A Social History of Anthropology in the United States | Thomas C. Patterson

Pode escrever-se uma história da ciência apenas a partir da discussão de questões metodológicas? Pode isolar-se a história de uma ciência social de sua inserção no tecido social? Podem entender-se as transformações de uma disciplina sem relacioná-las aos avatares da política? Questões como estas parecem teóricas no contexto internacional da história das ciências, na medida em que a academia faz parte da sociedade e, por isso, nunca poderia ser dela desvinculada. No Brasil, contudo, assim como em outros países periféricos, a ciência, imbricadíssima com as vicissitudes da política, tem sido considerada por alguns como atividade impérvia às relações de poder, importação tecnológica periférica que se ressentiria somente do atraso metodológico. Neste contexto, adquire particular importância o livro de Thomas C. Patterson sobre a trajetória da Antropologia nos Estados Unidos. Patterson considera as condições históricas que permitiram a existência da disciplina, assim como as circunstâncias nas quais o conhecimento antropológico foi produzido, ressaltando que as contradições nesse conhecimento produzido pelos antropólogos americanos refletem divisões nas sociedades.

Seguindo a história dos Estados Unidos, o percurso da Antropologia é dividido em cinco períodos: a Nova República (1776- 1879, pp. 7-34), a Era Liberal (1879-1929, pp. 35-70), em busca de uma ordem social (1929-1945, pp. 71-102), no Pós-Guerra (1945-1973, pp. 103-134), na era neoliberal (1974-2000, pp. 135-164). Desde o início da república, a identidade nacional americana relacionou-se com a percepção dos indígenas, e a ênfase na língua como fator de identidade nacional levou ao estudo das línguas indígenas. Em 1811, já havia vocabulários de 83 línguas nativas e se propunha sua filiação genética à maneira da filogenética do indo-europeu. Alguns pensadores propunham a miscigenação racial, mas a maioria a isso se opunha, ao considerar os Estados Unidos como uma nação branca, encabeçada pelos protestantes anglo-saxões (wasps), que excluía tanto os indígenas como os católicos, os escravos de origem africana, e os ‘negros brancos’, como eram chamados os irlandeses. A Era Liberal testemunhou os inícios da Antropologia profissional e a expansão da política de aculturação dos índios, que deveriam tornar-se americanos. Franz Boas (1858-1942) teve papel importante, com suas características heterodoxas (radical, estrangeiro, judeu), em particular com sua ênfase na pluralidade e relativismo culturais, em direto confronto com o racismo dominante. Em 1919, após muitas atribulações, foi oficialmente censurado pela Associação Antropológica Americana, o que mostra o caráter reacionário do establishment acadêmico, tão comum em todas as épocas e, mais ainda, quando se confronta com aqueles que desafiam o poder.

A Grande Depressão levaria ao uso, por parte do capital, da Antropologia como ciência social em busca da estabilidade social. Um bom número de antropólogos governamentais seguiam o funcionalismo de Malinowski e Radcliffe-Brown, cujo empirismo adequava-se bem às necessidades da administração colonial. Por outro lado, alguns antropólogos alistavam-se no movimento antifascista, como John Murra e Elman Service, para citar apenas dois nomes que teriam grande repercussão posteriormente. Após a Segunda Guerra Mundial, o centro da profissão passaria do governo para a academia, consolidando-se a divisão quadripartite da disciplina: Etnologia, Lingüística, Arqueologia e Antropologia Física. O evolucionismo cultural de Julian Steward e Leslie White, assim como de diversos arqueólogos, buscava regularidades transculturais. A Guerra Fria, entre 1954 e 1964, levou aos chamados estudos da modernização, que contrapunham a superioridade cultural e política dos Estados Unidos à inferioridade cultural e racial dos países subdesenvolvidos. Esta abordagem está explicita no manual de Betty Meggers, Pré-História da América, traduzido e publicado no ápice do regime militar brasileiro e no contexto da guerra de contra-insurgência mencionado por Patterson. Grandes teóricos críticos desse período foram Eric Wolf e Elman Service, com referências claras às contradições de classe. No geral, contudo, a Antropologia era considerada uma prática divorciada dos problemas do presente, preocupada com o exótico e com o antigo.

O período neoliberal testemunhou diversas contradições. Neofuncionalistas, como Kent Flannery, introduziram teorias sistêmicas à chamada New Archaeology, mas tiveram dificuldade em explicar a mudança cultural. Na esteira do pensamento crítico, Sahlins preocupou-se com a possibilidade de ação (agency) das coletividades, tanto no centro como na periferia, mostrando como havia especificidades, tanto entre os povos indígenas como nas camadas populares dos centros hegemônicos. Nos últimos anos, o pós-modernismo também influenciou a Antropologia, assim como a globalização, termo usado para substituir ‘imperialismo’, aprofundou as divergências internas na disciplina. Patterson conclui por lamentar a crescente falta de visão holística na disciplina, fragmentada em inúmeras especialidades. A falta de visão de conjunto é particularmente deletéria no contexto atual, em que as questões éticas mais amplas são cada vez mais sentidas.

A trajetória da Antropologia nos Estados Unidos, tal como apresentada por Patterson, mostra como os conflitos sociais e políticos explicaram e moldaram, em última instância, os embates epistemológicos da disciplina. Os embates entre anti-racistas e racistas, empiristas e críticos, pluralistas e monolíticos, sempre se relacionaram aos combates, tanto na sociedade como no âmbito acadêmico. É interessante notar como a censura majoritária do establishment acadêmico a Boas, afinada com o poder dominante, em nada contribuiu para esmaecer a obra de Boas ou para tornar menos efêmeras as obras dos censores, hoje desconhecidas, ao contrário do legado do censurado estudioso alemão. É sintomático, também, que o caráter colonialista da ciência antropológica, em particular no auge da Guerra Fria, se relacione aos regimes ditatoriais na periferia, em particular na América Latina. A leitura da análise de Patterson demonstra como seria artificial tentar-se separar a metodologia científica das relações de poder, na sociedade e na academia, pois são essas relações, em última instância, que explicam a epistemologia científica.


Resenhista

Pedro Paulo A. Funari – Departamento de História, IFCH-UNICAMP, C E-mail: pedrofunari@sti.com.br


Referências desta Resenha

PATTERSON, Thomas C. A Social History of Anthropology in the United States. Oxford & New York: Berg, 2001. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Diálogos. Maringá, v.7, n.1, 291-293, 2003. Acessar publicação original [DR]

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