A Noite da Espera | Milton Hatoum
Estamos (re)vivendo tempos sombrios, no qual os direitos à liberdade de expressão estão sendo ameaçados. Falamos de ditadura, mas pouco lemos e discutimos sobre o quão perturbador foi esse período. A ficção A noite da espera, de Milton Hatoum, fala sobre esse intervalo obscuro da história do Brasil.
Hatoum nasceu em Manaus em 1952, aos 15 anos de idade mudou-se para Brasília onde morou com dois amigos em uma casa da W3 Sul e estudou no Centro Integrado de Educação Modelo (CIEM). Em Brasília, Hatoum começou a escrever poesias, participar de concursos literários e em 1969 teve pela primeira vez um de seus poemas publicado pelo jornal Correio Brasiliense. O amazonense já foi professor de Literatura da Universidade Federal do Amazonas e é considerado um dos grandes escritores brasileiros atuais. Ganhou três prêmios Jabuti e seus livros já venderam mais de 200 mil exemplares no Brasil, além de terem sido traduzidos para mais de oito países.
A noite da espera é o primeiro volume da trilogia “O lugar mais sombrio”, tendo como espaço central Brasília e, como secundário, Paris. A obra conta a história de Martin, um jovem brasileiro exilado na França. Trata-se de uma ficção fragmentada e não linear, permeada por trechos de diário, cartas e outros artifícios utilizados pelo autor para discorrer sobre um período tenebroso da história do Brasil. Cabe ao leitor juntar as peças desse quebra-cabeça e (re)construir a jornada de Martin, marcada pelas lembranças que se passam, de forma predominante, na recém-inaugurada Brasília.
Visando terminar os estudos do segundo grau, em 1968, o protagonista se muda para a capital com o pai e, em seguida, ingressa na UnB no curso de arquitetura. Essa mudança abrupta acaba por separá-lo da mãe, que havia se envolvido com um pintor, gerando a fúria em Rodolfo, pai do protagonista. O período é conturbado, contudo, Martim parece não ter uma percepção muito clara em relação aos acontecimentos políticos da época, o que vai se configurar de forma tardia, quando o narrador estiver exilado. Sem possuir uma ideologia política evidente ou uma posição clara em relação ao que estava acontecendo, o protagonista se envolve nos movimentos estudantis da época, que marcaram sua geração. Aos poucos, o leitor tem contato com momentos de retaliação, censura da liberdade de expressão e de violência contra os atos realizados pelos estudantes.
A noite da espera é construída a partir de dois diários: um subjacente ao outro. O narrador, motivado possivelmente por uma busca de si em um momento de profunda crise identitária, reúne vestígios do passado vivido em Brasília entre 1968 e 1972, momento em que também manteve um diário, acrescentando esses escritos ao texto que redige enquanto está na Europa. Logo, a escrita de um diário em Paris torna-se uma forma de reflexão sobre os acontecimentos vividos por Martim na capital a partir de um distanciamento crítico, temporal e espacial dos fatos. Podemos pensar a mudança para Brasília e a precoce separação da mãe como marcos iniciais das fraturas e cicatrizes que acompanham o protagonista por toda a narrativa, corroborando uma profunda e amarga análise de si no período em que se encontra exilado.
Se Martin percebe a mãe, mulher sensível, como um porto seguro, do qual fora retirado de forma precoce e dolorosa, o pai pode ser compreendido como alguém fortemente ligado à carreira e profundo admirador do regime militar, encarnando em si o esboço da autoridade e da opressão, que contrasta com a figura da mãe, símbolo da liberdade perdida. O caráter do pai faz com que Martim e ele se distanciem: o jovem ingressa na UnB, faz amizades com ativistas do movimento estudantil e criam uma revista intitulada Tribo, na qual eram tecidas críticas ao regime vigente. Posteriormente os estudantes serão perseguidos pelos militares em razão dos ideais reportados na revista.
Aliado ao trauma familiar vivido por Martim, em seu interior, existe, também, o trauma exterior, sofrido pelo país em relação ao período histórico e político vigente: um regime de exceção que corroborou um trauma na democracia e na liberdade de expressão. Nesse sentido, mescla-se o individual ao social (histórico), perfazendo um movimento intenso e crítico, sintetizado ficcionalmente pela oposição entre as figuras do pai e da mãe. O ato de escrever torna-se, assim, uma forma de suportar o peso da realidade e a tentativa de se recuperar da longa noite de espera, espera da mãe que nunca apareceu. Já em Paris, sob uma atmosfera de repressão e de fraturas identitárias, à distância da mãe e da pátria, Martim escreve e datilografa seus escritos do tempo vivido em Brasília, em forma de diário, ancorado em suas memórias e na memória dos outros, já que, segundo Martim, “(…) sem a memória dos outros eu não poderia escrever” (HATOUM, 2017, p. 71).
A escolha narrativa por parte do autor torna-se relevante à medida em que a escrita de um diário surge como objeto de testemunho e de horror, consequências do período ditatorial brasileiro em meio a toda violência institucional e simbólica. A escrita de Martim é um escopo, uma tentativa de evitar o processo silenciamento advindos da censura, denunciando a crueldade do regime de exceção e testemunhando os fatos vividos, de forma a conservá-los na memória individual e coletiva.
O testemunho da personagem em questão configura diversas referências ao golpe civil-militar de 1964 (a promulgação do AI-5, em 1968, a morte do general e presidente Costa e Silva, 1969, a era do governo do general Médici, 1969-1974, a morte dos jovens estudantes no Rio de Janeiro pelos militares durante a chamada “Sexta-Feira Sangrenta”, 21 de junho de 1968, a Passeata dos Cem Mil, em junho de 1968). Aliadas a essas referências históricas, nasce a ficção que aborda, reflete e problematiza o contexto político, a repressão às universidades, a violência e a tortura, seguidas do exílio.
Diante do exposto, e levando em conta o atual contexto sócio-político, permeado por discursos de ódio e intolerância e em que a memória de um tempo sombrio como a ditadura civil-militar ora é relativizada, ora negada, ora até mesmo exaltada no apreço a um torturador, a leitura de A Noite da Espera se faz mais do que necessária por se propagar como uma forma de luta e resistência frente ao autoritarismo e ao fim da liberdade de expressão.
Pelas páginas desse diário ficcional, ao dar voz a Martim, Hatoum se permite e nos permite pensar a literatura a partir da margem, cuja voz enunciativa e discursiva delineia-se fora do centro, fora dos limites do discurso dominante histórico-político. O protagonista teve sua vida rompida, colocada à prova de resistência, sendo que o diário surge como símbolo de um desejo de imortalizar, por meio da escrita, a censura e a retaliação desse período tenebroso, isto é, a escrita diarística de Martim coloca os fatos à disposição do futuro.
Ler A Noite da Espera é garantia de escutar a voz descentrada de Martim ao mesmo tempo em que exige do leitor o desafio de se lidar com o período ditatorial. Cabe a esse leitor fazer do testemunho desse personagem uma forma de evitar o esquecimento de um aglomerado de traumas, torturas, violência (institucionalizada e simbólica) e crises. A literatura assoma como um discurso de resistência e do não apagamento da memória encenando, a partir dos fragmentos, a vivacidade do enfrentamento e da luta.
Ademais, diante da política contemporânea, o romance supracitado desafia os estudantes ao validar o papel que estes podem desempenhar frente aos discursos de ódio, de preconceito e de intolerância. O diário nos permite percebermos a força de atuação de Martin e seus amigos, perante o regime de exceção. Mais do que isso, sua escrita encontra caminhos para testemunhar a crueldade do período militar para que ele não fique apagado, velado e para que possamos zelar pela democracia, hoje ameaçada. A Noite da Espera é resistência em palavras. É a literatura de olhos abertos, concentrando esforços, delineando caminhos para que não caiamos em mais uma longa noite de espera.
Resenhista
Fatima Maria Aparecida Ruvinski Kuzma – Graduada em Letras Português, Inglês e suas respectivas Literaturas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (2016-2019) e, atualmente, é mestranda no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem na mesma instituição (2020-2021).
Referências desta Resenha
HATOUM, Milton. A Noite da Espera. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Resenha de: KUZMA, Fatima Maria Aparecida Ruvinski. Uma longa noite de espera, precisamos de outra? Literatura, História e Memória. Cascavel, v. 16, n. 27, p. 364-367, 2020. Acessar publicação original [DR]