A OMC e os desafios do Sistema Multilateral de Comércio | Meridiano 47 | 2015
Em 1995, entrou em funcionamento a Organização Mundial do Comércio (OMC) — um dos muitos resultados da Rodada Uruguai de negociações comerciais multilaterais (1986-1994), que colocou em vigor diversos atos multilaterais e alguns plurilaterais, entre eles o acordo constitutivo da OMC.1
A criação da OMC não correu em um vácuo organizacional. Ao final da Segunda Guerra Mundial, uma série de encontros tentou criar uma Organização Internacional do Comércio (OIC). No encontro preparatório de Genebra, em 1947, os negociadores decidiram aproveitar a oportunidade para entabular a primeira rodada de cortes tarifários do pós-guerra, já incorporando os princípios da não-discriminação, do tratamento nacional, da reciprocidade e, mais importante, uma cláusula de nação-mais-favorecida com poucas exceções. Para regular e proteger os resultados dessas negociações, foi instituído um Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), que vigoraria provisoriamente até a criação de uma organização internacional especificamente dedicada ao comércio, o que completaria o tripé institucional da ordem econômica multilateral do pós-guerra, iniciada pelos capítulos monetário e financeiro em Bretton Woods, em julho de 1944. Ao cabo de uma longa conferência diplomática realizada em Havana, de novembro de 1947 a março de 1948, foi criada a Organização Internacional de Comércio (OIC), incorporando todo o conteúdo do acordo negociado em Genebra, e diversos outros dispositivos relativos a emprego, a investimentos e regras institucionais. O Congresso americano, no entanto, falhou em aprovar a Carta de Havana: o resultado foi o funcionamento provisório GATT, a partir de 1948, até a criação da OMC. Arranjos ad hoc permitiram a instalação de um secretariado, dirigido por um Diretor Geral (geralmente europeu), ademais de arranjos incipientes para a solução de controvérsias comerciais entre as Partes do acordo.
Os princípios basilares do GATT sempre foram a não-discriminação, o tratamento nacional, a reciprocidade e o uso da tarifa aduaneira como mecanismo central de regulação do comércio internacional. O primeiro desdobra-se na concepção da cláusula da nação mais favorecida (Artigo I do GATT) e na ideia de tratamento nacional (Artigo III). Isso significa que os signatários do Acordo, chamados de Partes Contratantes, não podiam discriminar seus parceiros comerciais e tampouco dar melhor tratamento a seus produtos e nacionais. O terceiro partia da premissa que negociações multilaterais para a redução do protecionismo seriam esforço periódico, empreendido de forma equilibrada entre as Partes, e pautadas pela troca de concessões tarifárias relativamente equivalentes entre os participantes do esforço liberalizador. Elas seriam “consolidadas” em um instrumento que se anexaria ao Acordo, ficando os participantes proibidos, em princípio, de elevar suas tarifas acima do nível acordado nas listas de concessões. Mais adiante, as Partes Contratantes em desenvolvimento, reconhecidas como tais pelas Partes mais avançadas, obtiveram o reconhecimento formal de um tratamento especial e mais favorável em seu favor, logrando obter concessões e facilidades sem a obrigação de oferecer concessões equivalentes (o que foi consolidado, na década de 1960, em um novo capítulo do GATT, a Parte IV, e no Sistema Geral de Preferências).
No intervalo, o Brasil, parte original ao acordo e à conferência de Havana, recompôs a integralidade da sua tarifa comercial (em 1957), defasada desde os anos 1930, e teve de renegociar sua adesão ao acordo geral, em vista de aumentos, por vezes significativos, de alíquotas tarifárias, no quadro de uma política comercial deliberadamente protecionista e conscientemente industrializante. O relativo fechamento do Brasil ao comércio internacional se acentuaria nas décadas seguintes, fazendo do país uma das economias menos abertas aos intercâmbios globais, proporcionalmente ao seu peso no PIB global.
Foram conduzidas oito rodadas de negociações entre 1947 e 1994. As primeiras geralmente duraram poucos meses e abrangiam poucos países. Após a Rodada Dillon (1960-61), contudo, um padrão emergiu. Os ciclos tornaram-se mais longos, durando anos, e abrangendo mais tópicos que os simples cortes tarifários. Durante a Rodada Kennedy, criou-se um Código Antidumping. Na Rodada Tóquio, a expansão do regime para aspectos regulatórios internos que afetavam o comércio se acelerou.2 Na Rodada Uruguai, por sua vez, esse fenômeno foi consolidado com a regulação de aspectos de propriedade intelectual e de investimentos relacionados ao comércio internacional, serviços e outros temas; componente importante dos acordos então fechados, a despeito de suas limitações, foi a conclusão de um acordo agrícola, introduzindo, pela primeira vez, normas para o comércio mundial de produtos do setor primário, muito embora sua aplicação ainda seja objeto de muitas controvérsias. A negociação desenrolou-se durante a derrocada do socialismo e a incorporação de novos atores à divisão internacional do trabalho. Tal contexto permitiu a criação da OMC, que por sinal não estava previsto em seu mandato original, aprovado em Punta del Este, em setembro de 1986. Além da novidade institucional, os resultados do ciclo negociador diminuíram as exceções existentes (waivers) e fortaleceram o sistema de solução de controvérsias e o mecanismo permanente de monitoramento da política comercial dos membros (trade policy review mechanism).
A OMC tornou-se o mais importante instrumento de negociações para a liberalização progressiva do comércio internacional e de formulação de novas regras em áreas não originalmente previstas no GATT. Ela conseguiu ser o terceiro tripé do sistema concebido originalmente em Bretton Woods e ainda válido para regular as relações de intercâmbio comercial e de integração progressiva de todos os participantes da ordem econômica global.
A maior aposta da organização veio em 2001, com o lançamento da Rodada Doha, depois de uma tentativa fracassada, em Seattle, em 1999. Tratava-se de uma ambiciosa iniciativa de negociações comerciais que visava, tentativamente, o fortalecimento do marco regulatório do comércio internacional e a integração mais efetiva de países em desenvolvimento e ex-socialistas à grande integração produtiva da economia mundial. O planejamento era conclui-la em 2005, mas sucessivos problemas – sobretudo em agricultura, tarifas industriais e mecanismos especiais de exceções às normas comuns – adiaram sua conclusão, até o presente momento. Em 2013, com a eleição do diplomata Roberto Azevedo para a liderança da organização, a tentativa de concluir a Rodada ganhou novo fôlego, mas ainda são incertas as perspectivas de sua conclusão no horizonte previsível.
O Brasil vem participando das atividades do sistema multilateral de comércio desde a década de 1940, inclusive das negociações tarifárias. O período mais intenso neste aspecto foi entre 1947 e 1960, quando parte importante do comércio exterior do país foi afetado pelas consolidações tarifárias feitas nas três primeiras rodadas. Depois de derrogar completamente seus compromisso e “reentrar” no GATT, processo concluído no início da década de 1960, o país permaneceu ativo, mormente focado nas reformas institucionais voltadas para os países em desenvolvimento. Ainda que o Brasil tenha se mostrado, na década de 1960, em tópicos como a reforma do mecanismo de solução de controvérsias e a flexibilização do princípio da reciprocidade, foi na década de 1970 que o país foi reconhecido como um líder dos países em desenvolvimento. Essa posição decorreu da competência de vários técnicos da diplomacia econômica brasileira e, após a segunda metade da Rodada Uruguai, do fortalecimento das exportações agrícolas. Carecemos, ainda, de um exame mais sistemático de como se deu essa transição, especialmente na Rodada Doha.
O presente número especial de Meridiano 47 se pretende uma contribuição analítica útil para o conhecimento e a compreensão do funcionamento do sistema multilateral de comércio e sobre a participação do Brasil nas diversas etapas de sua existência e aperfeiçoamento institucional. A intenção é a de que este volume represente uma contribuição para um esforço mais amplo de conhecimento dessa história e do seu papel no processo de inserção do Brasil à economia mundial.
Notas
1 Sobre a Rodada Uruguai, ver Cline: 1995; Croome: 1995; Finger, Ingcoet al.: 1996; Gatt: 1994; Ingco: 1996; Preeg: 1995; Webber: 1998; Whalley e Hamilton: 1995.
2 Sobre a Rodada Kennedy, ver Coppolaro: 2008; Curtis e Vastine Jr.: 1971; Evans: 1971; Finger: 1976; Lee: 2001; Ludlow: 2007; Miles: 1968; Preeg: 1970; Rehm: 1968; Zeiler: 1987. Sobre a Rodada Tóquio, ver Balassa: 1980; Cline: 1978; Deardorff e Stern: 1984; Destler: 1978; Destler e Graham: 1980; Graham: 1979; Harris: 1983; Ibrahim: 1978; Jackson: 2000; Jones: 1987; Krasner: 1979; Macphee: 1987; Mcdonald: 2000; Meier: 1980; Twiggs: 1987; Winham: 1986.
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Organizadores
Rogério de Souza Farias – University of Chicago, Chicago, United States. E-mail: rofarias@gmail.com
Paulo Roberto de Almeida – Centro Universitário de Brasília – Uniceub, Brasília, Brasil. E-mail: pralmeida@me.com
Referências desta apresentação
FARIAS, Rogério de Souza; ALMEIDA Paulo Roberto de. Nota Liminar: A OMC e os desafios do Sistema Multilateral de Comércio. Meridiano 47, v.16, n.150, p.5-9, jul./ago. 2015. Acessar publicação original [DR]