Mesmo que a região Sudeste concentre atualmente mais de 60% das pesquisas de mestrado e doutorado produzidas em História, vem chamando a atenção o aumento quantitativo e qualitativo de pesquisas desenvolvidas junto aos novos programas de Pós- Graduação em outras regiões do país, como é o caso da região Centro-Oeste. São estudos que, além de tratarem de temas pouco notados (e aparentemente ‘esquecidos’) pelos pesquisadores dos ‘grandes centros’, estão permitindo a revisão de inúmeros aspectos regionais, visitados até então apenas por ‘memorialistas’.
Fruto direto desse desenvolvimento é o programa de Pós-Graduação em História, nível mestrado, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS, da atual UFGD), Campus de Dourados (CPDO), em funcionamento desde 1999, onde Neimar Machado de Sousa apresentou como dissertação de mestrado a pesquisa A Redução de nuestra Señora de la Fe no Itatim: entre a cruz e a espada, sob a orientação do Prof. Dr. Eudes Fernando Leite, no ano de 2002, e foi publicada dois anos após a defesa, pela editora da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), da cidade de Campo Grande/MS.
O livro foi dividido em três capítulos (assim como no texto da dissertação), e analisa a Redução de Nuestra Señora de la Fé do Itatim, entre os anos de 1631 (fundação da Frente Missionária do Itatim) e 1659, ano da destruição dessa redução, dando ênfase ao “encontro-confronto” que teve de um lado, a dominação espanhola, os ataques das incursões escravistas dos bandeirantes, a tentativa de introdução de novos valores por parte dos jesuítas e, de outro, a resistência do Guarani, frente ao modelo imposto pelo colonialismo luso-espanhol. A idéia central que perpassa a obra é de que os Guarani não foram simples vítimas do colonialismo, uma vez que implementaram formas de resistência cultural, religiosa e até mesmo física. Conforme as palavras do autor:
… a pesquisa não tem a pretensão de romper com a vasta bibliografia produzida acerca das missões em geral e sobre o Itatim em específico. Ela pretende ampliar o campo de estudos ao analisar as fontes dos cronistas jesuítas produzidas no século XVII a respeito da Missão de Nuestra Señora de la Fe na província do Itatim, segundo as novas perspectivas empregadas na história indígena (2004, p. 16).
Para tanto, valeu-se das Cartas Ânuas, ou “Cartas Edificantes” (como eram também chamadas), redigidas pelos superiores provinciais jesuítas. O autor utiliza-se destas cartas para demonstrar as representações construídas pelos jesuítas acerca da coragem e abnegação deles mesmos e, em contrapartida, a desobediência, selvageria e a ingratidão dos índios, o que denota a resistência indígena. Partindo desse ponto, o autor desenvolve sua argumentação, por meio das entrelinhas das cartas, que de forma indireta atestam que “os índios eram indivíduos do processo que estava ocorrendo, e que não se conformaram simplesmente diante da pressão escravista luso-espanhola” (2004, p. 18). Ainda sobre as fontes, o autor complementa dizendo que:
Podemos afirmar que a documentação etnográfica produzida pelos jesuítas de fato prestou um serviço ao registrar para a posteridade costumes de uma cultura oral. Por outro lado, esta mesma literatura é muito condescendente consigo própria quando trata das interferências dos missionários nos costumes dos nativos (2004, p. 37).
Desse modo, no primeiro capítulo, intitulado As missões jesuíticas e a conquista “espiritual” do Guarani, o autor traça um breve apanhado histórico sobre a formação da Companhia de Jesus e sua visão de mundo, o caráter de lealdade, obediência peremptória ao poder Papal, pontuando o objetivo primeiro desta organização religiosa tão singular, além dos acontecimentos que fizeram com que os padres jesuítas chegassem à(s) América(s). As dificuldades enfrentadas por esta Ordem, por parte das coroas espanhola e portuguesa, também foram destacadas, principalmente no tocante a figura consagradamente ligada à rivalidade com os jesuítas: o Marquês de Pombal. O autor discorre sobre a missão dos jesuítas, em salvar os índios, tidos como pagãos perdidos, como “tabula rasa” a serem direcionados à ‘verdadeira salvação’. Em suma, busca mostrar quão forte era a mentalidade religiosa que movia estes missionários, frente a tantas desventuras.
Em contraponto, mostra quem era o Guarani que os jesuítas aqui encontraram. De origem possivelmente amazônica, tendo por cultivo de base o milho, com uma distinta organização política, cultural e principalmente religiosa, não dando indícios de serem a “tabula rasa” que esperava a Companhia. A antropofagia, o papel das guerras, o xamanismo, a feitiçaria, a crença na vida após a morte, a organização social por laços consangüíneos e o etnocentrismo dos próprios Guarani (para com os demais povos nativos), demonstravam quão complexa era a teia social desta etnia. Neste ponto, a figura do xamã era de destaque, já que nesta se reunia muito mais do que o poder religioso, alcançando em muitos casos representatividade política que o levava a ter um amplo prestígio social entre os Guarani. Por isso, afirma o autor, os xamãs “foram fundamentais ao estimular a resistência dos Guarani, quanto ao seu modo de ser tradicional” (2004, p. 31).
Mas, frente a todas as dificuldades políticas, econômicas e geográficas como foi possível a ‘conquista espiritual do Guarani’? A música, a arte, a utilização da língua Guarani para a transmissão da fé cristã, a urbanização, a organização econômica e o sistema de educação fizeram com que as reduções prosperassem, sendo local de importantes celeiros e de segurança contra os bandeirantes e os encomenderos espanhóis.
No segundo capítulo, o autor se ocupa da fundação e localização geográfica da região do Itatim, dos índios desta região, e da Missão de Nuestra Senõra de la Fe. O autor ressalta que a região compreendida em seu estudo estava numa ‘faixa limite’ entre a coroa portuguesa e a coroa espanhola, ou seja, a região da jurisdição da província do Paraguai. Itatin, da língua guarani ita (pedra) tin (construção de moritin = branca) foi uma província fundada em 1631, uma continuação das missões de Guaira. Neimar de Sousa destaca os aspectos do clima, vegetação e hidrografia da região do Itatim e, baseando-se em carta ânua do Padre Diego Ferrer, descreve os limites naturais desta região: “a leste, a Serra de Amambai e a oeste, o rio Paraguai; ao sul o rio Apa e ao norte o rio Taquari, sudeste do Mato Grosso, portanto” (2004, p. 47).
Já sobre a missão de Nuestra Señora de la Fe, uma das mais antigas do Itatim, o autor monta o longo itinerário percorrido pelos povos desta redução, sempre forçados a mudanças contínuas por motivo dos ataques dos bandeirantes entre 1631 e 1634. Os ataques bandeirantes puseram em situação difícil os neófitos da Companhia de Jesus do Itatim, que foram reduzidos, pela influência do xamã Ñanduabuçu, na Missão de Nuestra Señora de la Fe. Desta forma, o período posterior a 1634, foi de fortalecimento dos trabalhos, sendo que entre 1639 e 1647 foi o momento mais próspero para as reduções do Itatim, não só materialmente (com suas ótimas colheitas), como também “espiritualmente” (dado o controle exercido sobre os índios reduzidos). A prosperidade da redução despertou o interesse daqueles que se interessavam nos serviços dos itatines, como era o caso dos antigos moradores da cidade de Xerez, tentativa frustrada através da prorrogação da isenção dos guaranis missioneiros do serviço pessoal.
Os ataques bandeirantes à redução se repetiram no ano de 1647, data em que os maloqueros del Brasil levaram inúmeros cativos, dando início ao período de derrocada da redução. A partir desta data, com a fixação de acampamento dos bandeirantes nas proximidades da redução, os ataques tornaram-se freqüentes. O autor reserva um tópico para explicar as articulações do bispo Berdardino de Cárdeans – que havia tentado tomar a administração das missões sem galgar sucesso – que se valeu dos ataques bandeirantes para retirar os jesuítas das missões.
Por fim, no capítulo Considerações gerais sobre o cotidiano das práticas indígenas e jesuíticas na Missão de Nustra Señora de la Fé, tratou, de maneira detalhada, da “resistência construída pelos índios da missão face às tentativas dos jesuítas em fazê-los abandonar suas práticas tradicionais” (2004, p. 83). Para tanto, o autor tece considerações sob as variadas formas de resistência dos itatines, com destaque para os ataques físicos (o xamanismo). Por outro lado, valendo-se das informações contidas nas cartas ânuas são explicitadas as formas de demonização dos atos indígenas, os instrumentos de catequização, as adequações teológicas que permitiam a adaptação das crenças guarani ao cristianismo, as relações de parceria com os caciques e a utilização da organização familiar, como facilitação no processo de conversão.
Por tudo isso, o trabalho de Neimar de Sousa Machado traz grande contribuição tanto para a História Regional de Mato Grosso do Sul, como para a historiografia indígena. Mesmo com as limitações das fontes (conforme atestou o próprio autor, por estarem em grande parte em arquivos europeus) abriu a possibilidade de comparação (dadas as sutilezas e singularidades da redução em estudo), com outras tantas reduções que existiram nas variadas regiões do Brasil (e mesmo em outras partes da América Latina).
Resenhistas
Diogo da Silva Roiz – Mestre em História pela UNESP – Coordenador do curso de História da UEMS- Campus de Amambai.
André Dioney Fonseca – Graduando em História pela UEMS – Unidade Universitária de Amambai.
Referências desta Resenha
SOUSA, Neimar Machado de. A Redução de nuestra Señora de la Fe no Itatim: entre a cruz e a espada. Campo Grande: UCDB, 2004. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva; FONSECA, André Dioney. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 2, n. 4, jul./dez. 2008. Acessar publicação original [DR]
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