processo de descarga mental e consolida, na prática, a ideia de cérebro estendido.

Por meio de tais categorias, descrevemos o impacto possível (e provável) do Chat GPT em todas as macro tarefas do professor de História nos ensinos básico e superior, reiterando a necessidade de o profissional da área se assenhorar dos benefícios e das limitações dessa IA no extenso leque de habilidades cultivadas nos últimos dois séculos. Elas incluem a problematização da realidade, a investigação, a escrita e a comunicação dos resultados do exame das relações entre passado, presente e futuro.

Referências

ARAYA, Daniel; MARBER, Peter (Ed.). Augmented Education in the global age: Artificial Intelligence and the future of learning and work. New York: Routledge, 2023.

GIANSIRACUSA, Noah. Ow algorithms create and prevent fake news: exploring the impacts of social media, deepfakes, GPT-3, and more. Acton: Apress, 2021.

LEE, Kai-Fu; QIUFAN, Chen. Dois pardais: Processamento de linguagem natural, treinamento autossupervisionado, GPT-3, AGI e consciência, educação com IA. In: Como a Inteligência Artificial vai mudar sua vida nas próximas décadas. Rio de Janeiro: Globo, 2022. p.82-134.

PAUL, Annie Murphy.Extending Biologial Intellignce: the imperative of thinking outside our brains in a world of artificial inteligence. In: ARAYA, Daniel; MARBER, Peter (Ed.). Augmented Education in the global age: Artificial Intelligence and the future of learning and work. New York: Routledge, 2023. p.158-176.

RUSSEL, Stuart. Inteligência artificial a nosso favor: como manter o controle sobre a tecnologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

VASWANI, Ashish et al. Attention is all you need. 31st Conference on Neural Information Processing Systems (NIPS). Long Beach, 2017. Disponível em <https://arxiv.org/pdf/1706.03762.pdf>. Consultado em 10 abr. 2023.


Imagem de alguns dos colegas que participaram deste minicurso


Para citar este texto

FREITAS, Itamar. A transferência de habilidades do saber-fazer histórico. Resenha Crítica. Aracaju/Crato, 13 abr. 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/todas-as-categorias/a-transferencia-de-habilidades-do-saber-fazer/>.

Itamar Freitas

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Itamar Freitas

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