Recentemente, a religião tem sido fonte de inspiração tanto para novas formas de associativismo quanto de sectarismo. Enquanto na Europa cresce o número de islâmicos, nos países ao sul do Equador, os grupos pentecostais arregimentam milhares de fiéis, fomentando transformações que evidenciam o imbricamento do campo religioso com a cultura moderna. Assiste-se a uma série de hibridações que vão dos movimentos de Nova Era aos poucos estudados “movimentos pentecostais gays”, passando pelo ciberativismo religioso e o revigoramento de antigas formas de associativismo religioso. Assim, se, por um lado, a persistência do discurso religioso levou teóricos a afinarem seus antigos instrumentos de pesquisa, por outro, lançou sobre esse campo de estudos certa crise de paradigmas, fomentando trabalhos que não só propunham reformas, mas também que apregoavam a obsolescência do modelo da secularização.
A despeito de sua polissemia (cf. DOBBELAERE, 1981; MARTIN, 1978, entre outros), o conceito de secularização firmou-se como um eixo explicativo quase incontornável nas pesquisas em sociologia da religião até os anos recentes. De Max Weber – que, segundo alguns, preferiu o termo desencantamento ao tratar da evasão dos motivos mágico-religiosos como enredo para as histórias humanas, enquanto reservava o conceito de secularização para a perda da influência pública da religião (cf. PIERUCCI, 1998) – a Peter Berger – que em seu Dossel Sagrado ([1966] 1985) acreditava na perda de plausibilidade da religião em meio à replicação e concorrência das estruturas que sustentavam essa plausibilidade –, a secularização se apresenta quase como um destino manifesto dos tempos modernos. Os matizes dessa fórmula povoaram a maioria das teses sobre a modernidade, sendo a secularização vista como condição sine qua non tanto para consolidar a modernidade nas sociedades avançadas quanto para arrancar da subalternidade os “povos intermediários”, que só se redimiriam de sua menoridade por meio do estabelecimento de um estado laico baseado na razão.
Porém, no mundo não europeu, a persistência dos estados teocráticos no Oriente Médio (a Revolução Iraniana), a força dos movimentos políticos ligados ao catolicismo da libertação na América Latina (Revolução Sandinista, movimentos de resistência à Ditadura Militar no Brasil) e o movimento de Maioria Moral nos Estados Unidos soaram o sinal de alerta de que algo não andava bem com a teoria da secularização, ao menos em suas versões mais ortodoxas. Enquanto no Brasil, já nas décadas de 1960 e 1970, os estudiosos faziam malabarismos para conciliar as teses desenvolvimentistas com o crescimento da visibilidade pública da religião (SOUZA, 1969; CAMARGO, 1973; ROLIM, 1985) e nos Estados Unidos falava-se de reestruturação da religião americana (WUTHNOW, 1988), na Europa, de modo geral, ainda se cavalgava firme na trilha da teoria da secularização. Embora Bryan Wilson tenha ensaiado um movimento contrário, já na década de 1970, com seu The return of the sacred (1979), sua postura quanto à religião não parece dar margem a outra interpretação:
[…] a religião tem pouca importância para o funcionamento da ordem social […] o sistema social funciona sem a religião; uma grande parte das pessoas procura na religião somente um apoio ocasional, e talvez nem mesmo isso (WILSON, 1981, p. 64).
No entanto, os acontecimentos do final da década de 1980 e meados da década de 1990 transformaram, de forma significativa , a ordem mundial e sobremaneira a forma como imaginamos o mundo e o nosso lugar nele. O colapso do socialismo real, a concretização da União Europeia e o aumento assombroso da tecnologia permitiram uma maior velocidade da informação e, com ela, um fluxo de capitais e pessoas nunca experimentado em épocas anteriores.
Se até bem pouco tempo atrás a propagação dos chamados novos movimentos religiosos na Europa era vista como mais um dos tantos “efeitos colaterais” da sociedade moderna, hoje o crescimento da população mulçumana e a multiplicação das comunidades cristãs carismáticas (católicas e protestantes) levam pesquisadores a desconfiar de que as coisas possam ser diferentes do que pensaram até aqui. Eventos como o caso Rushdie, no final da década de 1980, o aumento da massa de peregrinos que acorrem todos os anos a centros como Fátima, ou as grandes reuniões de jovens católicos em torno do “Papa Peregrino” – que chegaram a congregar mais de um milhão e meio de pessoas na cidade de Czestochowa, na Polônia, em 1991 – levaram a comunidade científica a relativizar as teses sobre a secularização.
A partir da década de 1990, em vez de continuar compondo réquiens para a religião, os estudiosos tentaram reconsiderar as antigas teses. Não é sem razão que nesse período surgiram estudos como os de José Casanova (1994) e Peter Beyer (1994), que reavaliaram as razões da persistência, retomada ou transformação – dependendo do ponto de vista teórico – do papel da religião na esfera pública.
Em resumo, embora possamos encontrar os primeiros indícios de uma crítica à teoria da secularização dentro da sociologia europeia ainda na década de 1970, é mesmo nos trabalhos surgidos a partir da década de 1990 que pesquisadores reformam o paradigma, sem, contudo, abandoná-lo por completo. Ainda é interessante ressaltar que tais estudos quase sempre atrelam a mudança no status da religião na sociedade contemporânea a processos externos ao campo religioso, como globalização (PACE, 1997), crise das identidades e dos discursos modernos (HERVIEU-LÉGER, 1993, 1997) ou superação da modernidade e consequente advento da pós-modernidade (MARTELLI, 1995).
Nesse sentido, os trabalhos aqui reunidos abordam não só a persistência do fenômeno religioso, mas seus novos e antigos contornos. Para isso, lançam mão de diversos recortes disciplinares e, principalmente, novas abordagens teórico-metodológicas. Assim, Emerson José Sena da Silveira tenta compreender de que forma o ciberespaço constituiu-se como um campo em que o fenômeno religioso expressa credos, pretensas religiosas e políticas. Explorando um campo ainda pouco abordado pelos estudiosos do fenômeno religioso, o ciberespaço, Silveira lança mão não só de novas abordagens, que contornam o velho paradigma secularização, mas de materiais pouco usuais para os cientistas sociais, como postagens do Facebook, YouTube e outras redes sociais.
O texto de Thiago de Menezes Machado vai no mesmo sentido inovador, ao analisar as relações entre a forma neoesotérica de construir a espiritualidade e a religiosidade institucional. Nesse sentido, observa como o nômade se relaciona com as religiões institucionalizadas ao estilo alternativo, relativizador das crenças e das vias formativas de aprendizado religioso.
Carlos Souza traz uma reflexão bastante atual para o debate sobre o campo evangélico, abordando as mudanças ocorridas no protestantismo histórico atual e seu possível processo de “pentecostalização”. Ainda que o faça sob uma óptica sociológica clássica, escolhendo como objeto o protestantismo, o trabalho traz um processo bastante instigante e central para o debate sobre o crescimento e a hegemonia do pentecostalismo dentro do campo evangélico. No mesmo sentido, o trabalho contribui para a discussão sobre o mercado religioso e a pluralização da oferta religiosa, apontando, ao contrário, para uma possível homogeneização da mensagem evangélica pautada no modelo pentecostal.
O trabalho de Reinaldo Azevedo Schiavo, no mesmo sentido que o de Carlos Souza, opta por um objeto clássico nos estudos da religião, ao analisar as imbricações entre a memória sobre as comunidades eclesiais de base da Igreja Católica e a Ditadura Militar no Brasil, no intuito de perceber como esses dois eventos históricos têm sido lembrados por diferentes setores da sociedade brasileira.
Assim, os trabalhos aqui reunidos apontam para um processo de diferenciação do fenômeno religioso e sua atualidade em diversas esferas da vida social. Dessa forma, a religião, marcada para morrer no final da narrativa moderna, reaparece bem viva e figura como ator central em diversos campos da vida contemporânea, da cultura – talvez seu lugar por excelência – à política, passando pelo debate ético-científico.
Referências
BERGER, P. L. O Dossel Sagrado: elementos para uma sociologia da religião. São Paulo: Paulinas, 1985.
BEYER, P. Religion and globalization. Londres: Sage, 1994.
CAMARGO, C. P. F. de (Org.). Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis: Vozes, 1973.
CASANOVA, J. Public religions in the Modern World. Chicago: University of Chicago Press, 1994.
DOBBELAERE, K. Secularization: a multi-dimensional concept. Current Sociology, v. 29, 1981.
HERVIEU-LÉGER, D. La religion pour mémoire. Paris: Cerf, 1993.
HERVIEU-LÉGER, D. Representam os surtos emocionais contemporâneos o fim da secularização ou o religião?. Religião & Sociedade, v. 18, n. 1, p. 31-48, 1997.
MARTELLI, S. A religião na sociedade pós-moderna. São Paulo: Paulinas, 1995.
MARTIN, D. A general theory of secularization. Oxford: Basil Blackwell, 1978.
PACE, E. Religião e globalização. In: ORO, A. P.; STEIL, C. A. (Org.). Globalização e religião. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 25-42.
PIERUCCI, A. F. Secularização em Max Weber. Da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 13, n. 37, p. 43-73, jun. 1998.
ROLIM, F. C. Pentecostais no Brasil: uma interpretação sócio- -religiosa. Rio de Janeiro: Vozes, 1985.
SOUZA, B. M. de. A experiência da salvação: pentecostais em São Paulo. São Paulo: Duas Cidades, 1969.
WILSON, B. (Org.). The social impact of the new religious movements. New York: Edwin Mellen, 1981.
WUTHNOW, R. The restructuring of American religion: society and faith since World War II. Nova Jersey: Princeton University Press, 1988.
Organizador
Paulo Gracino Junior – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.
Referências desta apresentação
GRACINO JUNIOR, Paulo. Apresentação. Ciências da Religião – História e Sociedade. São Paulo, v. 12, n. 2, p. 15-19, dez. 2014. Acessar publicação original [DR]
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