A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de | Michel Foucault

Resultado de sua aula inaugural no Collège de France em 1970, A Ordem do discurso, constitui a obra no qual Michel Foucault se debruçará, sobre a produção dos discursos que permeiam na sociedade, assim como quem pode atuar na produção dos mesmos. A obra pode ser dividida em duas partes, na primeira, Michel Foucault expõe como se dá a produção dos discursos, os procedimentos que atuam no controle de sua produção, assim como os procedimentos que visam delimitar, os sujeitos que podem atuar na produção discursa. Já na segunda parte, o pensador anuncia como se dará seus trabalhos de investigações no decorrer dos cursos no Collège de France, apontando para aquilo que ele denominará de “conjunto crítico” e “conjunto genealógico”. Exploraremos cada uma dessas duas partes.

Partimos no momento à análise da primeira parte da obra. Foucault percebe o discurso como “reverberação” de uma verdade que nasce diante dos olhos do próprio sujeito. São enunciados materialmente existentes, podendo ser tanto escrito como pronunciado, proposições que adquirem caráter de verdadeiras passando a constituir princípios aceitáveis de comportamento (FOUCAULT:2013).

Ao mesmo tempo Foucault afirma que os discursos devem ser percebidos enquanto práticas descontínuas, que por ora se cruzam, e por outras se ignoram ou se excluem, atesta ainda, que as imagens, podem atuar tanto na materialização de discursos, assim como atuar como mecanismos de produção e funcionamento dos mesmos.

A noção de discurso em Foucault, em si, já é um acontecimento histórico. Todo discurso (verdadeiro) tem seu polo de produção, nesse sentido, a produção discursiva não é feita de maneira aleatória, mas obedecem aos interesses das instâncias e das relações de poder que a produz. Por ser um acontecimento, o discurso não é imaterial, pois o mesmo se materializa nas práticas sociais dos sujeitos e nele produz efeitos.

O filósofo nos adverte que se deve perceber os discursos enquanto séries distintas de acontecimentos, este deslocamento permite incorporar no cerne do pensamento, o acaso, o descontínuo e a materialidade. Desses três princípios de análise do discurso que Foucault se propõe, o mais complexo, talvez seja o terceiro, que se refere em perceber como os discursos se materializam através das práticas sociais dos sujeitos.

O pensador nos apresenta uma série de mecanismos que tendem a controlar a produção dos discursos na(s) sociedade(s), na medida em que nestas “a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.” (FOUCAULT, 2013:9). Com essa afirmação, Foucault nos mostra que os discursos passam por uma produção que é controlada por aqueles “habilitados” para fazê-lo, podem ainda ser percebidos como práticas discursivas definidas pelos status do sujeito que fala, a partir dos lugares em que este fala, considerando as posições que assume quando fala. O filósofo assevera ainda que as interdições que cercam a produção dos discursos denotam sua ligação com o poder e com o desejo.

Os discursos em Foucault, não são meramente aquilo que manifesta o desejo, mas, se inscreve naquilo que também é objeto de desejo, e completa afirmando que o discurso “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta o poder do qual nos queremos apoderar.” (FOUCAULT, 2013:10).

A concepção foucaultiana de discurso se traduz numa existência destinada a se apagar em um determinado momento, que não cabe a nós decidirmos, se refere a um fazer-se cotidianamente, embrenhado de poderes e ao mesmo tempo perigos, por vezes inimagináveis, pressupõe “lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas palavras, cujo uso a muito tempo reduziu as asperidades” (FOUCAULT: 2013:8).

Foucault nos apresenta os procedimentos de delimitação da produção dos discursos, assim como as imposições aos sujeitos do discurso (aqueles que atuam como produtores de discursos). Em primeiro momento, o pensador expõe os procedimentos externos de controle do discurso, que correspondem a interdição, a separação/ rejeição e a vontade de verdade; estes, determinam os espaços pelos quais os sujeitos podem ou não falar e/ou circular. Há também, os procedimentos internos, que compreendem o comentário, o princípio de autoria, e as disciplinas, estes por sua vez, agem sobre os sujeitos na produção e na circulação dos discursos.

De acordo com Foucault, o primeiro princípio de exclusão, refere-se a interdição, no qual são estabelecidos os direitos e as proibições em relação ao ato de falar. Este princípio interdita a fala ao sujeito, na medida em que não se pode falar de tudo em qualquer lugar e/ou circunstância. Em nossa sociedade, os locais em que se concentram “os buracos negros” da interdição, referem-se ao discurso da sexualidade e da política. Quanto ao primeiro a produção de discursos acerca desta, estão aliados a concepção burguesa de formação familiar, que se restringe ao modelo pai- mãe-filhos, e ao papel da religião, que passou a reprimir o desejo.

O segundo procedimento de exclusão que visa o controle da produção dos discursos, refere-se, a separação/rejeição, que vem ancorada na segregação da loucura, e rejeição do discurso do louco. Isso significa distinguir a loucura, e consequentemente impedir que o discurso do louco circule nos mesmos espaços dos demais sujeitos. Foucault ao separar o discurso verdadeiro do falso, chega-se ao terceiro procedimento de exclusão do discurso, que se refere a vontade de verdade. À verdade, cabe identificar a loucura e definir o louco.

Para Foucault se nos colocarmos no interior de um discurso, “a separação entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta.”. Porém, ao procurarmos saber qual é a vontade de verdade que nos atravessou durante séculos da história da humanidade “o tipo de separação que rege nossa vontade de saber, é então talvez algo como um sistema de exclusão (…)” (FOUCAULT, 2013: 14).

A vontade de verdade é atravessada por um aparelho institucional, sendo ao mesmo tempo reforçada reconduzida por um conjunto de “práticas como a pedagogia”, Foucault (2013:17) assevera ainda, que esta vontade de verdade é “reconduzida mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído”.

Os procedimentos internos de delimitação do discurso, segundo Foucault são: o comentário, que se refere à discursos que são produzidos cotidianamente, com curta durabilidade; e os discursos que suscitam novos discursos, como por exemplo os textos religiosos e os judiciários. Posteriormente, o princípio de autoria entendido “como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de significações” (FOUCAULT, 2013: 25). O autor abarca o conjunto de relações que, conscientemente ou não, internas ou externas, posicionaram, reordenaram e constituíram signos e objetos de forma a atuar na construção do discurso. Se distingue do indivíduo que fala ou escreve um discurso, na medida em que ao realizar um trabalho de escrita, reúne um conjunto de vozes sociais, históricas e ideológicas na produção de um texto.

E em última instância, estão as disciplinas: que possuem em seu interior, um domínio de objetos específicos, como definição de métodos, proposições consideradas como verdadeiras, em “uma de sistema autônomo à disposição de quem pode servir-se dele” (FOUCAULT, 2013:49). Suscintamente podemos dizer, que a disciplina compreende um conjunto de “métodos” que possibilitam a construção de novos enunciados, na medida em que a existência da disciplina pressupõe a “possibilidade de formular indefinidamente proposições novas” Foucault (2013:29).

Os procedimentos de controle e delimitação do discurso, sugerem que o mesmo seja compreendido como prática, envolvendo sujeitos e situações de enunciação.

Dadas as considerações a respeito do controle da produção dos discursos, Foucault afirma que ainda há um grupo de procedimentos que visam impor aos sujeitos que os pronunciam, um conjunto de regras, que agem também como meio de impedir que todos tenham acesso aos discursos, pois segundo Foucault (2013:35) “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo”. Isso se dá, pois de acordo com o pensador, nem todas as áreas do discurso são abertas, sem proibições à disposição de todos os sujeitos que falam, algumas são restritivas.

As imposições de regras aos sujeitos, implica em impor determinações dos papeis dos mesmos na produção dos discursos. Nessa, perspectiva o primeiro procedimento diz respeito ao ritual, que define a qualificação que deve possuir os sujeitos que falam, (FOUCAULT, 2013:37), é preciso ainda ser autorizado para falar, em um momento específico.

Outro procedimento, se refere a sociedade de discurso cuja função é conservar ou produzir discursos, que circule somente em um espaço fechado. As doutrinas, outro procedimento de imposição de regras aos sujeitos que falam, busca, como assevera Foucault refere-se ao compartilhamento de um conjunto de discursos entre os indivíduos, que definem uma pertença recíproca, na medida em que “a única condição requerida é o reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de certa regra (…) de conformidade com os discursos validados (…)”. (FOUCAULT, 2013: 40).

A doutrina promove tanto a sujeição dos sujeitos que falam aos discursos, como dos discursos aos sujeitos. O último procedimento, a qual Foucault (2013: 41) faz menção, é a apropriação social dos discursos, referindo-se ao sistema educacional, por meio do qual todo indivíduo tem acesso a muitos discursos, sendo ainda, um mecanismo de “modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”.

Esses procedimentos, segundo Foucault se interligam, constituindo uma espécie de conjuntos, que visam promover a distribuição dos sujeitos que falam nos diversos discursos, assim como a apropriação de discursos por categorias específicas de sujeitos.

O pensador, elenca ainda, quatro princípios, pelo qual se deve analisar/perceber o discurso; o primeiro diz respeito, a inversão que refere-se a uma necessidade de inverter a percepção do sujeito quanto a origem dos discursos. O segundo princípio, a descontinuidade pressupõe que, o discurso enquanto práticas, seja visto como descontínuo, suscetíveis a rupturas. Outro princípio que circunscreve o discurso é a especificidade, que nos leva a duvidar das obviedades, das significações prévias, ou ainda como adverte Foucault (2013:50) “não imaginar que o mundo nos apresenta uma face legível que teríamos de decifrar apenas”. Além desses, Foucault apresenta ainda, o quarto e último princípio, o da exterioridade que implica em considerar as ordens externas de possibilidades do discurso.

Nos voltamos agora, à segunda parte do livro. No “conjunto crítico”, Foucault inicia analisando as funções de exclusão, referente a separação entre razão e loucura. Posteriormente, o filósofo, propõe analisar o sistema de interdição da linguagem, se tratando do silenciamento acerca da sexualidade na Idade Moderna. No entanto, o pensador, declara que voltará sua análise ao terceiro sistema de exclusão, ou seja, à vontade de verdade, inicialmente a situando na época da sofística, ainda em Sócrates, afim de perceber como o discurso verdadeiro, foi aos poucos se separando do discurso tido como falso.

Nessa perspectiva, Foucault propõe analisar, uma série de temáticas ao longo do tempo, tais como medir os efeitos dos discursos com pretensão científica sobre o conjunto de práticas prescritas pelo sistema penal, a análise dos procedimentos de limitação dos discursos, como o princípio de autoria, o comentário e o da disciplina, enfim um gama de discussões que seriam debatidas ao longo do tempo, em que estaria atuando no Collège de France.

O outro conjunto, que ele denomina de “genealógico”, se refere à análise da formação efetiva dos discursos, seja no interior dos limites do controle, quer no exterior, “na maior parte das vezes, de um lado e de outro da delimitação” (FOUCAULT, 2013:61). A análise assim pretendida, volta-se em perceber a formação dos discursos, procurando apreendê-lo em seu poder de afirmação, aqui entendido como a capacidade de constituir domínios de objetos, a partir dos quais se poderia afirmar ou não proposições verdadeiras ou falsas.


Resenhista

Giuslane Francisca da Silva – Mestranda em História pela UFMT. E-mail: giuslanesilva@hotmail.com


Referências desta Resenha

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad.  Laura Fraga de Almeida Sampaio. 2 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013. Resenha de: SILVA, Giuslane Francisca da. Outras Fronteiras. Cuiabá, v. 2, n. 1, p. 163- 168, jan./ago.2015. Acessar publicação original [DR]

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