Se a doença é o lado reversível do amor, segundo Thomas Mann, então, como paixão transformada, ela manifesta elevados níveis de sensibilidade e transcendência que freqüentemente conduzem o ser humano a realizar obras inesperadas. Seja ela transformada num estado espiritual transcendente, numa descoberta profissional ou numa obra literária, a doença tem sido uma musa inspiradora para a arte e a ciência. E é o ofício do literato que tem beneficiado significativamente a simbiose doença/amor, numa perspectiva romântica, porém, ainda em voga nestes tempos pós-modernos se levarmos em conta a manifestação cada vez mais crescente de escritas e escritores inspirados pela “paixão transformada”.
Nesta linha, temos uma obra histórico-literária do médico-escritor Moacyr Scliar» sobre os momentos-chave da medicina mundial. Lendo o livro dos dois pontos de vista — literário e científico —, o leitor apercebe-se das qualidades e vantagens do duplo ofício de que o próprio autor vem se constituindo há tempos num exemplo vivo. A partir de citações extraídas de textos literários, memórias, diários, ensaios e aforismos escritos por médicos, escritores e médicos-escritores como Miguel Torga, William Carlos Williams e Oliver Sacks, Moacyr Scliar apresenta, através de comentários e interpretações que geralmente não excedem duas a três páginas, um vasto panorama da medicina e da sua história, sobretudo esta sendo uma história de vozes — as vozes misteriosas do corpo, da alma, da doença, do médico e do escritor. Como numa consulta médica, estas vozes nos falam de tal forma que cada leitor pode se identificar com o drama pessoal de cada enfermidade. Aliás, o livro consola o leitor contemporâneo pelo seu retrato íntimo da medicina visto através das suas múltiplas descobertas, errâncias e incertezas, desde a Antigüidade até nossos dias. É a abordagem honesta do perfil da medicina com seus altos e baixos que torna a leitura deste livro tão reveladora, pois demonstra como esta ciência é decididamente humana e que os caminhos para descobrir uma cura passam por um processo longo e árduo.
A partir de um aforismo do famoso Hipócrates, o pai da medicina, Scliar estabelece o tom da narrativa porque ilustra como o exercício da medicina é uma forma de arte: “A vida é curta, a Arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganadora, o julgamento difícil.” Esta ligação ciência/arte percorre o livro e fornece ao seu autor a temática principal para a abordagem literária porque é através do discurso artístico ou memorialista que a medicina e a sua história vão ser articuladas e evocadas humanisticamente.
Desde a Bíblia, onde aprendemos que o Velho Testamento é o domínio da saúde pública em termos de higiene pessoal e ambiental, enquanto o Novo Testamento promove a medicina curativa e individual, o texto escrito é consagrado como uma fonte de conhecimento e revelação. Assim, este volume é repleto de informações sobre curas, superstições, rituais, remédios, magia, anatomia, pestes, tratamentos, epidemias, e sexo — todo o drama do corpo comunicado através de anedotas, crônicas, ficção, explicações etimológicas e análise literária. Com o exemplo de Leonardo Da Vinci a passar noites no necrotério de Santo Spirito em Roma, dissecando cadáveres para identificar estruturas anatômicas como subsídios para a sua arte, é que aprendemos que o tabu do corpo morto é finalmente rompido, representando uma verdadeira vitória do espírito renascentista. Ou durante o século XVIII, como o termo “depressão” desloca a palavra “melancolia”, mas já antes, com o trabalho anterior de Robert Burton (1577-1640), que escreveu A anatomiada melancolia, observamos o advento da psicoterapia evocada nestas belas palavras: “O sofrimento escondido estrangula a alma, mas quando o revelamos a algum amigo discreto, seguro, afetivo, é instantaneamente eliminado. O conselho de um amigo, como o vinho da mandrágora, atenua nossas preocupações.”
Noutra linha, mini-histórias de práticas medicinais contribuem para iluminar aspectos da história de uma cultura, por exemplo, a brasileira que é perfilada como relativamente salubre antes do primeiro contato com o europeu. E a história fascinante dos jesuítas e suas enfermarias que mais tarde deram lugar às santas casas da irmandade da misericórdia fundadas em meados do século XVI. Estas indicações se dirigem a outras, como a regulamentação do exercício da profissão de físico, de cirurgião e de barbeiro que aconteceu no final daquele século. Aliás, algumas das páginas mais interessantes deste volume são aquelas dedicadas ao pioneiro da ciência no Brasil, o sanitarista e pesquisador Oswaldo Gonçalves Caiz, e também a homens como Carlos Chagas, que se aliou ao grupo de Manguinhos. Apesar de ser breve neste volume, a biografia de Oswaldo Cruz pode ser apreciada no romance Sonhos tropicais de Moacyr Scliar, quando o autor descreve o drama da Revolta da Vacina de 1904 para mostrar “o pudor de uma sociedade ainda conservadora”. Denominado o introdutor da investigação científica no Brasil, Oswaldo Caiz se distingue na era da revolução pasteuriana. O prestígio da saúde pública brasileira estava no seu auge durante a segunda década deste século, depois da importante contribuição brasileira à medicina — a descoberta da doença de Chagas —, do trabalho da equipe de cientistas comandada por Oswaldo Cruz. Estas páginas demonstram como o saneamento no Brasil foi interpretado como panacéia para os problemas de saúde e que a frase de Miguel Pereira, “O Brasil é um imenso hospital”, mostra-se positiva naquela altura por denunciar as péssimas condições sanitárias do país. Dessa forma, observa-se neste livro as peripécias da “paixão transformada” à brasileira e o drama da realidade sanitária no Brasil.
Na seleção e interpretação de textos que compõem a estrutura e conteúdo básicos destelivro, Moacyr Scliar assume integralmente o papel de médico-escritor, contribuindo ao mesmo tempo para a crescente literatura de expressão médica. Acompanhado por uma rica bibliografia e ilustrações clássicas que embelezam a edição e dramatizam vários aspectos da medicina mundial, o volume também oferece uma cronologia útil da história da medicina ao lado de uma história geral e literária que ajudam o leitor a seguir os avanços científicos junto com uma história sócio-cultural da humanidade.
Porém, a pesquisa realizada por Moacyr Scliar não teria tanto valor se não tivesse as suas interpretações perspicazes de médico e de escritor. Além disso, a sua seleção sábia de citações literárias ressalta ainda mais o lado humano da história da medicina. E é por aí que Moacyr Scliar manifesta sua originalidade e paixão, sobretudo com a sua análise de textos literários compostos por escritores e escritores-médicos. Estes aparecem no decorrer do livro, mas ocupam a maior parte das últimas quarenta páginas.
Textos como Doutor Arrowsmitb, de Sinclair Lewis, A cidadela, de Archibald Joseph Cronin, e Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo, revelam o entusiasmo pela pesquisa, pelo idealismo da medicina e pela missão ou destino social desta profissão. Estas obras transmitem a resistência contra a inevitável comercialização da medicina, mostrando a autêntica paixão que certos homens da ciência sentem e defendem. Ao mesmo tempo, vale destacar como Moacyr Scliar reserva um lugar apropriado para a medicina brasileira dentro da história da medicina universal. As conquistas da medicina brasileira recebem uni tratamento adequado neste volume, pois elas são perfiladas para mostrar como o desenvolvimento da medicina e seu prestígio no Brasil refletem a própria experiência cultural e histórica do país. Este prestígio é realçado nas páginas dedicadas a Mário de Andrade e ao seu Namoros com a medicina (1939), onde o escritor paulista declara sua grande afinidade com a profissão médica. Ao justapor medicina com musicologia e folclore, Mário demonstra sua erudição quando estabelece uma correspondência entre “ritmos musicais e ritmos orgânicos”. Antropológico, literário e científico, o texto de Mário representa uma curiosidade perante o resto de sua obra e por isso ilustra a admiração que o modernista mantinha pela profissão de médico até ao ponto de fantasiar estar num hotel ou em qualquer lugar público onde preferiria assinar “dr. Mário” em vez de simplesmente “Mário”.
O capítulo sobre Mário denota esta comunhão entre literatura e medicina como algo especial porque esta serve muitas vezes como alimento para a expressão literária. Nestes momentos, o leitor sente um apelo da parte de Scliar para que o médico adote um papel mais humanista no exercício da sua profissão. Para um médico e literato sensível, a presença do ser humano se assenta não apenas no corpo, mas também na alma do paciente, a zona onde, segundo o médico-escritor norte-americano, William Carlos Williams, “o médico tem a preciosa oportunidade de ver as palavras nascerem”. Aí o poder das metáforas que, segundo Susan Sontag, nasce dos mitos e das fantasias sobre a doença e freqüentemente representa uma “consciência coletiva” face a angústia ou depressão que atinge um grande número de pessoas. Certamente é o caso do escritor William Styron que, com seu livro sobre a própria depressão, Darkness visible, atingiu uma densa expressão com metáforas penetrantes como a de uma “tempestade uivando no cérebro”. Com esta obra, Styron consagrou o papel importante da literatura porque sublinhou a necessidade de encarar a doença de modo enfático para que seu tratamento e cura possam ser finalmente realizados.
Ao finalizar o livro com um texto do escritor brasileiro Caio Fernando Abreu, que faleceu de Aids em 1996, Moacyr Scliar indiretamente faz outro apelo para a necessidade de maior conscientização perante a realidade desta doença ubíqua e, sobretudo, em face da caiei hipocrisia que atrasou pesquisas valiosas e prejudicou uma cura mais rápida. Assim, de forma realista, o livro reitera o drama brutal da doença, a vulnerabilidade da medicina e, nesse caso, a perda para a literatura. Em vez de ser uma simples apologia, este livro estabelece um balanço entre os sucessos e as derrotas da medicina. Ao mesmo tempo, como se sentisse obrigado a exercer o ofício de médico-escritor para afastar o desespero e a dor, Moacyr Scliar apropriadamente termina o texto com um toque humanista ao empregar estas palavras de Caio Fernando Abreu: “A vida grita. E a luta continua.
Resenhista
Nelson H. Vieira – Pesquisador da Brown University.
Referências desta Resenha
SCLIAR, Moacyr. A paixão transformada: história da medicina na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Resenha de: VIEIRA, Nelson H. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.3, n.3, nov. 1996. Acessar publicação original [DR]
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