Uma obra singular que propõe abordar, em três centenas de páginas, um assunto de amplo desconhecimento por parte daqueles que estão ausentes da vida e história do Sul do Brasil. Acrescente-se ainda a intersecção realizada por Almeida Jr. de um viés antropológico-religioso, e a leitura de A religião contestada torna-se mais instigante e inusitada, como o antropólogo João Baptista Borges Pereira sinaliza em seu curto, porém rico e profundo prefácio.
Elaborado com uma introdução em que o autor delineia as fronteiras de seu trabalho – resultante de uma dissertação de mestrado –, definido por ele mesmo não como um estudo de caso, mas como uma “abordagem histórico-descritiva” que transita entre a teorização e a narrativa. O que acabará conferindo à obra um salutar dinamismo, afastando-a do enfado que por vezes está presente nos trabalhos acadêmicos transformados em literatura (ALMEIDA JR., 2011, p. 17). A obra divide-se em cinco capítulos que são enunciados a partir de um paralelo com o que seria o crescimento da árvore sagrada, temática tratada com mastreia pelo autor, que tem formação teológica e a usa, não como constritora das ideias, mas como um instrumento que auxilia e enriquece a abordagem a que se propõe.
Os aspectos gerais que nortearão a compreensão do tema são tratados no primeiro capítulo, no qual, depois de alertar para os estereótipos criados com relação ao messianismo, o autor passa a fornecer informações vitais para o entendimento dos fenômenos sociopolíticos que favoreceram a eclosão do religioso através da diversidade étnica envolvida, da ambiência do social na questão da posse das terras e do significado religioso atribuído a ela.
Trata ainda diligentemente do messianismo, desde sua origem no ambiente judaico e a ampliação de seu espectro pelo cristianismo, passando pelas tipologias inerentes ao movimento, e terminando por assinalar outros movimentos de caráter messiânicos no Brasil. Almeida Jr. faz um apanhado dos movimentos messiânicos no Nordeste (Pernambuco, Bahia e Ceará), com destaque para Antônio Conselheiro e Padre Cícero, e seus precursores e seguidores. Por fim, conclui teorizando sobre o messianismo e elaborando uma cronologia dos líderes messiânicos do Sul do Brasil, mormente Paraná e Santa Catarina, que alimentará o viés histórico de sua abordagem.
O solo frutífero que o segundo capítulo traz valeria por toda a obra, excetuando-se a questão messiânica, pois a análise antropológica realizada nas diferentes etnias e suas contribuições àquela região do Brasil produzem suculentos frutos de conhecimento. Iniciando com os ameríndios a partir da proposição analítica de Pierre Clastres, depois de breve introdução, passa a discorrer sobre as tribos xokleng, kaigang e tupi, numa abordagem antropológica, para a seguir tratar de seus aspectos religiosos dentro da ciência da religião.
Ao abordar o papel do negro na religião do Contestado, o autor identifica a raça negra na região Sul do Brasil. Presente em maior número nas lavouras do Paraná, mas não totalmente ausente de Santa Catarina, ele aponta que, “subindo a serra do Rastro, alcançando o planalto catarinense”, onde seis localidades são designadas pelo termo “quilombo”, a presença marcante será de negros miscigenados provenientes de São Paulo, marcando sua tendência abolicionista e os decorrentes conflitos que os acompanham (ALMEIDA JR., 2011, p. 107). Outro fator destacado por Almeida Jr. é a presença da mão de obra negra na expansão ferroviária em direção ao Sul e sua interação ao lado de imigrantes europeus na lavoura, com a resultante miscigenação de um e sincretismo religioso de outro.
Iniciando com uma referência a Barack Obama como exemplo miscigenante da globalização moderna, o autor passa a tecer interessantes abordagens religiosas na pontual busca de pontos de contato referentes da presença negra através da religião: traços da religiosidade índia, catolicismo, islamismo, nigromancia, orixismo, festas rituais, mandingas, fetichismo etc. Ao concluir o capítulo, a parte que deveria ser dedicada, na ordem lógica, à terceira e marcante presença no Contestado, os brancos, o autor o faz através do catolicismo, e sua análise religiosa será fortemente referenciada em duas figuras centrais do messianismo da época, ambas chamadas João Maria (Os monges João Maria e João Maria de Agostini). Talvez por julgar ser um traço étnico conhecido, a análise da composição da população branca é não um lugar singularizado, mas será referenciado nas narrativas ao longo da obra: “Zé Maria foi nosso chefe. Que tombô lá no Irani. Não magoando o Paraná. Nóis queria ficá aqui: Se essa posse Deus nos deu. Não podemo mais saí” (ALMEIDA JR., 2011, p. 188).
A sentença “a região respirava o cheiro de pólvora”, utilizada por de Almeida Jr. (2011, p. 190), pode referenciar todo o terceiro capítulo. Se até aqui a antropologia foi a moeda forte no texto, a partir deste ponto a história sociopolítica balizará a abordagem religiosa do messianismo no Contestado. É nesse pano de fundo acrescido do abandono religioso que emerge a emblemática figura de José Maria. De biografia difusa na historicidade, mas marcante e uniforme na religiosidade, mesmo tendo vivido maritalmente com uma jovem, o que nas normativas de santidade do catolicismo oficial o baniria de qualquer espaço sagrado, na região e na religião do Contestado sua presença popular é aceita e reforçada. O que é historicamente documentado e religiosamente delineado pelo autor.
A partir desse ponto o autor passa a elencar as crenças e práticas do messianismo contestado oriundo da figura histórica de José Maria, mas que adquirirá a independência e será replicada a outros messias por vezes não tão históricos. Essas crenças, originadas no catolicismo medieval tridentino, trazem elementos como o terço, o compadrio e a cavalhada. O autor traça também um interessante paralelo com o romance A história de Carlos Magno e os doze pares de França, e assinala que “percebemos vários pontos de contato com a fé contestada” (ALMEIDA JR., 2011, p. 181).
A árvore da vida floresce no quarto capítulo, com a emergência do “terceiro monge, o José Maria, reconhecido como verdadeiro messias” (ALMEIDA JR., 2011, p. 191). A convergência estruturante pelas mudanças, seja de um novo e marcante comando messiânico, ou seja por meio de uma fé fundada no pacifismo que passa a fé instauradora de uma nova ordem, aglutinará no capítulo três ao tratar deste messianismo, elementos religiosos das diferentes matizes abordadas. Almeida Jr. mostra que essas crenças não só estiveram presentes no ideário das disputas do Contestado, mas chegaram a respaldar algumas ações no conflito, como a “Guerra Santa”, as influências negra e ameríndia nas visões e possessões de “Manoel, o Menino Deus”, e outras, pontuadas no relato histórico das batalhas.
A religião do Contestado será marcada pela presença “de elementos característicos como o ‘Quadro Santo’, a ‘Forma’, o ‘Terço’, e a ausência de imagens, aliada à prática do batismo de iniciação no movimento”, ou, como pontua o autor, “Rebatismo”, vez que eram todos adeptos da fé católica, estavam adentrando a “Santa Religião” (ALMEIDA JR., 2011, p. 206). Juntamente com estes, outros elementos comuns marcam a religião do Contestado, como os rituais fúnebres e o ascetismo, e outros não tão comuns, como o “Domínio da Natureza” e as “Orações Fortes”. Esse capítulo é finalizado com notas históricas afetas a essa religiosidade, em que a preferência pela monarquia em detrimento da república, o militarismo e as virtudes da coragem e a iminente glória são abordados de forma elucidante.
O quinto e último capítulo assinalará o fim da “Guerra Santa” e a continuidade no ideário popular da religião do Contestado. A manipulação da crença popular seja pelo controle dos “médiuns”, como a figura de Maria Rosa (ALMEIDA JR., 2011, p. 244), ou pelo estabelecimento de uma peculiar inquisição, em que “o fuzilamento sugere a punição sem a oportunidade de arrependimento […] a execução parece mais um ato judicial do que religioso propriamente dito” (ALMEIDA JR., 2011, p. 245), iniciará, no aspecto religioso, esse fim iminente. O autor bem assinalará que o enfraquecimento da religião pela espiritualidade dirigida em favor de um desejo expansionista dos líderes e a pregação de um estado político são fatores que pouco a pouco vão minando os elementos religiosos forma dores do messianismo do Contestado. “O estabelecimento de uma república é contrário à expectativa que tinham do reino que o monge traria” (ALMEIDA JR., 2011, p. 253), um “Reino Celestial” dando lugar a uma “Nova República”. As crenças religiosas como “espiritismo” (crença em espíritos), “gritos”, a “sacralização da terra”, entre outras, afastarão cada vez mais a religião do Contestado do catolicismo tradicional, enfraquecendo-a.
Almeida Jr. encerrará esse capítulo apontando para os fatores determinantes da queda dos últimos redutos no Contestado, destacando entre eles a quebra do sagrado voto do compadrio e os elementos desse messianismo peculiar que sobrevive na região do Contestado nos dias atuais. “A queda de São Pedro e a prisão de Adeodato, conquanto tenham colocado um ponto final à guerra e à Santa Religião” (ALMEIDA JR., 2011, p. 266), não foram suficientes para fazer desaparecer a fé no monge; esta continua viva no catolicismo popular com a sacralização de lugares, nas orações, crenças, e na contínua sacralização da terra na região.
A obra é finalizada com algumas considerações, em que o autor nos convida a algumas reflexões de caráter antropológico, sobre a religiosidade messiânica colocada a serviço de um projeto, sobre questões sociopolíticas inerentes à época, mas que se replicam de outras formas e modos a partir de novos movimentos messiânicos. Ainda há um apêndice em que o autor se propõe a traçar uma relação entre dois tipos de religiosidade popular, uma pautada em José Maria de Agostini e outra, em José Manoel da Conceição.
Além de ser uma leitura agradável, a obra de Jair de Almeida Jr., A religião contestada: elementos religiosos formadores do messianismo do Contestado, é extremamente rica, sendo um convite para melhor conhecer um momento na história do Brasil desconhecido da maioria de nosso povo, mesmo por aqueles afetos à leitura e à busca contínua de conhecimento. Também proporciona a compreensão da formação étnica do planalto interior do Paraná e Santa Catarina, suas posturas políticas expressas no poder dos coronéis, ora calcadas nas crenças messiânicas dos “José Maria”, ora desafiadas por elas, e a formação de uma das regiões de plantio mais ricas do Brasil.
Resenhista
Jouberto Heringer da Silva – Mestrando em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Pós-graduado em Urban Mission pela Princeton University (Estados Unidos). Graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul (SPS) e em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Licenciado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Clérigo presbiteriano pela Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB). E-mail: heringer.silva@mackenzie.br
Referências desta Resenha
ALMEIDA JUNIOR, J. de. A religião contestada: elementos religiosos formadores do messianismo do Contestado. São Paulo: Fonte Editorial, 2011. Resenha de: SILVA, Jouberto Heringer da. Ciências da Religião – História e Sociedade. São Paulo, v.10, n.2, p. 207-212, 2012. Acessar publicação original [DR]
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