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A reinvenção da classe trabalhadora (1953-1964) – LEAL (PH)

LEAL, Murilo. A reinvenção da classe trabalhadora (1953-1964). Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2011, 517 p. Resenha de SANTOS, Antonio Carlos dos. Vivendo no fim dos tempos de classe trabalhadora e o populismo. Projeto História, São Paulo, n. 48, Dez. 2013.

É público e notório que, diferentemente dos demais historiadores marxistas britânicos – como passaram a ser conhecidos os autores oriundos do Grupo de Historiadores do Partido Comunista da Grã-Bretanha (PCGB) –, Edward Palmer Thompson (1924-1993) foi o único capaz de desenvolver uma verdadeira “escola historiográfica”, ou seja, reunir um número extenso de admiradores e seguidores em todo o mundo, dedicados a aplicar em suas pesquisas os mesmos métodos e concepções presentes em A formação da classe operária inglesa (1963), Projeto História, São Paulo, n. 48, Dez. 2013   Senhores e caçadores (1975), Costumes em comum (1991) e nas demais obras thompsonianas.

No Brasil, como é de praxe em relação à circulação das ideias, o pensamento de Thompson chegou tardiamente, mais precisamente no final dos anos 1970 e início da década seguinte; no entanto, coincidiu de forma precisa com as greves operárias capitaneadas pelos metalúrgicos do ABC paulista, que marcaram o surgimento do chamado “novo sindicalismo”. Desde então sua influência na historiografia brasileira foi cada vez mais sentida nas várias linhas de pesquisa e, de modo especial, entre os historiadores sociais do trabalho.

Foram publicados em nosso país, nos últimos quase quarenta anos, inúmeros livros nitidamente inspirados em Thompson, sendo que a grande maioria deles apresentaram relevantes contribuições para uma melhor compreensão do mundo do trabalho no Brasil. Entre eles, podemos destacar os pioneiros Trabalho urbano e conflito industrial (1977), de Boris Fausto; História da indústria e do trabalho no Brasil (1982), de Francisco Foot Hardman e Victor Leonardi; e Cultura e identidade operária (1987), organizado por José Sergio Leite Lopes.

A reinvenção da classe trabalhadora de Murilo Leal é uma das mais recentes obras que trilham estes mesmos caminhos, após terem sofrido um breve refluxo no início dos anos 1990 e alcançarem plena recuperação a partir da segunda metade daquele decênio até os dias atuais; fenômeno este apontado por seu prefaciador Marcelo Badaró Mattos, um dos principais estudiosos dos meandros do pensamento thompsoniano e de sua influência no Brasil.

Murilo Leal Pereira Neto fez licenciatura, mestrado e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e é atualmente professor de História do Brasil na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Este é seu segundo livro, pois já havia publicado, em 2002, A Projeto História, São Paulo, n. 48, Dez. 2013   esquerda da esquerda: Trotskistas, comunistas e populistas no Brasil contemporâneo (1952-1966).

Em A reinvenção da classe trabalhadora, Murilo Leal analisa as lutas operárias ocorridas na cidade de São Paulo entre o segundo governo Vargas e o golpe militar de 1964, dando ênfase às grandes mobilizações daquele período – a Greve dos 300 Mil em 1953, a dos 400 Mil em 1957 e a dos 700 Mil em 1963 – e às mais importantes categorias profissionais da época: os trabalhadores metalúrgicos, que passavam pelo aumento do seu peso na economia brasileira, e os têxteis, que conheciam o declínio de um predomínio conquistado desde a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Entre os aspectos positivos presentes neste estudo está a superação de uma “lacuna” apontada por muitos na própria obra-prima de Thompson, A formação da classe operária inglesa, ou seja, a não abordagem de dados objetivos mais palpáveis da classe trabalhadora no contexto socioeconômico da Grã-Bretanha entre 1790 e 1830. Diferentemente disto, Murilo Leal nos oferece um quadro bem preciso das grandes transformações vivenciadas pela sociedade paulistana em meados do século XX, frutos de um novo ciclo de industrialização, marcado pela implantação de empresas multinacionais e a ocorrência de um novo fluxo migratório do Nordeste para o Sudeste brasileiro.

Outra observação digna de nota diz respeito à visão articulada entre a realidade das fábricas, enquanto espaços de produção, e os locais de moradia dos trabalhadores nos bairros periféricos da cidade, onde se dava a reprodução da força-de-trabalho. O autor consegue estabelecer um vínculo interessante entre as lutas sindicais – com destaque para a organização dos trabalhadores no interior da fábrica – por melhores condições de trabalho e aumentos salariais e as mobilizações populares em torno das reivindicações por moradia, transporte e contra a carestia. Projeto História, São Paulo, n. 48, Dez. 2013   Lançando mão das mais variadas e ricas fontes historiográficas, Murilo Leal parte da leitura atenta de uma vasta bibliografia e de jornais – tanto os de ampla circulação quanto os produzidos pela própria imprensa operária –, e se embrenha também na pesquisa de documentos oficiais da Câmara Municipal de São Paulo, de atas de reuniões e assembleias sindicais, de entrevistas com lideranças e militantes daquele período, e até mesmo de anotações dos agentes infiltrados do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

Mesmo tendo como referência privilegiada a aplicação de conceitos caros à concepção thompsoniana, tais como a valorização da “experiência” na construção da classe e da consciência de classe dos trabalhadores, ou mesmo da existência de uma “economia moral da plebe” motivando e orientando suas revoltas; Murilo Leal também recorre às contribuições de outros expoentes da chamada História Social Inglesa. É o caso de suas análises a respeito das comemorações do Primeiro de Maio, das realizações de piqueniques e concursos, da organização de campeonatos de futebol e de outras programações frequentes no “calendário operário” – Páscoa, Dia das Mães, festas juninas, dia da categoria etc. –; momentos em que se apoia nos estudos feitos por Eric Hobsbawm sobre as atividades culturais operárias. Utiliza-se também dos conhecimentos produzidos por George Rudé, acerca dos “motins da fome” nas sociedades pré-industriais europeias, para investigar os piquetes grevistas e demais revoltas populares contra os aumentos nos preços das passagens de ônibus, trens e de alimentos ocorridos nas décadas de 1950 e 1960 na capital paulista.

Outro exemplo digno de nota é a utilização das noções de “circularidade das culturas de classe”, “incorporação e repressão” e “estruturas de sentimento” de Raymond Williams; ou mesmo da interpretação dada por este pensador britânico ao termo “hegemonia” de Antonio Gramsci. Trata-se das reflexões de Murilo Leal sobre a “crise de Projeto História, São Paulo, n. 48, Dez. 2013   representação” que se abateu sobre a classe trabalhadora brasileira, em suas relações com o Estado, os comunistas e trabalhistas, o que, na opinião do nosso autor, determinaram a não fundação de um partido independente de trabalhadores naquela conjuntura política específica.

Talvez, uma das poucas críticas que se possa fazer a este livro é o fato de que, provavelmente diante de um imperativo de exposição didática, as três partes em que foi dividido – “Determinações”, “Práticas: lutas, reivindicações, organizações” e “Representações: cultura e política” – ficaram um tanto estanques, embora complementares. Tal observação poderia ser feita especialmente quanto à última parte, quando os conceitos de Thompson, Hobsbawm e Williams são mais efetivamente trabalhados e poderiam, a nosso ver, se relacionarem mais estreitamente no próprio momento em que as ricas informações constantes nas duas primeiras partes fossem formuladas.

O aspecto polêmico do trabalho está intimamente ligado à abordagem que o autor dá à questão do assim chamado “populismo”; tema complexo e controverso que dificilmente poderia ser ignorado por ele diante da época estudada. É sabido que muitos pensadores brasileiros intitulam de República Populista o período 1950-1964, e que a grande maioria dos políticos que nela atuaram – Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Adhemar de Barros, Juscelino Kubitschek e João Goulart entre outros – foram classificados de populistas.

Nascido no interior dos debates de sociólogos em busca de um melhor entendimento dos fenômenos sociopolíticos que ocorriam em sociedades que viviam um franco processo de urbanização e industrialização antes, durante e após a Segunda Guerra Mundial – com destaque para Brasil, Argentina e México entre os demais países latino-americanos –, o conceito populismo se expandiu para as áreas das ciências políticas e dos estudos históricos, criando fortes raízes em todas elas. Em linhas gerais, se referia às práticas políticas de líderes que Projeto História, São Paulo, n. 48, Dez. 2013   manipulavam as classes populares, de modo especial os trabalhadores urbanos que haviam acabado de chegar do campo, pouco organizados e portadores de novas demandas, tais como os direitos trabalhistas e melhores condições de vida e de trabalho nas grandes cidades e nas fábricas. Desta forma, o populismo sofreu e ainda sofre ferrenhas críticas tanto da direita, que o acusa de mobilizar e utilizar as reivindicações populares para angariar mais poder político, quanto da esquerda, que o enxerga como uma forma de menosprezar a capacidade da classe trabalhadora em se auto-organizar e desenvolver uma consciência política própria.

É necessário, pois, contextualizar A reinvenção da classe trabalhadora em um debate mais amplo que se instaurou a partir do final da década de 1980, quando a questão do populismo transformou-se em uma das principais polêmicas da historiografia brasileira do trabalho, mais precisamente com a publicação de A invenção do trabalhismo (1988) por Angela de Castro Gomes. Muitos dos seguidores de Thompson no Brasil começaram a buscar um paralelo entre a noção de “paternalismo” utilizado por ele e o populismo; ou mesmo a tentar interpretar o que Thompson queria realmente dizer quando utilizou várias vezes, em A formação da classe operária inglesa, o termo populismo. Concluíram então que a perspectiva thompsoniana dos trabalhadores enquanto agentes históricos não era totalmente incompatível com o conceito de populismo.1  Neste sentido, a presente obra de Murilo Leal fornece uma valiosa contribuição a este debate, quer concordamos ou não com seus argumentos e conclusões. Em primeiro lugar, quando aponta os inúmeros erros cometidos pelos comunistas e trabalhistas brasileiros naquele momento, o que inviabilizou a organização independente da classe trabalhadora; assim como a impediu de se constituir enquanto direção política e social de um novo “bloco histórico” que implementasse um profundo processo de reformas com perspectivas socialistas, capaz inclusive de evitar o Golpe Militar de 1964. Em segundo lugar, quando, após estabelecer um diálogo crítico com a chamada Escola Sociológica Paulista – representada pelas reflexões de Florestãn Fernandes, Francisco Weffort e José Álvaro Moisés –, nos propõe uma interpretação do populismo enquanto uma aliança classista entre os trabalhadores e outros setores sociais; aliança esta com forte potencial para estabelecer um projeto sociopolítico contra-hegemônico; mas que, no período estudado, acabou contribuindo para a incorporação da classe trabalhadora ao projeto industrializante da burguesia brasileira.

Professor de História na rede municipal de ensino, mestre em História Social pela PUC-SP.

1 Para uma melhor compreensão deste debate, muito sumariamente descrito neste parágrafo, recomendo a leitura dos seguintes artigos: FORTES, Alexandre. Formação de classe e participação política: E. P. Thompson e o populismo. In: Anos 90. Porto Alegre, v. 17, n. 31, pp. 173-195, jul. 2010 [Disponível em: www.seer.ufrgs.br/index.php/anos90/article/view/18941/11035. Acesso em: 10 abr. 2014]; PESTANA, Marco M. A centralidade da obra de Thompson na rediscussão do populismo. In: Caminhos da História. Vassouras, v.7, edição especial, pp. 131-140, 2011 [Disponível em: www.uss.br/pages/revistas/ revistacaminhosdahistoria/v7EdicaoEsp2011/pdf/014_-_A_Centralidade_da_ Obra_de_Thompson.pdf. Acesso em: 13 abr. 2014].

Antonio Carlos dos Reis Santos – Professor de História na rede municipal de ensino, mestre em História Social pela PUC-SP.

Itamar Freitas

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