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A nova direita anti-sistema: o caso do Chega | Riccardo Marchi

O livro A nova direita anti-sistema: o caso Chega, de autoria de Riccardo Marchi é um estudo do partido que retirou Portugal da pequena lista de países europeus que não tinham representação parlamentar de partidos enquadrados como de extrema direita. Isto se deu com a eleição do deputado único do Chega, André Ventura, para a Assembleia da República nas eleições legislativas de 2019. Ventura se desponta não apenas como deputado único, mas também como principal liderança de seu partido, passando a ocupar importante parcela do debate público português, assim como da grande mídia de seu país.

Riccardo Marchi parte da história de vida de Ventura, iniciando o livro ao falar de sua infância e adolescência em Algueirão, no concelho de Sintra, uma freguesia de classe média baixa, marcada por construções decadentes, uma grande população de origem imigrante, e como tal cenário influenciou seu futuro posicionamento político. A criação católica e sua vivência na Faculdade de Direito também são elementos de destaque na parte inicial do livro. Ainda na adolescência, André Ventura deu início a suas atividades políticas, fazendo parte da seção juvenil do Partido Social Democrático (PSD), quando era aluno do Liceu.

A socialização política no PSD terá profundo impacto em Ventura, e mesmo no Chega, uma vez que o novo partido surge de um fracionamento oriundo dos quadros internos do PSD. Tratase de Ventura e alguns outros membros do PSD, próximos do líder do Chega desde os tempos de atuação no concelho de Loures. Foi exercendo o cargo de vereador por esse concelho, ainda pelo PSD, que, de acordo com Marchi, Ventura percebeu que o partido pelo qual tinha militado desde muito jovem, não respondia mais a seu desejo de levar a público temas considerados fraturantes e polêmicos, como os direitos das minorias étnicas e sua suposta subsidiodependência, em particular o caso dos ciganos. A educação e aquilo que o Chega enxerga como marxismo cultural, são outras temáticas sobre os quais Ventura tinha interpretações consideradas polêmicas, afirmando que a primeira está dominada pelo segundo, o que o levaria a propor a dissolução do Ministério da Educação. A problemática da lei e da ordem, com a castração química para pedófilos, a introdução da prisão perpétua no Código penal português, e o endurecimento das leis contra a violência doméstica, propostas posteriormente por Ventura, são temas com potencial incendiário, geradores de desconforto no quadro político mais estabelecido e, por isso, deixados de lado pelos maiores partidos políticos, pelo menos de acordo com o discurso do Chega. Por causa dessa suposta recusa em discutir temas cada vez mais presentes no cotidiano e no imaginário dos portugueses, Ventura e seu círculo mais próximo de membros do PSD em Loures decidem fundar outro partido.

Em 2019 André Ventura e seu círculo de Loures fundam o Chega. Inicialmente com uma estrutura organizativa interna bastante rarefeita, e ainda sem uma identidade muito clara, o partido centra-se muito na liderança pessoal de Ventura. Ele enfatiza a denúncia do chamado “politicamente correto”, a defesa exacerbada deste das minorias e sua conivência com o crime, da oligarquização da política por partidos tradicionais e seu distanciamento dos interesses reais dos portugueses comuns, e do protagonismo de ideias supostamente de esquerda, que adentrariam até mesmo partidos da direita tradicional como o Centro Social Democrático (CSD).

Junto a todas as polêmicas em torno a Ventura e sua recorrente aparição nas grandes mídias, o partido esforça-se para adquirir uma estrutura interna e organizativa mais robustas, voltando-se para a institucionalização de uma elite dirigente, assim como para a expansão do partido na formação de bases ativistas. Volta-se muito para o ativismo online, criando várias de suas páginas nos meios de comunicação não convencionais, com particular investimento no facebook, havendo, inclusive, uma página especificamente para a Juventude Chega.

A utilização das plataformas online e a aposta nas redes sociais leva a uma interessante descrição feita por Marchi das estruturas em formação do partido, desde seu centro dirigente até o recrutamento de filiados e militantes. O que se faz é a criação de plataformas virtuais do Chega para freguesias e concelhos, separadamente, sobretudo aqueles em que o Chega atrai maior simpatia. Para cada plataforma de uma freguesia ou concelho, há um membro partidário que lança propaganda, notícias, e questões trabalhadas pelo Chega. Aparentemente uma peculiar forma de partido de penetração de massas. A disciplina e treinamento voltados para a formação de filiados e militantes não são encontrados no Chega, visto que o que acontece é a discussão, em esfera virtual, dos temas apresentados por cada página regional. À medida que indivíduos que habitam na região começam a participar dos debates e troca de ideias, o responsável pela página faz um convite àqueles que apresentam um perfil mais próximo do desejado pelo partido. Todavia, o partido continua muito dependente do carisma pessoal de seu líder.

Marchi mostra que com a eleição de André Ventura para a Assembleia da República nas eleições legislativas de 2019, a imagem do Chega nas grandes mídias ganha ainda mais proeminência, assim como as polêmicas de seu líder. A imagem de herdeiro direto do passado nazifascista europeu lhe é, não raras vezes, associada por boa parte dos meios de comunicação, e a identidade do partido é cada vez mais discutida. Marchi aponta que, apesar da heterogeneidade de linhas de pensamento nos quadros internos do Chega, é possível localizá-la mais próximo das atuais direitas europeias, de forma mais geral, distante da direita neoconservadora, influente nas últimas décadas do século XX, representada pelo tacherismo na Grã-Bretanha, e pelas forças de sustentação dos governos Reagan e Bush pai e filho, nos EUA.

Trata-se da nova direita populista radical, que tem como traços centrais a crítica incisiva do sistema representativo, visto como um campo de atuação oligárquica, seja ela política ou econômica, mas atuante dentro desse sistema. Defende a cultura e sociedade nacional contra a globalização, econômica e social, e expandindo a ideia de defesa das culturas ameaçadas pela globalização, aos povos da Europa. Apesar do seu nacionalismo, não se coloca como herdeiro do nazismo, fascismo, franquismo ou salazarismo, como os partidos de direita radical do pós-guerra fizeram. E na via populista, defende o que enxerga como maiorias silenciosas frente a elites corruptas.

Ainda que em seu discurso haja, eventualmente, uma curiosa combinação de elementos do patriotismo ultramarino português1 com o liberalismo de mercado e com o campo ideológico da direita europeia identitária atual, pode-se pensar uma maior aproximação com as direitas populistas anti-sistema do continente europeu. Marchi mostra que o próprio Ventura afirmou serem suas maiores influências, as direitas de outros países da Europa do sul, o VOX espanhol, e a Lega Nord italiana. Há um certo distanciamento da direita francesa em função do peso do estado na economia em sua proposta de governo.

Os países do Visogrado, com destaque para a Hungria, também exercem alguma influência sobre o Chega. Trump tem alguma entrada, embora menor que essas direitas mencionadas, e quando questionado acerca da direita brasileira de Jair Bolsonaro, Ventura respondeu que há alguns pontos de convergências de ideias, mas no geral tende a se inquietar com o que considera a misoginia e homofobia do presidente brasileiro.

O Chega, segundo Marchi, é um partido liberal na economia e conservador nos valores. Porém, esses dois âmbitos devem ser sempre bem matizados, tendo em vista as peculiaridades de um e de outro nos planos do partido. Seu liberalismo se assenta, basicamente, em cortes incisivos na carga tributária dos portugueses e na criação de espaços de competição para pequenos e médios empresários nacionais. Não quer dizer, portanto, que o Chega defenda um liberalismo global, voltado para a livre iniciativa de grandes corporações atuantes em escala transnacional. Trata-se de um liberalismo de mercado localizado no território nacional, não global, e voltado para setores mais específicos do empresariado português, combinado com um protecionismo de áreas produtivas tradicionais, como pesca e agricultura. Junto a esse liberalismo intranacional, tem-se a crítica do modelo corporativista, que tanto marcou o Estado Novo português, em prol de uma sociedade economicamente mais dinâmica, sendo este um ponto de rompimento com o patriotismo imperial estadonovista.

O conservadorismo nos valores se manifesta como a defesa de uma sociedade alicerçada na antiguidade clássica e no mundo judaico-cristão. Vale destacar que o Cristianismo é estimado como uma dentre as diversas facetas da vida cultural dos portugueses, e não a defesa da doutrina social da Igreja como centro da vida atrelada ao estado. A estima pelo Cristianismo se dá em termos culturais e não confessionais, lembrando que o Chega é muito claro na sua defesa assertiva do estado laico, e o valor que dá ao conhecimento produzido pela comunidade científica. Defende-se a família tradicional, porém sob a justificativa que ela é a via historicamente mais bem sucedida de manutenção do equilíbrio demográfico nas nações ocidentais. Em relação ao aborto, o Chega se coloca prontamente contra, porém sem defender sua criminalização em vias jurídicas, tendo em vista as consequências que isto poderia ter para a mulher. Existe ainda a proposta de lei de castração química para pedófilos, assim como a defesa das forças policiais na sua tarefa de manter a lei e a ordem.

Sobre o tema da imigração, o Chega se coloca contrário, sobretudo de países muçulmanos, em face do terrorismo e da possibilidade de formação de guetos étnicos e religiosos dentro dos espaços urbanos. Há uma proposta de endurecimento nas leis de aquisição de cidadania e no controle de fronteiras a fim de barrar com mais eficácia a imigração ilegal. Também almeja-se retirar Portugal do Pacto para a migração de substituição, de 2000, assim como do Pacto para os refugiados, ambos coordenados pela ONU. A crítica feita à ONU é bastante contundente, já que o Chega a considera uma organização supranacional almejando governar sobre nações com fronteiras enfraquecidas, coordenando ondas de refugiados que muitas vezes seriam apenas migrantes comuns, gestando espaços sociais transnacionais alicerçados em sociedades de massas cada vez mais homogeneizadas por uma nova cultura global. Em relação à migração dos países africanos de língua portuguesa, os PALOP, há uma maior tolerância por causa do passado histórico colonial e da proximidade linguística, porém o Chega também coloca que não seria possível abertura tão grande à migração oriunda desses países, afirmando que “Portugal não tem condições de receber 30 milhões de africanos”. Para a cidadania, por sua vez, o Chega defende o Jus Sanguinis, e não o Jus Solis, e de acordo com o livro de Marchi, cerca de 62% do eleitorado do Chega acredita que ela deva ser facilitada apenas a estrangeiros de origem portuguesa.

Em relação à Europa, existe não o euroceticismo, mas a eurocrítica. Seguindo uma linha que começa a ser adotada pelos partidos de direita populista radical da Europa ocidental, almeja-se não pôr fim à União Europeia, mas reconstrui-la por dentro em outros termos. Defende-se um bloco europeu voltado para si, para o bem-estar de seus habitantes, e não como um polo civilizatório que se expande para outras regiões do planeta, ou que incorpora desmesuradamente massas populacionais de outras regiões. Uma Europa de nações e não de mercados, pensada a partir da escola de pensamento francesa da Nouvelle Droite. Escola de pensamento esta, que foi introduzida em Portugal pelo vice-presidente do Chega, Diogo Pacheco de Amorim.

Podemos afirmar que o livro de Marchi é extremamente importante para todos aqueles que se interessem pelo tema da nova direita populista radical, não apenas na Europa, mas em todo o continente europeu. Isto porque o Chega é um interessante laboratório onde pode-se observar como este tipo de fenômeno político alcança mesmo os países que até há muito pouco eram considerados exceções a ele, como foi com Portugal. A obra de Riccardo Marchi, além de apontar para a discussão da modalidade organizativa do Chega, que lembra a de movimentos políticos de direita radicalizada, mostra com bom grau de acuidade sua estrutura ideológica e discursiva, que o coloca junto com os demais partidos de direita radical europeus.

Nota

1 O Chega não se coloca como herdeiro do Salazarismo, nem saudosista do Império português, como a maioria das organizações de extrema direita fizeram na altura da redemocratização, ou mesmo alguns quadros do CDS fizeram. Os elementos desse patriotism ultramarine se mostram no que Marchi descreve como nacionalismo banal. Aquele tipo de identidade nacional que está presente no dia-a-dia, e no caso português, engloba seu passado ultramarino.

Referência

MARCHI, Riccardo. A nova direita anti-sistema: o caso do Chega. Lisboa: Edições 70, junho de 2020.


Resenhista

Gabriel Fernandes Rocha Guimarães – Pesquisador integrado no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI-ISCTE). Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisa os temas do nacionalismo, novas direitas, movimentos sociais e partidos políticos. E-mail: gfrgs@iscte-iul.pt https://orcid.org/0000-0002-5630-6557


Referências desta Resenha

MARCHI, Riccardo. A nova direita anti-sistema: o caso do Chega. Lisboa: Edições 70, 2020. Resenha de: GUIMARÃES, Gabriel Fernandes Rocha. O partido Chega: reformulação e ascensão da direita populista em Portugal. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.26, n.2, p. 500-505, 2020. Acessar publicação original [DR]

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