A Queda da Bastilha, o começo da Revolução Francesa | Guy Chaussinand-Nogaret
O autor é um especialista em século XVIII que tem uma vasta bibliografia sobre o assunto. Desenvolve seus argumentos a partir da queda da Bastilha, em seguida faz um recuo para explicar a conjuntura em que o país se encontrava, e como os eventos se desenrolaram até o eclodir da Revolução. Este livro comemorativo dos duzentos anos da Revolução Francesa abriu uma série de discussões sobre o período.
A queda da Bastilha sempre foi exaltada como símbolo maior da Revolução, carregado de emoção, no entanto o autor traz questionamentos bastante relevantes ao dizer que o 14 de julho poderia ser apenas mais um motim parisiense, a queda insignificante de uma fortaleza desativada. A queda da Bastilha nas palavras do autor envolve apenas um punhado de homens, que imediatamente torna-se uma epopeia, um simples episódio ganha ares sacros: “o acontecimento, vivenciado e interiorizado como modelo de ação libertadora, funda a nova era em que a história se confunde com a liberdade” (NOGARET, 1988, 7,8). Se esse acontecimento tivesse ocorrido décadas mais cedo, tudo não passaria de um motim, mas a queda da Bastilha ganhou o significado de mito e alegoria, marcaria o início da grande Revolução, que trazia ideias como afirmação dos direitos humanos, garantia dos bens e das liberdades do cidadão, igualdade de oportunidades em condições de honesta concorrência – esse último item é passível de dúvida, pois sabemos que houve a instituição de igualdade jurídica, mas igualdade de oportunidades é um fato a questionar, principalmente sobre quem seria contemplado por tal igualdade.
O estado monárquico já vinha sendo questionado desde a morte do rei-sol em 1715.
A hierarquia social estava no bojo das principais críticas, pois se conferia honrarias e planos de carreira de acordo com o nascimento, o sistema vigente era alvo de críticas cada vez mais profundas.
Pouco a pouco duas reivindicações foram tomando formas bem definidas: “o desejo de controlar o poder por meio de órgãos representativos da nação e a exigência de igualdade que permitiria aos talentos e aos méritos, sem exclusão, terem acesso a todos os empregos, conquistarem todas as honras” (NOGARET, 1988,12). A ordem social vigente já não era aceita pela nação. O iluminismo ao longo do século XVIII teceu diversas críticas à monarquia, como a limitação dos poderes do rei, pelo respeito às leis e sobre o direito da nação, ou seja, o poder pertence à nação, com todas essas críticas a teoria do direito divino ia perdendo cada vez mais a sua eficácia.
O autor assinala que a sociedade francesa passava por uma crise de identidade que se manifestava pelo questionamento da hierarquia, da sociedade de ordens. O terceiro estado, ou seja, o povo como um todo desejava que o individualismo se tornasse o fundamento da lei, que o indivíduo não fosse identificado segundo as ordens, tal medida permitiria à conquista por mérito e não por nascimento, porém essa busca eloquente pelo sucesso era algo inerente à burguesia que queria gozar dos mesmos privilégios que a nobreza.
A palavra igualdade ganhou partidários da burguesia e de uma parte da aristocracia, principalmente aqueles que lutaram na América e os ideais que defenderam lá não eram compatíveis com a estrutura francesa. A aristocracia reagiu criando barreiras sociais que impediam a burguesia de exercer alguns cargos militares, o que causou grande frustração e inquietação chegando inclusive ao povo, ao camponês que nutria um ódio surdo pelos privilégios da nobreza. A França agitava-se, queixas reprimidas contra o governo tanto político quanto social ganhava vulto à medida que os problemas da monarquia ficavam mais evidentes. O estado estava falido e impotente e não tinha força para impor impostos mais onerosos á nobreza. Os privilégios fiscais empobreceram o Estado, com o tesouro vazio, o rei era obrigado a contrair empréstimos. A dívida tornava-se cada vez maior, principalmente após a Guerra de independência Americana.
Em 1787 estoura a crise, o ministério decidiu fazer uma reforma fiscal, que pretendia impor a igualdade de impostos a todos os proprietários, sem distinção. O parlamento que tinha o poder de reconhecer as leis recusou-se, declarando que só a nação, representada pelos Estados Gerais, tinha o poder de decidir sobre a criação de novos impostos; no entanto no dia seguinte o parlamento denunciou a ilegalidade de tal processo, os parlamentares foram exilados pelo ministro Brienne, mas o exílio causou tanto alvoroço entre os magistrados que o ministro teve que recuar. O parlamento voltou triunfante à Paris. A disputa entre rei e parlamento continuou em seguida o rei reduziu o número de parlamentares e limitou suas atribuições.
Em dezembro de 1788 o terceiro estado consegue o direito de ter o mesmo número de deputados das outras ordens, clero e nobreza. Esse acontecimento restaurou a credibilidade do rei, no entanto o autor afirma que o rei não inspirava nem admiração e nem temor, tinha espírito culto, curioso e honesto, mas não tinha a lucidez de Luís XV e nem a aplicação de Luís XIV, mas tinha grande consciência de seus deveres e responsabilidades.
A crise se instalara na França e o rei foi obrigado a usar seu último recurso, à convocação dos Estados Gerais. O rei convoca cada súdito a uma consulta pública; a partir de então o parlamento se vê obrigado a abolir a censura, e tanto a palavra quanto os panfletos passam a circular em toda a França, expondo as queixas de todo o país. Nas reivindicações os franceses propunham uma monarquia constitucional, na qual o rei se tornaria o primeiro magistrado da nação e seus ministros seriam controlados por uma Assembleia de representantes livremente eleitos. O rei não seria mais a única fonte de poder. Mas ainda teria o comando do exército, a sanção das leis e a autoridade executiva, no entanto seu poder não emanaria mais de deus. Também exigiam todas as formas de liberdade. Acerca das reformas propostas parece haver um consenso entre a nobreza, entretanto essa linha é muito tênue, pois a nobreza queria a manutenção da ordem social juntamente com seus privilégios, já a burguesia representada pelo Terceiro Estado queria a paridade diante da nobreza, que sempre estivera acima de todos sem precisar provar seu valor. O grande anseio burguês era conquistar a livre competição, que esta determinasse os papéis, determinasse a regra do jogo.
A crise já vinha se arrastando há algum tempo, e em 1789 não é diferente, para agravar ainda mais era ano de eleições que além de excluir grande parte da população coincidia com uma crise econômica agravada pela carência de trigo, contribuindo para um caos social, o povo se enfureceu contra aqueles que eles entendiam como responsáveis pela atual situação. Faltava alimento e o povo ainda se sentia enganado, pois ouviram suas queixas, mas nada fizeram a respeito. Os miseráveis, desempregados, vagabundos e mendigos se dirigiam à Paris em busca de emprego, aumentando a população pobre dos subúrbios. A situação era de penúria total, mas em nenhum momento o governo cogitava baixar os preços dos alimentos. Os pobres se concentravam principalmente no subúrbio de Saint Antoine, onde a fome e o desemprego transformavam esse lugar num barril de pólvora pronto para explodir. A partir do anúncio de uma proposta feita pelo industrial Reveillon, que “para baixar os preços e restaurar o poder aquisitivo dos assalariados, bastava suprimir as taxas nas barreiras fiscais, reduzir os salários e vender mais barato” (NOGARET, 1988, 47), entretanto o autor salienta que a massa faminta só guardou dessa proposta o que puderam compreender, entenderam por sua vez que Reveillon queria matar o povo de fome; essa proposta era a fagulha que faltava, a partir então o povo levantou-se enfurecido e várias revoltas ocorreram.
Após as eleições os deputados se reuniram em Versalhes, onde o povo não teve lugar, e os representantes dos Estados Gerais não causavam temor, nessa reunião estava à elite administrativa e o exército real. Esta reunião acabara por ser um fracasso, pois o rei usara de todo o seu poder “absolutista” e esmagara o Terceiro Estado, com as suas prerrogativas, os enxotando cada um para a câmara de sua respectiva ordem, significando a vitória dos privilegiados. No entanto, ao contrário do Clero e da Nobreza, os Comuns descumpriram as ordens reais causando um clima instável entre a Corte e de incerteza perante as decisões do rei. Entre os que queriam “sangue” e os que não sabiam como proceder, Luís XVI preferiu ceder o que não agradou os vitoriosos, a Assembleia ficou cercada, um grupo de militares desobedeceu a seus comandantes e junto com eles o povo. Para Norgaret, os burgueses nesse momento foram vistos como uma “autoridade irregular” constituída em Paris (p62). O rei permitiu que a nobreza participasse da assembleia, entretanto reinava a “anarquia”, os grupos menos favorecidos se aproximavam dos ideais emanados pelos acontecimentos que ocorreram após a prisão de um grupo de soldados rebeldes. Arrombaram a prisão para libertar os soldados, fizeram um momento de pânico ao pilharem e quebrarem lojas pelo caminho, levando o rei a tomar medidas drásticas, como a contratação do marechal Brugie um homem sedento de sangue. O autor verifica pelo menos três autoridades nesse período, o rei adornado pela tradição irredutível que cercava com os seus, Versalhes e Paris e bloqueava a comunicação, a Assembleia de legitimação muito recente cercada que nada podia fazer além de se lamuriar e tentar pressionar o rei, e a rua, que para ele era a desordem descrita como se não tivesse nada a perder inquieta e audaciosa. O rei não ouvia conselhos, o povo estava cada vez mais faminto e furioso, a queda da Bastilha seria, portanto, inevitável.
A Bastilha teria vários significados, segundo o autor, seria um fim mítico e foi precedido de acontecimentos marcantes, algo fabuloso, mítico, até mesmo anacrônico para o século XVIII (NOGARET, 1988, 65). Uma lenda que se perpassou por gerações, que o autor tenta desmistificar em dados que sua importância real era irrisória, levando a questionar, para quem a sua queda seria tão enunciada e aclamada, para o autor não seria os mais pobres, a não ser segundo o autor, em seus temores irracionais. Os sucessivos acontecimentos após a demissão de Necker trouxe temor e revolta para a população mais pobre e pouco instruída, ao som de provocadores violentos e “jovens vibrantes de cólera” a população ficava cada vez mais irascível, nessa revolta já ciente da luta armada escolheram o verde a cor da esperança para se marcarem e a luta se deu início onde eles, os insurretos, saíram vitoriosos. Mais a frente o autor segue questionando a motivação dessa revolta, se fora motivação política ou um motim de fome, ele aponta o papel dos agitadores e dos jornalistas, e também diz que uns poderiam ser pagos, e que não desconsidera a espontaneidade de outros. Em Versalhes o medo crescia entre os deputados que tentavam em vão persuadir o rei, que endurecido apenas fazia aumentar a cólera, em Paris o medo se instaurara, era uma cidade em guerra. Norgaret nos mostra como o povo conseguira armas para o arrombamento da instituição, ou parte deste povo: os bêbados, vadios, ladrões, pagos para fazer arruaça, conseguiam armas dos provocadores, e também relativiza a participação dos burgueses, apontando a porcentagem deles, também mostra que a participação de militares era magnânima, e alguns participaram da guerra de independência nas antigas Treze Colônias. A composição da multidão da Bastilha é desconhecida, mas podia ver através dos diálogos postos no texto que ela causava reações variadas, principalmente nos soldados que cercavam a cidade. Eram horas de embates e mortes e a multidão cada vez mais revoltosa não recuava, ele mostra os diálogos, os pensamentos de alguns numa maneira do leitor entender o que se passava no momento. O rei estava alheio a tudo e a revolução avançava debaixo de seu “nariz”, em Versalhes viu perder o seu poder para Paris. A Revolução de 14 de julho de 1789 não poderia ser vista como uma fatalidade, ela tinha em si a espontaneidade e um tom provocador, e a queda da Bastilha era o símbolo do feudalismo e do absolutismo que desmoronava junto com as suas estruturas. A Europa se entusiasmava com a redução dos poderes reais, enquanto Paris mergulhava no ardor da violência, com várias execuções de homens públicos.
As consequências da Revolução foram à anulação do poder do rei e de seus agregados políticos, em tese a Revolução foi causada como reação aos medos e imaginações do povo em relação aos governantes. Abolição dos privilégios da nobreza, o fim das marcas do Antigo Regime pelos homens que mais a frente se chamariam Jacobinos, a elaboração de uma constituição por uma assembleia pressionada. A participação das mulheres nas insurreições se tornou cada vez mais marcante, se vê ao longo do texto várias provas de seu crescimento no movimento. O movimento revolucionário estava cada vez mais fora de controle o que levou a mecanismo de manobra que o minaram e o fizeram morrer definitivamente em 1792.
Segundo o autor a Revolução foi o marco de significações incógnitas levadas por um medo e temor imaginário. Mas a frente ele desenvolve um argumento do que poderia ter sido evitado para que essa “insurreição, não viesse a ter à proporção que tomou— a Revolução”. Primeiro, o aparelho repressivo da Corte; caminhando junto a sua inércia com relação aos acontecimentos, a monarquia pouco afinada com o povo; sua distância foi gritante, um povo instável; violento e desorientado que levou a França ao início do terrorismo. E para chegar a esse argumento, ele apontou a fragilidade do período sucedido pelo Terror. Aos duzentos anos da Revolução Norgaret enxerga naquele povo uma espécie de “identidade francesa” (p.116), o progresso e o rancor fazem parte desse momento. Para o autor a França deve a monarquia tanto quanto a Revolução de julho, que também teve quase o mesmo fim da monarquia com o advento das restaurações e impérios ao longo do século XIX, sendo recuperado em meados da década de 1880, sendo lembrada como o momento de democracia, união e liberdade na França. Ao final de sua obra o autor insere um texto por nome A obra dos sete dias, de autoria de Jean Duasux─ na época dos acontecimentos um fiscal de impostos militares que mais a frente será deputado, que será publicado um ano depois da Revolução, este sendo uma “bíblia” para os Revolucionários comemorando a vitória de seu pleito.
Norgaret, trabalhando com as fontes escritas e estimativas de sensos, refez certas visões sobre a Revolução Francesa inserindo o povo menos afortunado como parte dela. Apontou fatores como a fome, os temores e espontaneidade, contudo foi sóbrio ao acrescentar que o povo também poderia ser manipulado, com a participação de provocadores, contudo se afastou de analisar o 14 de julho como uma “Revolução Burguesa”. O autor descreveu uma nobreza apática, e uma burguesia pouco participativa, logo, quem teria maior estrelato nos acontecimento de 1789 foram os militares, estes motivados com a independência das Treze Colônias. A figura do rei vista com preconceito, apenas estava cego às petições do povo devido ao seu afastamento. Por fim a Queda da Bastilha teve mais representação simbólica do que prática, lhe dando um tamanho maior que na realidade era. De certo que, algumas críticas podem ser feitas sobre esse momento, o que iria requerer um grande estudo para tal, mas sem dúvida esse livro remonta uma nova perspectiva da Revolução, tentando entender como “um prédio em ruínas” tornou um símbolo no imaginário que se perpassou até os duzentos anos da qual esta surpreendente obra fora escrita.
Resenhistas
Maria das Dores Gomes Sales – Graduanda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: salesmariagomes@gmail.com
Jizar Marques – Graduanda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: jizarmarques@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
CHAUSSINAND-NOGARET, Guy. A Queda da Bastilha, o começo da Revolução Francesa. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1988. Resenha de: SALES, Maria das Dores Gomes; MARQUES, Jizar. Laboratórios de História. Rio de Janeiro, ano 2, n. 2, p.223-228, jun. 2018. Acessar publicação original [DR]