REIS, Daniel Aarão. A revolução que mudou o mundo: Rússia, 1917. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Resenha de: SOUZA, Felipe Alexandre Silva de. Um balanço sereno e crítico das revoluções russas. Faces da História, Assis, v.5, n.1, p.358-361, jan./jun., 2018.
Independentemente da posição política que se tenha a respeito do fato, dificilmente encontraremos quem negue que a Revolução Russa de 1917 se encontra entre os acontecimentos de maior reverberação do século XX. Entre as diversas publicações que chegaram ao mercado editorial brasileiro no centenário da revolução, destaca-se o livro A revolução que mudou o mundo: Rússia, 1917, escrito por Daniel Aarão Reis, professor aposentado de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense.
Em um volume conciso, o professor conciliou um resgate narrativo dos principais momentos da revolução com diversas problematizações acerca das interpretações mais recorrentes de tão controverso evento — desenvolvendo, assim, um livro de grande valia tanto para leigos quanto para iniciados no assunto.
Ainda que o subtítulo do livro destaque o ano de 1917, Reis propõe uma interpretação de duração mais longa do que ele chama de ciclos das revoluções russas.
Tais ciclos se iniciaram com a Revolução de 1905, as Revoluções de Fevereiro e Outubro de 1917, as guerras civis travadas entre 1918 e 1921 e, finalmente, a revolução fracassada de Kronstadt (1921). Apenas levando em conta esse processo histórico mais amplo, defende Reis, é que poderemos compreender melhor os elementos fundamentais que impulsionaram e plasmaram o comunismo soviético que viria a ser um dos principais paradigmas societários até sua dissolução entre 1989 e 1991.
O resgate dos eventos menos conhecidos de 1905 e do período entre 1918 e 1921 é um primeiro aspecto que torna o livro valioso. A Revolução de 1905 foi desencadeada em grande parte pela Guerra Russo-Japonesa (1904-1905), quando o declinante império dos Románov se bateu contra o império japonês pelo controle de áreas de influência na Coreia e na Manchúria. A guerra provocou um grande desgaste nos recursos econômicos e militares da Rússia, levando ao acirramento das contradições sociais e políticas e à eclosão de movimentos grevistas e manifestações contra as deterioradas condições de vida da maioria da população. A partir de então, ao longo daquele ano, houve três grandes ondas de greves políticas (em fevereiro, maio e setembro), exigindo a derrubada da autocracia, a eleição de uma Assembleia Constituinte com vistas à abertura de um regime republicano; movimentos camponeses com suas reivindicações pela nacionalização das terras; e o nacionalismo não-russo, ameaçando a unidade do império então conhecido como “o cárcere dos povos”. Foi em 1905 que surgiu uma organização original: o conselho de deputados operários ou soviete, uma organização com a agilidade e flexibilidade necessárias para enfrentar a repressão tzarista, que rapidamente se difundiu por São Petersburgo e Moscou, com papel central no incentivo e na articulação dos demais movimentos populares urbanos e rurais. Segundo Reis, as experiências de 1905 inspiraram e condicionaram muitas das ações tomadas nas revoluções de fevereiro e outubro de 1917 — não é por nada que 1905 passou posteriormente a ser considerado o ensaio geral de 1917.
Em termos narrativos, as guerras civis entre 1918 e 1921 e a revolução de Kronstadt (1921) são o ponto alto do livro. Ainda que de forma sucinta, Reis expõe toda a complexidade em que as tendências autoritárias dos bolcheviques, observadas já nos eventos da revolução de outubro, se intensificaram por intermédio da centralização política e econômica no Estado, no Partido Bolchevique e no Exército Vermelho, enquanto o poder revolucionário tentava neutralizar a imprensa de oposição e transformar os sindicatos em correias de transmissão do governo. Tais tendências se fortaleceram na medida em que os bolcheviques se viram obrigados a defender a Rússia e a revolução em intricadas guerras civis: em uma primeira frente, contra os Exércitos Brancos, formados principalmente por generais tzaristas e cossacos, apoiados por potências estrangeiras (com destaque para Inglaterra e França) e desejosos de restaurar a antiga ordem; em uma segunda frente, contra outros grupos revolucionários e camponeses que não concordavam com diversas medidas do novo governo e passaram à insurreição aberta; e, finalmente, em uma terceira frente, os movimentos nacionalistas não-russos (e.g. finlandeses, ucranianos e povos islâmicos da Ásia Central). Embora os bolcheviques tenham saído vitoriosos das guerras civis, o resultado não foi apenas uma catástrofe humana em termos de mortos, mutilados, epidemias e fome, mas o estabelecimento de uma […] ditadura política, dotada de uma temível polícia política e de um Exército centralizado e verticalizado. Mesmo os bolcheviques mudaram radicalmente: de uma elite política, atravessada por debates contraditórios, transformaram se num partido de massas centralizado, militarizado, em que não eram mais admitidas dissensões, vistas com desconfiança e suspeição. (REIS, 2017, p.130).
Para Reis, as tendências ao centralismo e à ditadura foram confirmadas na derrota da revolução dos marinheiros de Kronstadt, cidade-base da Marinha de Guerra russa, na ilha de Kotlin, golfo da Finlândia. Além de ser um ponto estrategicamente importante (Kronstadt protegia Petrogrado, com seus fortes e navios, e fiscalizava o tráfego marítimo da região), a base era conhecida por uma tradição política de rebeldia: seus marinheiros participaram com destaque dos levantes de 1905 e fevereiro e outubro de 1917, e Trótski não à toa se referia a eles como “o orgulho e a glória da revolução.” (apud REIS, 2017, p.133). A partir de meados de 1920, tendo estado nas primeiras linhas de combate em defesa do governo revolucionário durante as guerras civis, os homens de Kronstadt começaram a resistir às políticas centralistas e autoritárias dos bolcheviques. Embora fizessem parte de um contexto mais amplo de contestação ao novo regime, Kronstadt não demorou a se encontrar isolada, graças ao apaziguamento dos movimentos de oposição em outros lugares; em março de 1917, a revolução foi derrotada militarmente pelas tropas soviéticas. Segundo Reis, a Kronstadt revolucionária lutava “[…] por um socialismo diferente, em que o produtor fosse senhor da sua produção —os campos para os camponeses, as fábricas para os operários —, dispondo dela livremente e como bem entendessem.” (REIS, 2017, pp.140/141).
Para além da narrativa de reconstrução histórica, o trabalho de Reis, alicerçado tanto em fontes documentais quanto em diversos trabalhos de pesquisadores de renome mundial, problematiza várias interpretações consolidadas sobre a Revolução.
É particularmente importante o questionamento de um superdimensionamento da importância do Partido Bolchevique como mobilizador do povo russo, presente tanto nas pesquisas de cariz liberal quanto na historiografia de esquerda considerada simpática à revolução. Tais interpretações não encontram respaldo nas evidências disponíveis atualmente. Isso se deve, segundo Reis, à tendência das pesquisas em se enquadrarem numa história política, baseada principalmente em documentação partidária. Com isso é atribuída importância insuficiente à participação tanto dos camponeses (em uma época em que 85% da população russa era rural) quanto das mulheres. Em busca de sanar essa lacuna tão comum, Aarão dedica considerável parte do livro aos “atores esquecidos” das revoluções russas, resgatando a agência e as conquistas dos movimentos de mulheres e camponeses.
Outra ideia colocada em xeque é a concepção, difundida especialmente por Trótski, de que durante boa parte de 1917 as relações políticas gerais da Rússia se caracterizaram por uma disputa de forças entre o Governo Provisório advindo da Revolução de Fevereiro e o Soviete de Petrogrado. Com base nas pesquisas do historiador Claudio Ingerflon, Reis defende que essa interpretação se deve a uma aplicação errônea à Rússia do conceito de Estado, elaborado na reflexão de processos sócio históricos específicos da Europa Ocidental. Na Rússia existiam pouquíssimas instituições (aparelhos ministeriais, conselhos, etc.) que mediavam as relações entre a sociedade e o poder imperial. Por isso, a queda da dinastia Románov não deixou um “vácuo de poder” a ser disputado entre Governo Provisório e o Soviete. O que se seguiu foi um processo de profunda desintegração da autoridade, no qual nem o Soviete de Petrogrado nem o Governo Provisório detinham efetivamente os poderes de autoridade que comumente lhes são atribuídos. As evidências apontam para o que Reis chama de “[…] um processo de múltiplos poderes […]” (REIS, 2017, p.60): sindicatos, comitês de fábricas, milícias, comitê de soldados e um sem-número de outras organizações que marcavam sua autonomia e não acatavam ordens externas. Essa tendência centrífuga passou a ser revertida com a predominância dos bolcheviques após Outubro.
Também é digno de nota o resgate que o livro faz de uma antiga controvérsia que perdura até hoje: o que ocorreu em Outubro de 1917 teria sido uma verdadeira revolução ou um golpe bolchevique? Para Reis, quem elaborou a melhor interpretação para o problema foi o historiador francês Marc Ferro: houve um golpe, mas também uma revolução. A perspectiva do golpe era clara desde julho daquele ano, quando os bolcheviques, em seu VI Congresso, abandonaram a proposta dos sovietes como poder alternativo e democrático. No mês seguinte, é tomada a decisão de empreender uma insurreição armada antes das deliberações do II Congresso dos Sovietes. Como justificativa, Lenin teria argumentado que antecipar a insurreição era a única forma de salvar o processo revolucionário, rondado por inúmeros perigos. É sabido, atualmente, que esses perigos não eram reais, devido principalmente à desorganização e conflitos entre os grupos contrarrevolucionários. Todavia, essa informação era desconhecida na época. Além disso, não há como negar que, ainda que entrelaçados com decisões e ações golpistas, os eventos de outubro foram uma verdadeira revolução: As profundas transformações revolucionárias consagradas pelos decretos aprovados no II Congresso (paz e terra) e pelos que viriam depois (controle operário, direito à secessão etc.) certamente mudaram a face e a história daquela sociedade. E mudaram num sentido e com um caráter popular inegáveis. (REIS, 2017, pp.108/109).
O livro se destaca pela serenidade das análises. É fato conhecido que Daniel Aarão Reis é um intelectual inserido indubitavelmente no campo da esquerda, e o livro em questão é claramente simpático aos fins almejados pelo projeto revolucionário, o que não impede que ele apresente conteúdo altamente crítico e atento às contradições de seus protagonistas. Em seu balanço, o professor também realça os inegáveis avanços sociais que a Revolução trouxe aos trabalhadores e demais grupos oprimidos, bem como os aspectos positivos da presença internacional da URSS, que favoreceu as lutas das classes trabalhadoras em âmbito mundial: “Assustadas diante do ‘perigo vermelho’, muitas elites sociais se disporiam a ceder anéis para salvar dedos—e cabeças.” (REIS, 2017, pp.191/192). A própria perspectiva de um socialismo democrático faz com que Reis deixe clara a necessidade de um balanço crítico das experiências comunistas do século XX – das quais a URSS foi um paradigma – caso queiramos que o socialismo triunfe no século XXI. É urgente que se supere a cisão entre socialismo e democracia e liberdade. Só assim, avalia Reis, alcançaremos finalmente uma humanidade verdadeiramente emancipada.
Felipe Alexandre Silva de Souza – Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP, Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília); E-mail: felipesouza1988@gmail.com.
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