A pesquisa de Yambo para recuperar sua memória é um passeio pela construção de sua “visão de mundo”, entrelaçada com a história da Itália, entre 1930 e 1990, que corresponde à própria idade de Yambo. Yambo é o protagonista do romance ilustrado, assim anunciado, de Umberto Eco.
A história do personagem que, após um acidente vascular cerebral, tenta recuperar sua memória emocional, é um mergulho nas mais variadas fontes. Pode-se dizer que se trata de um trabalho de historiador, camuflado pelo romance, que transborda pelo excelente autor que é Umberto Eco.
O protagonista se lembra de tudo o que leu na vida, mas não se recorda daquilo que o emocionou; não se lembra de suas relações pessoais nem de fatos que o tenham tocado, sentimentalmente. Às vezes, recita trechos de obras que ele conhecia, mas que não se ligam à sua vida real.
Yambo, em sua busca sobre o passado, volta ao lugar, onde viveu, quando criança e adolescente, a casa do avô. Ele encontra, nos porões, suas primeiras cartilhas, seus cadernos escolares, suas revistas em quadrinhos, suas fotos, embalagens de cigarros, coleção de selos, discos de músicas, um toca-discos, jornais, revistas e uma infinidade de livros. Muitas dessas fontes estão impressas, nas páginas do livro, como se dissessem ao leitor que a história não é apenas fruto da imaginação do autor.
Uma velha empregada da família é sua fonte oral de muitas das histórias vividas, naquele lugar, assim como o são, também, sua esposa e seu amigo de infância.
O personagem procura sua memória e descobre a história da subida do Duce ao poder, a formação dos homens que iriam compor os exércitos fascistas, a reação de pessoas contrárias ao governo de Mussolini, a Segunda Grande Guerra, na visão dos civis.
Eco, na pele de Yambo que é colecionador e comerciante de livros raros, compara as fontes, as desvenda de seus conteúdos simbólicos, tudo envolto pelo relato ficcional.
O romance ainda mostra as relações do protagonista com as figuras femininas, sua formação sexual, a religiosidade, quem eram seus heróis e as relações da Itália com os outros países. Yambo observa como as revistinhas infantis estavam impregnadas de ideologias, como se transmitiam as obras traduzidas do inglês para o italiano, mudando as personagens e engendrando conceitos políticos, na infância, do período entre guerras.
Lendo os jornais e escutando as músicas pode imaginar os noticiários radiofônicos. A construção do imaginário guerreiro entre os cidadãos italianos e a decadência de Mussolini, as ligações com Hitler, as noções do anti-semitismo, as baixas nas tropas, o cotidiano no front, tudo estava para ser visto nos rastros de sua própria vida.
Entre seus achados, descobre uma antiga capela que serviu de esconderijo para os companheiros de seu avô, os quais imprimiam jornais contra o governo fascista. A empregada Amalia conta-lhe o que ela presenciou e, também, os relatos que ela ouvia de seu pai sobre os fatos da Segunda Guerra.
A influência dos Estados Unidos, no contexto geral da Itália, é bem retratada nos cartazes e revistas que faziam a divulgação da crescente indústria cinematográfica, em meados de 1940.
A misteriosa chama da rainha Loana é o título de uma das revistas de aventuras, lidas por Yambo na juventude, e representa a existência de algum sentido na luta por apreender seu passado. As chamas que sempre perseguimos para definir o brilho de delícias esquecidas (p. 253).
Diante de uma raríssima e valiosíssima obra de Shakespeare, encontrada nos arquivos de seu avô, Yambo tem um segundo acidente cerebral e a narrativa passa a ser de seu estado de coma. Sua memória está completa e ele revive todas as emoções cotidianas, num estado de consciência interna. Assim, Eco torna a história de Yambo uma realidade, demonstrando que as memórias são múltiplas e formadoras da história pessoal, por sua vez amarrada a uma história mais universal.
Numa vigília constante, tem momentos alucinantes, como se todas as suas memórias dilacerassem seu cérebro. Lembra-se, agora, de sua mãe, da relação com seu pai, de suas pequenas travessuras e de como foi repreendido. Rememora suas emoções diante dos acontecimentos de guerra, dos comentários de seus parentes sobre as notícias, anunciadas no rádio, do medo de estar em meio aos conflitos e da alegria, quando a guerra termina.
Eco escreve, na história de seu personagem, daquele encontro que todos teremos: o encontro com a morte. E aquele “filme”, que alguns imaginam que teremos que assistir, nesse momento, se passa na cabeça atuante do corpo adormecido de Yambo. Uma mente que brilha e não consegue se expressar. Todas as histórias estão, agora, vívidas em seu cérebro. Suas questões filosóficas são discutidas, criando com o leitor uma relação dialógica; mesmo não se manifestando, ele acompanha a conversa que Yambo trava consigo mesmo.
Yambo pede, em oração, que a rainha Loana não o abandone, mas que o traga à vida, em nome do amor. Mas a rainha Loana não responde aos seus desejos e, derradeiramente, Yambo vê o sol apagar-se.
O livro de Umberto Eco tem uma história emocionante, porém se nota que não conseguiu muito sucesso de público, principalmente no Brasil; depois de analisá-lo, penso que é uma obra de interesse definido.
Em boa medida, Eco escreveu para historiadores, para pessoas que conhecem o método historiográfico e debatem sobre a ligação desse método com a literatura. Quando se propôs a lançar um livro com ilustrações, estava colocando a possibilidade de mostrar como as fontes da história podem, também, criar obras de ficção, tanto quanto a história pode vagar pela literatura, tendo-a como aporte.
O preço que paguei pelo livro, na livraria de um shopping (doze reais e noventa centavos), convenceu-me de que o livro não alcançou sucesso, mesmo tendo estampado, na capa, o nome de seu famoso autor. Afinal, um livro muito bem editado, colorido, de 453 páginas, não passaria, impunemente, com esse valor pela indústria editorial. Talvez, a causa desta falta de interesse pela obra possa ser creditada ao estilo que Eco encontrou para contar sua história. O público, provavelmente, não estivesse preparado para o encontro entre a proposta de obra ficcional e tantas informações históricas, ao mesmo tempo; tanta criatividade na “verdadeira história da Itália”, e muita história da Itália, pré e pós-guerra, nas memórias de um imaginário intelectual de sessenta anos.
Umberto Eco é tanto, profissionalmente, historiador quanto literato, tendo construído a narrativa, usando as fontes que podem ser atingidas num trabalho completo, ou seja, do jargão acadêmico: fez com que as fontes dialogassem entre elas. A parte teórica encontra-se na mediação entre o próprio personagem e suas descobertas, a partir dessas fontes. Nas páginas finais, coloca um anexo com o título: Fontes das citações e das ilustrações.
O que se pode dizer é que Eco consegue levantar a discussão entre a História e a Literatura, com maestria, porque ele realizou o que pode ser o desejo de quem ama as duas áreas do conhecimento; ele tocou em ambas e deixou um caminho.
A misteriosa chama da rainha Loana é um exemplo de conhecimento profundo entre a História e a Literatura. No limite é a demonstração de uma capacidade que ultrapassa os muros das Universidades e do que um autor, apaixonado pelo seu trabalho, é capaz de produzir; de que a vida não se separa da ficção, de que a História, em seu caso, vista por um especialista em semiótica, pode ser contada de várias formas, algumas mais agradáveis que outras, mas todas pertinentes.
Na melhor das possibilidades, a obra de Eco pode ampliar, em muito, o conhecimento e, em seu mínimo, pode entreter um leitor desavisado por achar que um livro de Umberto Eco não pode custar tão pouco.
Resenhista
Lenita Maria Rodrigues – Mestranda em História – UFGD, Bolsista da Capes.
Referências desta Resenha
ECO, Umberto. A Misteriosa Chama da Rainha Loana: romance ilustrado. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2005. Resenha de: RODRIGUES, Lenita Maria. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 3, n. 6, jul./dez. 2009. Acessar publicação original [DR]
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