A miscarriage of justice: women’s reproductive lives and the law in early twentieth-century Brazil | Cassia Roth (R)

Cassia Roth | Foto: UCLA |

De autoria da professora doutora Cassia Roth, vinculada à Universidade da Georgia, nos Estados Unidos, a obra A miscarriage of justice: women’s reproductive lives and the law in early twentieth-century Brazil, publicada em 2020, aborda a tutela reprodutiva de mulheres pelo Estado, na primeira metade do século XX, na então capital federal, Rio de Janeiro. Ao longo de sete capítulos, Roth contribui para os estudos da história da saúde reprodutiva no Brasil e, a partir de uma produção multifacetada, oferece um diálogo interdisciplinar entre medicina, justiça, polícia e sociedade na prescrição de um modelo do exercício maternal.

Sustentada por uma análise criteriosa dos Códigos Penais e Civil, a obra inicia o argumento de que, durante a Primeira República e o período Vargas, a cidadania feminina só poderia ser exercida pela maternidade. A utilidade da mulher das classes pobres e urbanas seria a de reproduzir a mão de obra para o futuro da pátria. O funcionamento desse modelo se pautava em médicos, formados no bojo de instituições organizadas, que concediam explicações técnicas para o reforço do papel maternal, e juristas, que por meio das leis afirmavam a criminalização de práticas de controle de fertilidade e deram base para ações policiais atentas aos usos da sexualidade.

O que Roth (2020) propõe, entretanto, não é exatamente um livro apenas sobre o poder dessas instâncias. A autora apresenta o funcionamento de uma complexa engrenagem de vigilância sobre a reprodução nas classes populares e proporciona uma valiosa contribuição à historiografia da área, por realizar uma análise que leva em conta os aspectos cotidianos das práticas de aborto e infanticídio, como também analisa as gravidezes e os partos, eventos justapostos da realidade de mulheres do passado. Ao buscar uma análise mais abrangente das vivências reprodutivas A miscarriage of justice oferece à história da reprodução a dimensão do desvio, das negociações que mulheres desvalidas, muitas vezes já mães, teciam para evitar novas gestações, esconder o nascimento de filhos indesejados e lançar mão de contraceptivos.

Todos esses arranjos persistiam, apesar do risco vigilante a que estavam submetidas. Nesse sentido, os processos-crimes que constituem o corpus documental central do trabalho representam o momento em que a atenção do Estado, que pairava sobre a fertilidade das mulheres, encontrou meios de acessar suas vidas e as esquadrinhar por meio de depoimentos, exames de corpo de delito e inquéritos. Ao longo da narrativa, o livro colabora para uma historiografia que busca se aproximar das experiências femininas e objetiva somar decisivamente para uma história corporificada (embodied), ao revelar a partir de áridas fontes oficiais as angústias enfrentadas no passado.

Nos primeiros capítulos, a autora baliza o contexto científico do país. Seu argumento é que a eugenia brasileira impulsionou a preocupação com a reprodução e resultou na expansão de hospitais maternidades como efeito desta desconfiança. No entanto o texto revela que o aumento das maternidades não significou maior segurança no parto. O terceiro capítulo demonstra que por vezes a experiência de dar à luz era um risco tanto nas instituições para esse fim quanto na companhia de comadres e vizinhas no espaço doméstico.

Ao seguir com seu argumento sobre o crescimento da atenção do Estado sobre as práticas reprodutivas, a autora postula que, para ampliar a valorização da maternidade, os médicos tentavam também coibir a chamada praga de abortos clandestinos. Era necessário não só prescrever o que era recomendado às mulheres, mas também fortalecer o aparato policial e legal contra as formas de controle reprodutivo. A autora demonstra que as gravidezes que resultavam em aborto espontâneo ou natimortos também eram alvo de suspeita e investigação. A polícia estava implicada em diversos trâmites legais, que poderiam, por exemplo, trazer suspeição sobre qualquer gravidez malfadada espontaneamente.

Como destaca Pedro (2003, p.21), o aborto e o infanticídio são práticas historicamente difíceis de ser acessadas pelo fato de ocorrer nas “confidências do doméstico”. Cassia Roth, entretanto, aponta uma importante possibilidade no capítulo em que analisa denúncias de pessoas que vivenciaram a frágil intimidade doméstica e, por isso, violaram a dimensão do segredo. Por meio dessas inconfidências, é possível remontar a dimensão cotidiana das práticas de controle de fertilidade. Roth, de maneira original, pondera ainda que o entender moralista sobre as práticas de abortamento e infanticídio não era exclusivo das instâncias de autoridade, mas também reforçado pelas classes populares, que encontravam na denúncia um meio de acessar o reconhecimento do Estado e ser ouvidas como cidadãs, apesar da exclusão política das classes populares durante a Primeira República. O final da obra é reservado para o exame das estratégias de defesa das mulheres que foram processadas por aborto ou infanticídio. É demonstrado o esforço da defesa de reforçar a concepção de “mulher incapaz”, que se sujeita às “passionalidades de seu sexo” e que poderia cometer atos vis. Essas mulheres só poderiam se livrar das penas da lei ao reconhecer seu lugar subalterno diante do Estado patriarcal. Essa análise arremata a linha argumentativa do livro, que embasa sua tese central sobre como a cidadania das mulheres só poderia ser exercida pela prática exemplar da maternidade. Roth conclui analisando o debate atual do país em relação ao aborto e ressalta a permanência dos debates do passado, apesar de reconhecer a importância de discussões sobre os usos do aborto propiciadas pela epidemia de zika vírus, ressaltando os pedidos para a flexibilização da prática junto ao Supremo Tribunal Federal.

Observa-se a quantidade de artifícios e negociações de mulheres sem recursos que se viam diante do aparato policial pronto para escrutinar suas vidas reprodutivas. Mesmo que raramente resultante em condenações legais, a autora explora que a abertura do inquérito policial ou o fato de ter seu nome associado a uma investigação já acionaria um dispositivo vexatório capaz de demonstrar o custo de ser desviante da maternidade normativa.

Referências

PEDRO, Joana Maria. Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século XX. Florianópolis: Cidade Futura, 2003. [ Links ]

ROTH, Cassia. A miscarriage of justice: women’s reproductive lives and the law in early twentieth-century Brazil. Stanford: Stanford University Press, 2020. [ Links ]

Isabela de Oliveira Dornelas – Doutoranda em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/Universidade Federal de Minas Gerais.Belo Horizonte – MG – Brasil isadornelas@gmail.com.


ROTH, Cassia. A miscarriage of justice: women’s reproductive lives and the law in early twentieth-century Brazil. Stanford: Stanford University Press, 2020. 360p. Resenha de: DORNELAS, Isabela de Oliveira. Gravidez e controle reprodutivo no Brasil: coibir e negociar. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 28 n.1, mar. 2021. Acessar publicação original [IF].

Itamar Freitas

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