A sociedade do espetáculo | Guy Debord
A imodesta citação “Uma teoria crítica como esta não se altera, pelo menos enquanto não forem destruídas as condições gerais do longo período histórico que ela foi a primeira a definir com precisão” é do próprio Guy Debord em sua ‘Advertência da edição francesa de 1992’, texto que abre a edição brasileira de A sociedade do espetáculo. A teoria proposta por Guy Debord na década de 1960 registrou a ampliação da falsificação do mundo através da mídia e a substituição das vivências diretas dos homens pela condição de espectador, pelo consumo passivo de imagens. O livro, que ganhou adeptos imediatos na militância radical na França de 1968 e reconhecimento tardio nos meios acadêmicos, deixou os rastros principais por onde seguiram autores que refletiram sobre novas configurações institucionais do capitalismo globalizado e hoje se destacam nos debates da teoria social contemporânea.
Guy Debord lidou com a tirania das imagens e as novas formas de alienação através de um marxismo rebelde, muito malcomportado, que fez de O capital um roteiro para se ver televisão e analisar publicidade, propaganda, cinema, informação ou entretenimento. Marxista de lugar nenhum — sem partido ou adesão ideológica às grandes correntes de sua época — ou “doutor em nada” como se autodefinia, Debord foi artífice de um discurso libertário ancorado em uma teoria original que descortinou novos mecanismos de reprodução do capitalismo. Era cabeça da Internacional Situacionista, um grupelho marxista que enfatizava a militância na vida cotidiana e buscava uma associação permanente entre a arte e a vida. “Situação” significava, para eles, “um momento da vida, concreta ou deliberadamente construído pela organização coletiva do ambiente unitário e do livre jogo dos acontecimentos”. Hoje parece moderníssimo ou pós-moderno; na época não era difícil serem os ‘internacionalistas situacionistas’ estigmatizados como delirantes. Pode-se dizer, sem nenhum exagero, que Debord foi um dos pais da teoria do pós-moderno, apesar de suas intenções intelectuais na época terem sido abalar o establishment e perturbar os padrões de mercantilização então existentes. Marcelo Rezende, em uma bem-humorada resenha publicada na Folha de S. Paulo, chamou-o de “Karl Marx da era dos Beatles”.
Para o criador da teoria do espetáculo o destino político-prático de suas idéias era o conselho, a assembléia popular, o soviete. Deve-se porém entender essa associação na sua versão francesa e radical da luta de classes na década de 1960. Guy Debord almejava a regeneração de um laço autêntico no contato entre as pessoas e a ‘politização da vida’, contestação que abarcava revolução do cotidiano, realização dos desejos oprimidos, desimportância dos partidos e sindicatos para esse tipo de política, abolição do trabalho, do dinheiro, do Estado e das mercadorias. E tudo isso valia tanto para as democracias ocidentais quanto para a opressão comunista. Debord gostava dos autonomistas italianos e de greves selvagens que afrontavam poderes burgueses e partidos comunistas tradicionais.
Alain Finkielraut, filósofo francês que foi leitor de Debord já em 1968, destaca a contribuição fundamental de A sociedade do espetáculo, mas vê um tanto de paranóia na idéia de uma conspiração do sistema totalmente delineada, em que o espetáculo aparecesse como recurso fundamental. Há passagens do livro que parecem confirmar as impressões de Finkielraut. Por momentos, Debord se coloca como o isolado absoluto que profere as verdades que ninguém quer ouvir, além de considerar, em sua ‘Advertência’ de 1972, A sociedade do espetáculo o único livro de teoria que animou a revolta de maio de 1968 e fez a crítica radical da substituição do real por imagens. O sofrimento pessoal do autor levou-o ao suicídio, mas seu ‘delírio’ deixou uma reflexão inaudita em seu tempo, com repercussões evidentes nas análises que atualmente se fazem acerca das perversões do mundo midiático, no acentuar os traços de realidades novas que a literatura posterior associou a ‘capitalismo multinacional’, ‘capitalismo da mídia’, ‘capitalismo tardio’, ‘sistema mundial’ ou mesmo ‘pós-modernidade’.
O livro de Debord apresenta 221 pequenas teses que compõem a sua teoria do espetáculo. Mostra, para além do desenvolvimento mais recente das superestruturas, a constituição de novos mecanismos de funcionamento da sociedade a partir do advento da mídia. Lançado em 1967, o livro faz uma reflexão mais do que nunca atual sobre o predomínio das imagens na cultura de massa, que condensa uma dada ordem de relações sociais (“forma final da reificação”, segundo Debord), e a adoção de maneiras de pensar, sentir, desejar, consumir e se comportar a partir da onipresença e do alcance dos meios de comunicação. Para Debord (1997, p. 13), o espetáculo é o seqüestro da vida, do sonho, e a cisão do mundo em realidade e imagem. As experiências e fantasias em torno do vivido ou das necessidades humanas são aprisionadas no mundo à parte das imagens, inibindo as forças do desejo e a liberdade na criação de formas de vida:
As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo.
Guy Debord percebeu que a cisão entre o espetáculo e a realidade possibilitava a fragmentação, a superficialidade, a dissipação e inibia o sentido do encadeamento histórico. Décadas mais tarde, autores que se debruçaram sobre o pós-modernismo viriam a caracterizar a “realidade à parte” criada pela mídia com recurso a expressões como “hiper-realidade”, “clonagem do mundo” e “figuração no interior da realidade virtual”. Em torno das imagens, sua profusão e predomínio em nossa cultura, Debord (idem, pp. 11, 14) acompanhou o desencadeamento do que ele chamou de “modelo de vida dominante em nossa sociedade”, onde “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”, e que condiz com uma notável expansão do mercado envolvendo novas produções estéticas e narrativas. Através do espetáculo, a fabricação de eventos familiariza todo mundo em suas poltronas com os ídolos e promove uma vasta ‘solidariedade’ entre as multidões nas maneiras de vestir, desejar e comportar-se. Consolida-se assim “a liberdade ditatorial do Mercado, temperada pelo reconhecimento dos Direitos do homem espectador”. A imagem aparece então como a realização mais recente do capital.
Guy Debord percebeu essa enorme mudança e ampliou o quadro interpretativo acerca da sociedade contemporânea. Desse horizonte de percepção surgiu, por exemplo, a teoria do simulacro desenvolvida por Jean Baudrillard, que é ancorada na idéia de que o real é substituído por imagens e de que o referente vivido desapareceu. Enquanto Debord buscou fazer uma ‘economia política’ do espetáculo, Baudrillard avançou na ampliação das fonteiras da interpretação para dar conta das múltiplas variações da produção dos discursos, das linguagens e da simbologia predominantes na sociedade contemporânea. Em 1968 ou em 2000, a cultura de massa está marcada fundamentalmente pela mesma condição: nada se verifica pessoalmente, temos que confiar em imagens que outros escolheram. O assombro e as vertigens de Baudrillard em Tela total /Mito : ironias da era do virtual e da imagem (Porto Alegre, Sulina, 1997) sequer necessitam da lembrança da dominação econômica. A lógica própria do mundo das imagens já basta para promover dissociações gravíssimas de consciência e operações institucionais de danos quase irreparáveis.
Guy Debord foi o mestre dessa reflexão; foi ele quem viu primeiro, quem ousou interpretar e devassou o fenômeno do espetáculo como mecanismo fundamental da reprodução da ordem capitalista e seus equivalentes na ordem soi- disant socialista então existente. Não se trata, portanto, de mais um autor maldito que a crítica incorporou a partir de sugestões de algum pesquisador mais atento à lata de lixo da história. Guy Debord foi, à sua maneira, um fundador.
Na sociedade do espetáculo, desenvolvem-se signos e símbolos que fabricam necessidades e maneiras de desejar que se incorporam às multidões de espectadores. O desejo interior de cada um está misturado às mais diversas emanações dos meios de comunicação constituindo estilos de vida nos limites da falsificação espetacular. Para Debord, esse mecanismo infernal se estendia desde a escolha das mercadorias no Ocidente ao consumo da mitologia revolucionária que permitiu a substituição da vivência direta dos homens em prol do papel dominante do Estado e do partido único no socialismo burocrático-autoritário. Realizavam-se assim a substituição da vida e o ‘estar à margem da existência’. Ou ainda, dando dois passos na direção do Oriente e retrocedendo um pouco no tempo, “se cada chinês tem que aprender Mao e, assim, tornar-se Mao, é porque não há outra coisa para ser” (Debord, 1997, p. 43). Isso foi escrito há mais de trinta anos.
Na época Debord já exercia sua agudeza crítica com relação a temas como ecologia, o segredo como componente fundamental do poder das agências burocráticas, as ameaças da indústria nuclear, a máfia como modelo institucional e a ausência de controle sobre os organismos de informação e repressão da sociedade européia no final da década de 1960 e início da de 1970. Mas a sua maior contribuição foi, sem dúvida, a caracterização de novos mecanismos de reprodução no atual estágio de desenvolvimento do capital, que atingem áreas anteriormente não sujeitas à mercantilização. Essa ‘colonização’, realizada através da mídia e da indústria da propaganda, alcança sentimentos e práticas humanas que ainda estavam a salvo da coisificação. Inovações estéticas e de linguagem estão associadas à motivação para consumir também investimentos libidinais em torno das mercadorias, que incluem sentimentos, estilos de vida etc. Dessa maneira, a mídia oferece novos campos ao capital, à expansão do universo das mercadorias e à reprodução do capitalismo, não exatamente como ‘derivativo’ ou ‘superestrutura’ que acompanha ou é determinada por um movimento já existente do capital. É o que Fredric Jameson, em Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, (São Paulo, Ática, 1996), chama de “desdiferenciação” ou “indistinção” entre economia e cultura, transformação sistêmica no âmbito do próprio modo de produção em seu estágio atual. No marxismo de Jameson e em termos adaptados às discussões em curso na teoria social contemporânea, diz-se que, ao estágio do desenvolvimento do capitalismo tardio, corresponde a atmosfera cultural do pós-modernismo. Tendo como lembrança as passagens do capítulo primeiro de O capital, as mercadorias ‘falam’ ainda outras coisas (idem, ibidem, p. 282):
Para começar, os produtos à venda no mercado transformam-se no próprio conteúdo das imagens da mídia, de tal forma que, em certo sentido, o mesmo referente parece se manter nos dois domínios. Isso é algo bem diferente de uma situação mais primitiva na qual a uma série de signos de informação (notícias, folhetins, artigos) era adicionado um outro elemento, que tentava aliciar consumidores para um produto comercial que não tinha nada a ver com esses signos. Hoje os produtos estão, digamos, difusos no tempo e no espaço dos segmentos de entertainment (ou mesmo nos do noticiário), como parte do conteúdo, de tal forma que em alguns casos bem conhecidos (mais explicitamente em seriados como Dinastia), às vezes não fica claro quando o segmento narrativo termina e começam os comerciais (uma vez que os mesmos atores trabalham no segmento comercial).
Os exemplos são diversos. Sasha (filha da Xuxa) nasceu da cópula da superstar – que invade o imaginário e transfigura a sexualidade infantil em uma genitalização precoce associada ao consumo – com o olhar eletrônico da televisão. Cercada de sistemas peritos por todos os lados, desde os porta-vozes e assessores de imprensa, passando por personal trainers e cuidados médicos em uma ala inteira isolada na Clínica São Vicente no Rio de Janeiro (além, é óbvio, do staff de administradores financeiros), a maternidade midiática oferece pompa e ritualização do poder à grande massa dos desvalidos. Essa obscenidade envolve a chegada da nova criança, onde mamãe Xuxa exibe suas “emoções e expectativas mais pessoais” como mais um de seus atributos, além do de transformar em dinheiro tudo que toca. A pintura das paredes dos corredores e do quarto da clínica, a opinião eugênica de que na família de Luciano Szafir “todos são feios” a não ser o pai …, o ouro que cobre a criança desde os primeiros dias, fazem parte dos poderes da rainha eletrônica que, além disso, oferece aos espectadores sua ‘intimidade’ e sua ‘felicidade’. O caso Xuxa/Sasha é de uma aberração exemplar: o espetáculo da ‘maternidade’ cria um mundo à parte, uma ficção, que é ofertada a muitos milhões de espectadores. Consome-se Sasha, consome-se Xuxa.
O capitalismo tardio promove uma mercantilização nunca antes vista da experiência humana e a “produção de pessoas” para “funcionar” (as expressões são de Jameson) na nova e intensa estetização da realidade. As lições de Jameson são retiradas de Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo: assim como a ética protestante produziu um ‘tipo de pessoa’ capaz de transitar em um mundo de trabalho e de construção da riqueza completamente transformado, o pós-modernismo ‘produz’ indivíduos suscetíveis à coisificação de todo tipo. A narrativa midiática acaba também por constituir a lógica sistêmica, e a cultura está, como nunca esteve anteriormente, imersa no mundo das mercadorias. O jorro atraente das imagens da mídia imiscui-se indissoluvelmente nos negócios. Sob perspectivas diversas, Anthony Giddens, Jean Baudrillard, Krishan Kumar, Pierre Bourdieu, Jürgen Habermas, Scott Lash, Ülrich Beck, Fredric Jameson, Richard Rorty, Alain Touraine e outros tratam do assunto.
É no processo vivo de criação de linguagem que se pode detectar esses sentidos e significados que conformam consciências e influem sobre a subjetividade. Nos traços mais regressivos do que atualmente se produz nessa atmosfera midiática, a ‘indistinção’ entre base e superestrutura está nos filmes, episódios televisivos ou mesmo nas telenovelas brasileiras, onde protagonistas principais da trama aparecem nos intervalos comerciais fazendo propaganda de produtos. No esporte enquanto indústria do entretenimento, a genialidade de Michael Jordan para jogar basquetebol está associada à Nike, assim como o futebol de Ronaldinho. Antes não era assim. Durante décadas, os talentos de Pelé ou Garrincha nunca estiveram sob a marca de qualquer empresa, nem os clubes de voleibol tinham o nome de ‘Pirelli’, ‘Nestlé’ ou ‘Banco do Brasil’. Estão aí indicadas mudanças institucionais importantes a partir de novas orientações tomadas do capital e do lugar central da indústria do entretenimento como novo pólo de expansão do sistema. Os US$ 100 milhões de que Michael Jordan ganha por ano ou as dezenas de milhões de dólares que o Internazionale de Milão pagou ao Barcelona da Espanha pelo passe de Ronaldinho têm muito mais a ver com o movimento do capital do que com a inequívoca genialidade desses dois esportistas. Garrincha morreu bêbado e na miséria, e boa parte dos craques de futebol do passado recente tornaram-se funcionários de seus clubes de origem ou acabaram a vida no ostracismo absoluto.
Ronaldinho e Michael Jordan (assim como tantos outros esportistas e artistas) estão em jogos eletrônicos, programas de computador, filmes para crianças, comerciais de iogurte ou de fast-food, videoclipes e campanhas humanitárias. A roda do capitalismo gira diferente, as determinações ganham novas feições. Não se tem mais, nesse campo, a linearidade dos ‘aparelhos ideológicos’, que reproduzem a lógica total da dominação e se cristalizam no ocultamento de uma verdade que já se supõe revelada. De maneira um tanto diversa, trata-se de perceber mecanismos de eficácia imensa que escorregam dos braços da interpretação se o olhar for sempre panorâmico a partir de pressupostos gerais acerca da formação social. A selvageria midiática contém encantamentos e perversões que envolvem os corpos e mentes de muitas maneiras — ‘positividade’ que merece ser desvelada em suas variadas dimensões.
Pode-se supor que Debord fez uma crítica encantatória da cultura através de um texto atraente, por vezes hermético. Mas seu pensamento não se reduz a isso. Há uma verdadeira sociologia em suas 221 teses. Nesse mundo cindido, falsificado, a contemplação passiva das imagens consolida a adesão positiva das multidões à ordem espetacular. Ainda Debord (1997, p. 24): “…quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo … . É por isso que o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o espetáculo está em toda parte.” Esse mecanismo não é mais uma das agências que contribuem para a reprodução do capitalismo, é uma alteração profunda no quadro do próprio modo de produção e fornece sua nova dinâmica, algo que não deve ser desconsiderado em prol de uma ortodoxia que exibe o olhar cansado de quem acha que já viu tudo pela compreensão das descobertas de Karl Marx patentes em O capital.
Assim pode-se dizer que Debord localizou um processo de amplas conseqüências que foi sendo explorado e nomeado aos poucos. Jameson assimila o conceito de “sociedade do espetáculo” e adiciona ao entendimento as expressões “dilatação da esfera cultural da mercadoria” e “estetização da realidade”, em uma superação/assimilação do conceito de “indústria cultural” de Adorno e Horkheimer, que não lida com a dissolução das fronteiras entre a cultura de massa e a alta cultura. Portanto, aquilo que Debord anunciou (ou denunciou) remete, sem grandes piruetas intelectuais, à reflexão sobre as mudanças culturais e sistêmicas a que se dá o nome de ‘pós-modernismo’.
Percebe-se na produção de linguagens da condição pós-moderna a fragmentação da narrativa e a ausência do sentido de encadeamento histórico, como se a realidade fosse vivida como um conjunto sucessivo de vários presentes. Jameson faz a analogia entre essa atmosfera cultural e a condição do esquizofrênico, tal como descrita por Lacan, como ruptura na cadeia dos significantes. Não se trata de um diagnóstico psíquico, mas de um paralelo entre uma determinada condição psicológica e a ambiência cultural que constitui contornos para a subjetividade contemporânea. A idéia é a seguinte: se somos incapazes de unificar passado, presente e futuro da sentença, então somos incapazes de unificar passado, presente e futuro de nossa vida psíquica. Só que isso acontece potenciadamente na cultura de massa, nas linguagens ofertadas pela mídia global. São modalidades presentes, por exemplo, no ‘fluxo total’ da televisão (analisado por autores de concepções díspares como Pierre Bourdieu e Jean Baudrillard, por exemplo), que acompanham a mercantilização intensa de várias esferas da vida e, conseqüência fundamental do capitalismo da mídia, a fragmentação do sujeito contemporâneo:
Se, de fato, o sujeito perdeu sua capacidade de estender de forma ativa suas protensões e retensões em um complexo temporal e organizar seu passado e seu futuro como uma experiência coerente, fica bastante difícil perceber como a produção cultural de tal sujeito poderia resultar em outra coisa que não “um amontoado de fragmentos” e em uma prática da heterogeneidade a esmo do fragmentário, do aleatório (Jameson, 1996, p. 52).
Esse sujeito fragmentado surge em um tempo de ‘especialização flexível’, da produção ‘ao gosto do freguês’ e da segmentação do mercado em nichos com demandas específicas, fenômeno devidamente apontado pelos autores da corrente de interpretação chamada de ‘pós-fordista’. Como acentua Krishan Kumar (Da sociedade pós-industrial à pós-moderna, Rio de Janeiro, Zahar, 1997), produtos sob medida, fragmentação da força de trabalho, certo grau de desintegração das empresas e descentralização da produção convivem com a produção em massa e não definem um novo momento da produção capitalista apesar de a revolução tecnológica do último quarto de século ter provocado profundas e irreversíveis mudanças institucionais e políticas. São alterações deflagradas a partir das inovações tecnológicas, de conseqüência imediata sobre a produção e o trabalho e que, nas últimas décadas, afetaram a vida familiar, o lazer, a cultura e a política. Ou ainda, como sugere Jameson, mudanças que não geraram nenhuma revolução mas que foram mais extensas do que as de uma revolução.
A reorganização produtiva do capitalismo permite diversificar mercadorias para nichos do mercado cada vez mais específicos. Para além dos grandes e vultosos processos de substituição de máquinas por outras máquinas, que incorporam os avanços tecnológicos na produção e potenciam a mais-valia relativa, vê-se agora a utilização de ‘máquinas-ferramenta’ que, com a ajuda da informática, adaptam-se rapidamente à criação de novas e cada vez mais selecionadas mercadorias. Isso não resume toda a infra-estrutura do capitalismo pós-industrial nem define um novo padrão de acumulação, mas tem amplas conseqüências sociais. A ‘produção das novas necessidades’ pode ser apreciada então como um processo de características inusitadas, que carrega outra dinâmica na relação entre a base e a superestrutura, tal como se disse anteriormente. A propaganda e a mídia são fundamentais na criação das ‘novas necessidades’, com ênfase nos aspectos simbólicos atribuídos às mercadorias, que promovem a ‘estetização’ da economia ou, dito de outra maneira, a mercantilização cada vez mais ampliada das diversas esferas sociais. Esse processo também se efetiva através da multiplicação de linguagens do mundo da mídia em uma cultura de imagens que sobrepassa a cultura literária vigente nos momentos do capitalismo industrial clássico. Nessas circunstâncias, ocorre a fragmentação do sujeito.
Na sociedade do espetáculo, o próprio ‘real’ é inventado midiaticamente. Baudrillard chama esse processo de “esquizofrenização cultural” (de novo a analogia com a esquizofrenia), que contribui para a fragmentação do sujeito. É a transformação da realidade como parte do show em que a vida e os eventos dissipam-se através de um engenho dissociativo (“obsceno”, segundo Baudrillard) por força do qual a produção de imagens e a cultura midiática invadem todos os domínios da existência dos indivíduos. São outros os mecanismos que presidem esse mundo ‘hiper-real’, de simulacros, que contrasta com a realidade da qual se supunha poder ser desvendada por um sujeito que encarnaria a racionalidade histórica. As dificuldades são maiores: assim como não se vende mais mercadorias com folhetos, pois há investimentos adicionais no imaginário e na libido que fazem girar a roda do capitalismo, a existência dessas agências e a fragmentação do sujeito solicitam novas reflexões sobre a institucionalidade e a política.
Debord ainda supunha um sujeito ‘puro’ e ‘uno’, que emergeria porventura da hibernação midiática armado da radicalidade suficiente que A sociedade do espetáculo teria contribuído em alguma medida para fazer despertar. O processo não é tão linear. Para Baudrillard, “após a prostituição do imaginário, temos a alucinação do real em versão ideal e simplificada” (Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 21.10. 1997). Como episódio denotativo desse andamento das coisas, há o relato de que o general Schwarzkopf, estrategista norte-americano da guerra do Golfo, assistida na televisão por centenas de milhões de pessoas como se fosse um videogame, comemorou sua ‘vitória’ na Disneyworld, monumento do simulacro norte-americano. Ou ainda, como acentua Renato Janine Ribeiro (Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 21 de outubro de 1997):
Uns agem, e, agindo, iludem seus espectadores. Outros, esgotados emocionalmente, incapacitados para agir, vêem televisão e se abstêm da coisa pública. O controle político promovido por essa divisão social da ação política é altamente eficaz… Na medida em que aumentou o lazer, ampliou-se também a esfera da comunicação de massas, e é por ela que passa hoje a divisão de papéis entre quem age, ou produz, e quem é passivo ou consome. Toda política que seja, em alguma medida, democrática terá que criticar tal recorte e buscará, pelo menos, reduzi-lo. E um dos méritos dos trabalhos que discutem o caráter teatral da vida social ou política está justamente aí: em nos fornecer um critério para reconhecer, e promover, o democrático.
Perante uma existência pobre e fragmentária, os indivíduos contemplam e consomem passivamente guerras em tempo real pela CNN, a vida de artistas e integrantes do star system, de desportistas, de políticos, de gente com notoriedade etc., em uma assinatura final do decreto midiático. Esta é uma guinada por demais significativa e que diz respeito a novas configurações institucionais, diversas daquelas de que o conceito de ‘ideologia’ procurava dar conta para o capitalismo clássico. O pioneirismo de Guy Debord e de A sociedade do espetáculo está presente em toda essa discussão, resumida na frase: “Anteriormente via-se a degradação do ser em ter e agora chegou-se à imperiosidade do parecer.” As imagens adicionaram-se às relações dos homens entre si, dimensionando em outros termos o próprio fetichismo das mercadorias. Sem a obra de Debord, a reflexão posterior sobre esse processo perderia um bocado de significados.
Desmantelar sucessivamente os mecanismos da sociedade do espetáculo que unificam a circulação das mercadorias em torno de imagens que dominam os meios de comunicação de massa é algo por si suficientemente valioso como contraposição à alienação contemporânea. Debord expôs o mecanismo que amortece consciências e divide o mundo entre imagem e realidade: suas idéias, porém, apresentam esse fluxo total como um bloco rígido que recebe a ‘adesão positiva’ do espectador passivo. Sobra às forças sociais de contestação o ‘estranhamento total’. Mas indivíduos, grupos e classes estão em permanente interação/conflito, mesmo envolvidos na atmosfera de isolamento absoluto de uma cultura que favorece a fragmentação e a ausência de historicidade. Linguagens são produzidas e eventualmente desmontadas, apesar do mecanismo fundamental seguir intacto. O palco também desaba, aqui e ali, mesmo que não desabe o cenário inteiro da sociedade do espetáculo. De outra forma, estaríamos à cata do ‘momento crucial’ em que todas as perversões estabelecidas teriam um fim súbito. Nesse aspecto, as idéias contidas em A sociedade do espetáculo podem ser reavaliadas. E contudo, sem os exageros de Debord, uma vertente fundamental da apreciação crítica das estruturas institucionais contemporâneas estaria capenga.
Resenhista
Luis Carlos Fridman – Professor adjunto do Departamento de Sociologia da UFF e doutor em Sociologia pelo Iuperj.
Referências desta Resenha
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. Resenha de: FRIDMAN, Luis Carlos. Imagens e subversões. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.5, n.2, jul./out. 1998. Acessar publicação original [DR]