A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo | Verónica Gago
Verónica Gago é doutora em ciências sociais e professora na Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade de San Martín (UNSAM), além de pesquisadora e autora de diversos artigos sobre economia popular, economia feminista e teoria política. Faz parte do Coletivo NiUnaMenos, surgido em junho de 2015 após episódios brutais de feminicídios contra jovens mulheres de países da América Latina, como Argentina, Chile e Uruguai. O coletivo se tornou atuante na luta contra o feminicídio em toda a América Latina, sendo também responsável pelas mobilizações a favor da Greve Internacional Feminista e pela recente conquista da descriminalização do aborto na Argentina. É a partir desta visão e vivência em espaços de luta que a autora apresenta “A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo”, título traduzido para o português na edição brasileira, publicada em 2020, pela Editora Elefante.
O livro é composto por oito capítulos, os quais trazem os fundamentos para as oito teses sobre o atual feminismo transnacional defendidas por Gago, em um tom de manifesto, convidando a “experimentar o deslocamento dos limites em que nos convenceram a acreditar e que nos fizeram obedecer” (GAGO, 2020, p. 10). Ao longo de cada um deles, a autora trabalha argumentos que nos levam à visão de que “a greve só é geral porque é feminista” (GAGO, 2020, p. 229), visto que o movimento feminista atual é marcado de massividade e radicalidade, as quais refletem sua marca transnacional ao se fazer presente em diversas lutas, e por uni-las. Com isso, chega-se à conclusão de que se as mulheres pararem, o mundo para.
A obra é revolucionária na medida em que a autora dialoga com a trajetória de mulheres latino-americanas, além de conter importante bibliografia feminista, como: Angela Davis, Audre Lorde, Kimberlé Crenshaw, Nancy Fraser, Wendy Brown, Cinzia Arruza, Rita Segato e Raquel Gutiérrez Aguilar, dentre outras. Em uma constante troca de convergências e contrariedades surgem novas considerações sobre o movimento feminista atual e suas possibilidades de potência. Ainda há certa inovação e contraposição a Marx, sobretudo pelo argumento de que o caráter geral da greve é decorrente do feminismo e não do perfil geral de trabalho (assalariado, sindical e universal), o qual carrega marcas de uma realidade masculina.
No primeiro capítulo, a autora foca sua análise na greve, considerando-a um processo, algo ainda em desenvolvimento, mas capaz de impulsionar o movimento feminista internacionalmente. Esse impulso seria decorrente da relação entre as violências econômicas e aquelas concentradas contra os corpos das mulheres e corpos feminizados, ambas vinculadas à “justaposição de formas de exploração do capitalismo contemporâneo” (GAGO, 2020, p. 23). Esse impulso também se relaciona com o desejo propulsor das mulheres em buscar sua independência e seu próprio destino, fazendo com que se afastem da imagem de vítimas e do luto, ambos decorrentes das violências vividas. Assim, as mulheres se situam como sujeitos de direitos a partir de sua própria potência.
Dentre as possíveis alternativas para a articulação do movimento feminista, as assembleias se mostram como uma ferramenta eficaz de percepção e avaliação das possibilidades existentes. Sob essa perspectiva, as assembleias vão além das considerações sobre os trabalhos assalariados e passam a se preocupar também com os trabalhos socialmente considerados invisíveis: realizados no ambiente doméstico, na condição de dupla e/ou tripla jornada das mulheres, que resultam em uma exploração capitalista-patriarcal-colonial. Assim, dialogando com Luxemburgo (1970), a autora defende que a greve feminista é sentida como algo urgente e potente, destacando que “não se trata apenas de buscar reconhecimento pelo trabalho invisível, mas também de rechaçálo” (GAGO, 2020, p. 48).
No segundo capítulo, o foco está na análise da violência contra as mulheres e contra os corpos femininos para além das questões de gênero, conectando-as a outras formas de violência próprias da sociedade capitalista. Para elucidar essa verdadeira guerra contra as mulheres, a autora destaca quatro pontos essenciais: violência doméstica marcada pela crise do homem provedor (o qual se torna impotente diante dos empregos precários e com remunerações insuficientes); autoridade nos bairros populares contra alternativas à obtenção de recursos (obtenção que, no âmbito da economia popular, é protagonizada pelas mulheres); espoliação de terras e recursos por empresas transnacionais (destacando que a questão do extrativismo também é essencial para a análise do cenário atual); e financeirização da vida social que acarreta, dentre outros fatores, o superendividamento da população com menos recursos financeiros.
Dialogando também com Segato (2014), a autora evidencia que atualmente as violências contra as mulheres podem ser consideradas novas formas de guerra, destacando que se trata de uma violência de caráter feminicida, devido às formas brutais com que são praticadas. Aproximando-se de Federici (2018), a autora expõe que o patriarcado do salário, ao se aliar com a precariedade das atuais condições do trabalho, resulta no declínio da imagem do homem provedor que desconta sua frustração e impotência contra as mulheres no ambiente doméstico. Interessante ponto destacado é que, ao mesmo tempo em que são cometidas mais violências e de formas cada vez mais desumanas, há uma tendência em considerá-las como casos excepcionais ou patologias, numa tentativa de “desculpar as masculinidades violentas” (GAGO, 2020, p. 80).
Ainda ao lado de Federici (2017), a autora também destaca que a guerra contra as bruxas persiste na sociedade atual, mas se manifesta em outros corpos, territórios e conflitos, gerando um estado de guerra constante contra as mulheres. Nesse sentido, inicia a compreensão de que o conhecimento dos saberes do corpo é uma potente ferramenta de luta contra as violências interseccionadas da sociedade capitalista, pois permite o reconhecimento de um corpo-território, conceito que é apresentado no capítulo seguinte.
Em sua terceira tese, Gago destaca os corpos femininos como campo de batalha, o qual, na sociedade contemporânea, é tratado de forma semelhante às colônias. Há um interesse na subordinação e exploração de cada corpo e também do corpo coletivo. Neste sentido, o movimento feminista se mostra como ferramenta de insubordinação de caráter anticapitalista e anticolonial, já que vê o corpo como “uma força de perseverança na existência que sempre é coletiva e individualizada” (GAGO, 2020, p. 110). Assim, esse corpo-território deve ser lido, antes de tudo, como uma ideia-força.
Neste sentido, a autora questiona qual espaço permite a criação desse corpoterritório de luta e nos responde que é justamente o espaço oposto àquele que o violenta, ou seja: as ruas. Assim, “tomamos a rua e fazemos dela uma casa feminista” (GAGO, 2020, p. 128).
Seguindo este argumento, a autora destaca a importância de reconhecer o extrativismo numa visão ampliada e de compreendê-lo como um regime político, já que exige uma colonização permanente de recursos que vão além dos naturais e que também se situam sobre os corpos femininos. Por isso, há uma preocupação em controlar a potencialidade (de resistência e de luta) desses corpos, assim como ocorre na discussão pela descriminalização do aborto.
No quarto capítulo nos é apresentado o conceito de economia feminista e como esta é capaz de ampliar a análise da economia em si, ao relacioná-la com “a divisão sexual do trabalho e os modos de opressão do desejo” (GAGO, 2020, p. 143). A proposta é que não se crie um capítulo próprio, mas sim que a análise econômica seja reformulada. Nesse sentido, a autora ressalta que o protagonismo de lideranças feminizadas nas economias populares gera um prestígio social que permite o surgimento de novas formas de autoridade.
Trazendo a experiência argentina para o debate, a autora destaca a realidade das “filhas das piqueteras”, crianças que acompanhavam suas mães e demais familiares em assembleias de desempregados e que atualmente integram os movimentos relacionados à economia popular, além de outros movimentos potencializadores, como a #DesendeudadasNosQueremos. Com isso, é evidenciado que “as lutas feministas impulsionam um movimento de politização e coletivização do problema financeiro que propõe especificamente uma leitura feminista da dívida” (GAGO, 2020, p. 163). Neste capítulo, a financeirização, o endividamento e as precárias condições de trabalho integram a noção de extrativismo ampliado, mostrando que, atualmente, tornou-se comum “trabalhar cada vez mais, por cada vez menos dinheiro” (GAGO, 2020, p. 174).
No capítulo intitulado “Assembleias: um dispositivo situado de inteligência coletiva”, a autora retoma a perspectiva da greve feminista, revelando as assembleias como uma ferramenta capaz de atribuir soberania ao que é decidido coletivamente. Destacam-se três potências que são próprias das assembleias: a avaliação da situação concreta; a capacidade estratégica de decisão política; e a concretização de suas decisões. Assim, é possível elaborar “um diagnóstico feminino da crise” (GAGO, 2020, p. 189).
Um ponto muito interessante trazido pela autora é que as assembleias permitem a reapropriação do espaço da greve por dentro do movimento sindical, e que a perspectiva feminista, necessariamente, inclui neste debate outras formas de trabalho que eram sequer consideradas. Desse modo, a lógica das assembleias permite a criação de uma soberania e inteligência popular a partir de um espaço coletivo de decisão. Ao final, aproxima-se de Butler (2015) no sentido de reconhecer a assembleia como uma conexão de corpos na medida em que ocupa variados espaços e atua com força comum, ou seja, atribui performatividade à insurgência cotidiana, seja em uma marcha ou ocupação, por exemplo.
No sexto capítulo é destacada a Internacional Feminista, evidenciando que, nos últimos anos, a força do feminismo tem partido do Sul e está enraizada na América Latina. Também é elucidado que não há uma estrutura centralizada, ao passo que o feminismo se faz presente em diversas lutas e territórios, o que lhe permite ser onipresente e criar vínculos, mas sem homogeneizar seus grupos. Três territórios se destacam neste transnacionalismo feminista: os indígenas e comunitários, o doméstico e os de precarização.
Gago aponta argumentos de que a greve só é geral porque é feminista, pois reconhece diversas lutas e distintos corpos-territórios que se relacionam em um corpo comum, que é a própria greve feminista. Dessa forma, enfatiza que “multiplicidade não é dispersão, mas a forma de estar à altura da heterogeneidade de tarefas que realizamos e de imperativos que passamos a desobedecer quando decidimos parar” (GAGO, 2020, p. 230). Essa lógica de conexão também se relaciona com a interseccionalidade, mostrando que há uma convergência de lutas, as quais são dotadas de massividade e totalidade através de suas diferenças. Nesta seção, a autora também traz uma abordagem diferenciada sobre a relação entre neoliberalismo e populismo através de uma perspectiva feminista sobre o que se entende por soberania popular.
No penúltimo capítulo, é argumentado como o feminismo atualmente é visto como um inimigo a ser combatido por certos grupos sociais. Dentre as principais contraofensivas que se ocupam na construção desse imaginário, a autora destaca a eclesiástica, moral, econômica e militar.
Dentre vários outros fatores, o discurso da ideologia de gênero se sobrepõe por ser visto como uma ameaça às leis seculares que comandam as sexualidades, a reprodução e a família. Esses fatores se aliam aos interesses neoliberal e neofascista, preponderantes nas últimas eleições presidenciais na América Latina, os quais buscam destacar os valores familiares para mascarar seus reais interesses.
Também converge nesse sentido a relação entre confinamento, dívida e biologia. Isso porque o endividamento, a reprodução e as restrições impostas às mulheres (sobretudo no campo do trabalho) e as críticas às economias popular e feminista, compõem os fatores necessários para a aliança entre neoliberalismo e conservadorismo.
No que se refere à contraofensiva militar, a autora destaca como nos últimos anos tem crescido o número de trabalhadores da segurança pública acusados de feminicídios, retomando a lógica da crise do homem provedor, e enfatizando como ocorre o cruzamento de diferentes formas de violências contra as mulheres e os corpos feminizados, destacando seu caráter feminicida.
No último capítulo, Gago apresenta suas oito teses sobre a revolução feminista, buscando evidenciar como o movimento atual, a partir da sua multiplicidade de lutas, é capaz de articular uma dinâmica antineoliberal pensada a partir do Sul e da realidade de suas camadas populares. No geral, as teses retomam de forma mais sucinta os argumentos trazidos ao longo de todo o livro, sempre evidenciando o caráter anticapitalista do atual movimento feminista.
Ao final da obra, há também um trecho de uma entrevista com a autora, traduzida para o português como “No centro da revolta global, o feminismo” e publicada no blog Outras Palavras, em novembro de 2019.
O livro é bastante completo em suas análises e argumentos, deixando claro como há diversas formas de violência estruturais e que se interseccionam na sociedade atual, mormente as de caráter econômico que se alinham aos propósitos neoliberais, e também à tendência neofacista dos anos mais recentes, sobretudo na América Latina.
Trazendo a perspectiva feminista, as realidades e bibliografias do Sul, o diálogo trazido se mostra também essencial para a percepção de melhores ferramentas capazes de articular e de (re)pensar as estratégias de luta e resistência feminista, além de compreender que as teorizações não podem se afastar dos corpos que estão envolvidos e resistindo no ambiente social. Assim, pensar os corpos como um território de potência e de luta traz, simultaneamente, força e potência para que o movimento feminista, analisado sob a ótica da greve geral feminista, seja uma ferramenta inclinada às profundas transformações sociais e em variados contextos.
Referências
BUTLER, Judith. Notes Toward a PerfomativeTheory of Assembly. Londres: Harvard University Press, 2015. [Ed. bras.: Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Trad. Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018].
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: corpos, mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.
FEDERICI, Silvia. El patriarcado del salario: Crítics feministas al marxismo. Buenos Aires: Tinta Límon, 2018.
GAGO, Verónica. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo / Verónica Gago; tradução de Igor Peres. São Paulo: Elefante, 2020.
LUXEMBURGO, Rosa. Huelga de massas, partido y sindicato. Trad. Nora Rosenfeld e José Aricó. Córdoba: P&P, 1970 [1906]. (CuadernosPasadoy Presente n. 13) [Ed. bras.: Greve de massas, partido e sindicato. São Paulo: Kairós, 1979].
SEGATO, Rita. Lasnuevas formas de la guerra y el corpo de lasmujeres. Puebla: Pez enelÁrbol. 2014.
Resenhistas
Eduarda Maria Murad – Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: muradeduarda@gmail.com
Lorena De Oliveira – Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: lorenadeoliveira03@gmail.com
Referências desta Resenha
GAGO, Verónica. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. Trad. Igor Peres. São Paulo: Elefante, 2020. Resenha de: MURAD, Eduarda Maria; OLIVEIRA, Lorena De. Novos contornos do feminismo a partir do sul: greve geral e potência. Mandurarisawa. Manaus, v.5, n.2, p.430-436, 2021. Acessar publicação original [DR]