A miragem da pós- modernidade: democracia e políticas sociais no contexto da globalização | Silvia Gerschman e Maria Lúcia Werneck Vianna
Este livro é uma coletânea de 12 ensaios apresentados originalmente num seminário realizado na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em julho de 1995. O livro inovou ao ressaltar os efeitos políticos e sociais da globalização econômica, rompendo com a tradição economicista predominante nesta área. Os artigos convergiram para três preocupações: o futuro da democracia, os rumos do setor público e a natureza das políticas sociais na época da globalização. Cada tema aglutinou quatro artigos em uma média de 15 páginas.
O primeiro bloco, intitulado ‘Globalização, democracia e questão social’, inclui os artigos teóricos de Schmitter, Reis, Gerschman e Viola. Phillippe Schmitter ressalta a consolidação do sistema político democrático como o fato mais conclusivo da globalização. O mundo aderiu à democracia e assumiu seus mecanismos de representação. Schmitter acredita que o futuro desta sociedade “será incrivelmente tumultuado, incerto e muito acidentado”. Surpreendentemente, o grande desafio à globalização viria das “democracias liberais consolidadas” (DLCs). Países recém-democratizados, ou “neodemocracias recentes” (NDRs), são seguidores de modelos e, naturalmente, não dispõem de condições objetivas para mudar os rumos. Muitas das NDRs são ordenações políticas oligárquicas que se aproveitam do sistema democrático para manter seu domínio. O retrato dado pelo autor é de pioneiros democratas, de um lado, e de seguidores autoritários, de outro, forçados a assumir o sistema de representação por acidente do destino. A verdadeira mudança social sempre acontecerá nos países pioneiros, enquanto os países em desenvolvimento estarão confinados às “democraduras”.
Schmitter sugere uma mudança nos mecanismos da democracia representativa. Sua alternativa se coloca contra duas opções popularizadas na década de 1980: o neo-utilitarismo e o republicanismo cívico. Suas referências teóricas se baseiam na concepção madisoniana de política, que preserva os direitos dos interesses organizados existentes e, ao mesmo tempo, assegura a igualdade na distribuição dos recursos de poder. Garantir condições iguais de ação coletiva para o conjunto da população, na sua opinião, seria um meio para diversificar as preferências e a representatividade do cidadão comum.
Fábio Wanderley Reis divide sua discussão sobre a relação entre globalização e mudança política em três eixos: estado liberal, projeto nacional e questão social. Apresenta o neoliberalismo como uma seqüela do esgotamento do keynesianismo e do colapso do socialismo real existente. A avalanche neoliberal nos países em desenvolvimento, e particularmente no Brasil, foi assimilada sem um questionamento profundo e uma avaliação cuidadosa dos seus efeitos políticos. Aponta a governabilidade como a chave do sucesso da consolidação democrática no Brasil. Na sua opinião, a política neoliberal acarreta um quadro de ingovernabilidade, uma vez que a diminuição do Estado nos países em desenvolvimento tem fortalecido elementos negativos, vistos como inerentes a sua cultural política “pretoriana”, e enfraquecido suas instituições públicas. Em última instância, acirra o aproveitamento ilícito das instituições públicas pelas elites pretorianas e desmonta as normas reguladoras da interação política. Em suma, a desregulamentação e a diminuição do Estado fragilizam a democracia.
Reis ressalta que a globalização apresenta um desafio para o projeto de desenvolvimento econômico nacional. Permanece a dúvida sobre como preservar os valores da nacionalidade no novo contexto globalizado. O aprofundamento da exclusão social reacende a preocupação com os efeitos nocivos decorrentes da inserção do Brasil na arena internacional. A redução dos encargos sociais do Estado, em conjunturas de reestruturação econômica, além de aumentar a pobreza, reforça as desigualdades e a hierarquia. Este quadro reitera a rígida estratificação social e se transforma num obstáculo permanente à estabilidade política.
Silvia Gerschman inicia seu artigo fazendo uma distinção entre sistema político democrático e regime democrático. O primeiro compõe-se de um conjunto de mecanismos formais próprios da democracia partidária. O segundo reflete a capacidade da sociedade em autogerar componentes democráticos, tais como: aceitação das diferenças como valor ético, substituição voluntariosa dos interesses individuais por interesses coletivos, e a procura de um consenso político entre os atores sociais.
Num contexto globalizado, o sistema político-partidário guia a vida política. Na década de 1980, além da perda dos princípios democráticos em prol da ética competitiva, o capitalismo renuncia às próprias políticas sociais, o verdadeiro sustentáculo do equilíbrio entre as classes sociais. O colapso das políticas sociais do Estado capitalista é provocado pela migração de capital entre países, ou seja, pela transnacionalização do capital. A atração do capital internacional necessita de políticas de desregulamentação, levando a um recuo generalizado do Estado em termos de bem-estar social. A crise é acentuada com o acelerado desenvolvimento tecnológico da indústria. A substituição da mão-de-obra e a diminuição da oferta de mercados de trabalho contribuem para o agravamento da crise.
Gerschman conclui que a transnacionalização do capital dissociou o poder econômico e tecnológico da governabilidade nacional. Na opinião da autora, a saída segura deste impasse seria através de negociações coletivas e participação dos atores atingidos diretamente pela globalização. Sem esta prática, a alternativa poderá ser um retrocesso autoritário.
Eduardo Viola esquematiza cinco dimensões da globalização: econômica, financeira, governabilidade, comunicacional-cultural e científico-técnica. A dimensão econômica compreende a divisão dos estados-nações em sete blocos: os desenvolvidos, as superpotências, os continentais, os emergentes, os estagnados, os extremamente pobres e os excluídos. A dimensão financeira é constituída pelo capital circulante e especulativo. A globalização política baseia-se no avanço das ideologias e regimes democráticos, em detrimento dos autoritários e socialistas. A dimensão da governabilidade global reside nas burocracias internacionais. A dimensão comunicacional-cultural implica a universalização da televisão e dos meios de comunicação de massa. A dimensão científico-técnica é estruturada sobre um extraordinário intercâmbio acadêmico.
Um exemplo marcante da globalização na década de 1980 foi a emergência dos movimentos ambientalistas. Três clivagens emergiram desta preocupação: nacionalista versus globalista, sustentabilista versus predatória, progressista versus conservadora. Desta combinação surgem oito forças políticas: nacionalista-conservadora, nacionalista-conservadora-sustentabilista, nacionalista-progressista-sustentabilista, globalista-conservadora, globalista-progressista, globalista-conservadora-sustentabilista e globalista-progressista-sustentabilista.
A exclusão social e o enfraquecimento do poder político do Estado-nação figuram na tese de Viola como componentes inseparáveis da globalização, pois ambos ameaçam a continuidade democrática. O autor acredita que a globalização é uma tendência irreversível. O futuro das democracias, nesse sentido, depende de duas tarefas: uma nacional e outra internacional. A primeira exige uma inserção econômica bem-sucedida na arena internacional. A segunda depende da construção de instituições de governabilidade global. Em relação à última apresenta quatro possibilidades: 1) baixa governabilidade; 2) bifurcação sócio-cultural na base da governabilidade global oligárquica; 3) social global, atenuada com governabilidade global oligárquica; e 4) sociedade integrada com baixas assimetrias sociais.
O tema ‘Ajuste e reforma do Estado’ reúne reflexões de Maria Alicia Dominguez Uga, Amélia Cohn, Eli Diniz e Marta Arretche. Dominguez Uga alude ao papel do “Consenso de Washington” na legitimação do ajuste ortodoxo na América Latina, na década de 1980. As tentativas de ajustes enfrentaram dificuldades políticas despercebidas pelos defensores do modelo neoliberal. Conseqüentemente, o foco de atenção se centrou na reforma do Estado. De um lado, as receitas ortodoxas, combinando austeridade econômica e fiscal com liberalização gradual da economia, geraram inquietação em todas as classes sociais. De outro, percebe-se a centralidade de um Estado forte capaz de liderar eficientemente a transição do modelo desenvolvimentista clássico para outro regido pela lógica do mercado.
Atualmente, a governabilidade é a nova preocupação das agências internacionais, tidas como as verdadeiras defensoras do modelo neoliberal. A governabilidade restringe-se, na visão dos neoliberais, às reformas administrativas e ao fortalecimento das instituições para garantir as regras do jogo econômico. Esta abordagem se sustenta nos trabalhos de Samuel Huntington, Rudigur Dornbusch e dos teóricos da public choice school.
Huntington refere-se à crescente lacuna entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento político nos países do terceiro mundo. A industrialização e a urbanização intensificaram a participação social. As excessivas reivindicações sociais surgiram desacompanhadas de uma institucionalização do setor público, produzindo uma reação autoritária. Para Huntington, a afirmação da estabilidade política através do fortalecimento das instituições políticas é imprescindível para que se possa “conter as demandas” e garantir a ordem.
Dornbusch e Edwards apontam para a incapacidade dos governos dos países em desenvolvimento de resistirem às pressões políticas e sociais. O “populismo macroeconômico” descreve um conjunto de políticas globais que procuram satisfazer as demandas sociais imediatas sem a preocupação com seus efeitos fiscais e inflacionários.
A public choice school indica a intervenção estatal como a base do desequilíbrio fiscal. Os gestores públicos, ao atuarem como rent seekers, maximizam seus recursos políticos a partir da geração de demandas públicas. Estas ações não correspondem necessariamente às reivindicações reais dos cidadãos. A solução neo-utilitária procura a desregulamentação máxima para garantir o espaço da escolha individual.
Finalmente, a palavra-chave da década de 1990 no vocabulário das instituições internacionais é governabilidade. Objetiva-se a construção da sustentabilidade política da liberalização econômica e da reforma fiscal. Em outras palavras, procura-se a preservação das forças políticas dominantes para garantir as regras do jogo da economia de mercado. Para Amélia Cohn, a crise do Estado desenvolvimentista ocasionou a hegemonia da opção neoliberal. A grande contradição desta ideologia, segundo a autora, reside na sua própria opção pela redução do tamanho do Estado. Cohn enfatiza a propensão autoritária deste projeto, apoiando-se nos argumentos do sociólogo chileno Lechner, ao afirmar que o apogeu do neoliberalismo latino-americano foi alcançado na ditadura de Pinochet.
Outra contradição do neoliberalismo é identificada nos pré-requisitos da inserção do Brasil na arena internacional. As novas tecnologias e processos de trabalho associados à globalização necessitam de recursos humanos especializados e altamente preparados. Sem uma política educacional pública que priorize o preparo do trabalhador brasileiro, dificilmente o país se tornará competitivo.
A proposta de Cohn contesta a receita liberal, sugerindo uma alternativa participativa. O fortalecimento da sociedade e a permeabilização do Estado às demandas públicas dariam resultados concretos e imediatos. Esta hipótese fundamenta-se na constatação de Peter Evans, de que nos países em desenvolvimento a burocracia disciplinada é escassa. Uma combinação de autonomia administrativa do Estado e inserção no cotidiano da sociedade aumentaria o potencial mobilizador das iniciativas coletivas. Cohn conclui aderindo à proposta de Lechner de criar “um Estado democrático que integre efetivamente todos os cidadãos”. Sem esta política, a autora acredita que a sociedade brasileira enfrenta riscos de fragmentação institucional e atomização social.
A crise política, para Eli Diniz, é conseqüência do descompasso Estado/sociedade e da ineficácia da implementação de políticas públicas. Esta hipótese reacende a polêmica em torno da viabilidade de reformas no âmbito da democracia representativa. Diniz reprova os críticos da viabilidade democrática ao situar a crise brasileira precisamente na “hiperatividade decisória do governo e sua falência decisória”. Em outras palavras, os problemas do Brasil são fruto do reduzido caráter democrático do poder político. Cita as câmaras setoriais como um exemplo deste comportamento contraditório. A “concertação” envolvendo governo, sindicatos e empresariado permitiu uma reestruturação bem-sucedida da indústria automobilística. No entanto, o esvaziamento desta política inovadora veio da própria equipe econômica do governo. O subseqüente bloqueio de sua implementação encerrou esta experiência inovadora. Diniz ironiza, ao mostrar como este comportamento governamental se baseia num discurso liberalizante, porém, dentro de uma prática arbitrária. Das suas observações sobre as câmaras setoriais sugere uma alternativa associativista envolvendo negociações permanentes sobre os rumos das políticas públicas e, particularmente, da inserção do Brasil na arena internacional.
Marta Arretche indica que a literatura na década de 1980 associa democratização e publicização do Estado à descentralização administrativa e territorial. A autora observa que, passada uma década, esta hipótese não tem se firmado conclusivamente. Adverte que a eficácia da ação governamental depende menos da centralização/descentralização e mais da transparência e da eficácia de sua implementação.
No caso brasileiro, a descentralização das políticas sociais ocorreu sem uma coordenação global, causando uma desigualdade de desempenho. Para Arretche, as políticas de descentralização exigiam, contraditoriamente, o fortalecimento do poder central como garantia de um bom desempenho. Finaliza indicando a propensão clientelista da administração local. Embora constate-se os benefícios advindos da proximidade do cidadão com o poder público, a vulnerabilidade ao clientelismo e ao personalismo aumentam na mesma proporção.
Os artigos de Maria Lúcia Werneck Viana, Ana Luiza Viana, Celia Almeida e Rosa Maria Marques tratam do estado de bem-estar social na atualidade e sua perspectiva futura. Maria Lúcia Werneck Viana defende a tese de que a globalização e a ofensiva neoliberal exigem um ajuste do estado de bem-estar, entretanto, sem abalar seus princípios básicos. Werneck é influenciada pela abordagem do sociólogo sueco Gosta Esping-Andersen e do cientista político inglês Desmond King. Interesses coletivos entrincheirados obstruem a realização do sonho neoliberal de desmantelar a seguridade social. A institucionalização do welfare state depende do processo histórico de reconciliação e conflito entre interesses políticos, gerando um consenso nacional sobre seus objetivos. Em outras palavras, o welfare state transformou-se num aspecto fundamental da identidade nacional da maioria dos países desenvolvidos e, particularmente, dos europeus.
O neoliberalismo e a pressão econômica global induzem uma renegociação entre os grupos de interesse na busca de um novo equilíbrio, sem contestar a universalidade dos seus propósitos. Nesse sentido, as afirmações catastróficas de fim do bem-estar são exageradas. Este quadro é evidente no caso dos países europeus, onde as tradições institucionais e sociais de proteção são consolidadas. Mas, nos países em desenvolvimento, e particularmente no Brasil, o quadro é preocupante.
A autora comenta a tendência americanizante do Brasil, tanto no que se refere à política social como ao estilo político. A origem desta tendência se encontra na política do regime autoritário de expansão da participação do capital privado em todos os aspectos sócio-econômicos do desenvolvimento nacional. Embora a constituição brasileira de 1988 se fundamente no princípio universal, uma crescente lógica privatista permeia o sistema. A combinação de participação privada e pública define o novo modelo na atualidade. A autora resume este sistema como de parcos benefícios para os pobres. Enquanto os grupos com alto poder aquisitivo possuem planos e seguros sociais privados, há a redução do atendimento público aos indigentes.
No plano político nacional, o surgimento de lobbies e a atuação direta dos grupos de interesse sobre o Congresso Nacional é uma réplica do estilo americano. Grupos de interesse freqüentemente representam forças econômicas poderosas que conseguem mudar a forma de intervenção social do Estado, abrindo caminho para um gradual avanço do setor privado. Em outro artigo, Ana Luiza Viana alerta ser a transição da sociedade industrial para a pós-industrial a semente do avanço neoliberal. O nascimento do setor de serviços inaugura o assalto às instituições públicas. Distingue dois modelos predominantes de políticas sociais: o universal e o ocupacional. O primeiro reflete a experiência européia e se fundamenta no sistema solidário de fundos públicos universais. O segundo sustenta-se no modelo anglo-saxão (Estados Unidos da América e Grã-Bretanha) e se caracteriza pela garantia das coberturas por categoria ocupacional.
O avanço neoliberal teve o seu maior êxito na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde a ênfase é dada ao crescimento de oferta dos serviços privados e à descentralização administrativa para as subunidades nacionais. Uma combinação de descentralização e gradual privatização indica a consolidação de um novo modelo de atenção.
Todavia, a autora segue os passos de Werneck, ao afirmar que o êxito deste modelo não é completo. Salienta que houve poucas mudanças do modelo welfare state nos países desenvolvidos na última década. A solidez institucional aliada a um enraizamento da sua lógica na cultura política garantiram a manutenção dos seus princípios. Observa um “novo mix de universalismo e particularismo e standard nacional e diversificação subnacional”. O sistema não se rendeu ao liberalismo, mas gradualmente se tornou plural e diversificado.
Na eficácia financeira do Estado residem as grandes preocupações da década de 1980, como salienta Célia Almeida. Observa que a política de saúde deslanchou a partir de um tripé: a restrição da autonomia médica, a reestruturação da relação entre público e privado, e a descentralização para as unidades subnacionais e o setor privado.
O sistema de saúde consolidado a partir da Segunda Guerra Mundial foi influenciado pelo modelo americano. Ironicamente, a hegemonia americana beneficiou o financiamento do bem-estar social na Europa. O modelo de saúde se distingue por: 1) predominância de especialização e do sistema hospitalar; 2) o Estado se transforma no maior empregador de profissionais e comprador de serviços médicos; e 3) a extensão dos direitos amplia enormemente o mercado para os serviços médicos.
Nas décadas de 1960 e 1970 ocorreu uma reação antimédica como decorrência da inflação dos preços dos serviços médicos. Esta situação se combinou com o aprofundamento da crise fiscal da década de 1970. O impasse veio como surpresa tanto para conservadores como para progressistas. A resposta conservadora, assentada numa crítica do Estado, aproveita-se do momento e parte para a solução privativista. Generaliza-se o princípio de que a performance do sistema é insatisfatória, ineficiente e de poucos resultados. A nova agenda política inclui no seu bojo a eficiência gerencial, preferência do consumidor, equilíbrio de gastos e a lógica de mercado na oferta de serviços. Esta concepção gradualmente se transforma na receita das organizações internacionais de desenvolvimento
Ao concluir, a autora constata que, embora o sistema europeu demonstre superioridade financeira e de desempenho, consolidou-se o modelo americano, considerado inferior na sua opinião. O recolhimento do Estado resultou numa agilização dos serviços, mas, ao mesmo tempo, reduziu-se a regulamentação estatal e o potencial de contenção de custos. O distanciamento entre a qualidade do modelo e sua concretização como sistema hegemônico, na visão da autora, derivou da pressão americana e de sua imposição política.
Rosa Maria Marques elabora um recorte na história da “proteção social” (velhice, invalidez, morte, doença, maternidade e acidentes de trabalho) na Segunda Guerra Mundial. Até a década de 1950 predomina um sistema rudimentar de proteção social. A universalização destes serviços ocorre a partir da Segunda Guerra Mundial. O novo sistema estende a proteção dada aos assalariados à totalidade da população. Em outro sentido, consolida-se uma nova visão dos direitos sociais baseada na cidadania.
O novo modelo universal acompanhou o surgimento do modelo de acumulação taylorista/fordista. Os assalariados conseguiram ganhos reais indiretos (fringe benefits), permitindo uma maior participação no consumo interno de mercadorias. O Estado, em outras palavras, passou a subsidiar o custo de reprodução da força de trabalho, levando a uma ampliação do consumo e, subseqüentemente, à expansão da acumulação do capital. A partir da década de 1950 houve uma melhoria significativa na oferta de serviços, e, ao mesmo tempo, a ampliação do número de protegidos. Estes dois fatores expandiram significativamente os gastos sociais.
O sistema, na visão da autora, entra em crise devido ao aumento demográfico da população idosa. Conseqüentemente, o gap entre o crescimento do produto interno bruto (PIB) e o crescimento dos gastos sociais se ampliou. A resposta inicial ousou conter este desequilíbrio. Medidas como aumento de contribuição, controle orçamentário mais rígido, maior custeio de hospitalização e medicalização e complementação de aposentadorias por entidades privadas foram alguns dispositivos empregados para contornar a espiral dos custos sociais.
A iniciativa da Fiocruz, seguramente, é uma grande contribuição ao debate atual sobre os resultados da globalização. O grande mérito reside na exposição dos efeitos políticos, sociais e institucionais da integração internacional desencadeada a partir da reestruturação econômica da década de 1970. A coletânea, no entanto, reedita o excessivo jargão sociológico, dificultando a exposição cristalina de argumentos. Na minha opinião, esta lacuna é provocada pela predominância de raciocínios normativos e teóricos e ausência de dados empíricos e factuais. Neste momento decisivo da internacionalização do capital, a tão citada globalização, é imprescindível expor, em estudos concretos, os seus efeitos sobre o Estado e a sociedade. Para entender este fenômeno global, é necessário mergulhar em estudos de caso e manter contato permanente com a realidade do cidadão comum, das instituições públicas, das localidades, das organizações não-governamentais (ONGs) etc. A abstração teórica e a especulação interpretativa distanciam os estudiosos da compreensão da ação social, gerando argumentos ambíguos e tautológicos.
A grande polêmica levantada nos artigos é a hipótese do enfra-quecimento (ou não) do Estado-nação perante o capital transnacional. De um lado, Viola e Gerschman apóiam a tese da ingovernabilidade nacional. De outro, Werneck, Arretche e Viana enfatizam o exagero das previsões catastróficas a respeito do desaparecimento das políticas sociais. Concordando com a segunda posição, Diniz e Cohn reiteram a importância de um Estado autônomo, racionalizado e inserido no contexto social nacional para a condução ordenada do Brasil na arena internacional.
Crescentemente, a segunda posição encontra sustentabilidade no pensamento predominante na década de 1990. Estas teses, delimitadas como neo-institucionais, consideram a globalização uma tendência inevitável e natural à economia capitalista. Reconhecem, todavia, que a inserção competitiva de qualquer país no mercado internacional depende da solidez institucional e da efetividade das políticas públicas. Argumentam ainda que este fato é válido tanto para os países em desenvolvimento como para os países desenvolvidos.
Neste aspecto, comungam com as investigações do grupo do “capital social” que demonstra como a sinergia entre as instituições públicas e a sociedade organizada contribui para deslanchar um desenvolvimento sócio-econômico superior às opções neoliberais. Integrantes deste grupo, sociólogos e cientistas políticos das mais reconhecidas universidades americanas, como Peter Evans, Jonathan Fox, Michael Burawoy, Elinor Ostrom, Judith Tendler, entre outros, argumentam que no processo de ingresso do país no mercado internacional a confiança pública, firmada como decorrência da sinergia, facilita a reestruturação econômica e minimiza os efeitos nocivos do mercado internacional sobre a indústria local. Os autores afirmam que a cooperação, além de assegurar um desenvolvimento sócio-econômico equilibrado, provoca a multiplicação de iniciativas coletivas. Em tais circunstâncias, a democracia seria mais eficaz na mobilização dos recursos sociais e naturais disponíveis.
Os argumentos críticos do neoliberalismo nos países desenvolvidos vão no mesmo rumo. As publicações de Laura Tyson, Rebecca Blank, Lester Thurow e Robert Reich aludem ao papel central do Estado americano na estimulação da competitividade global. Em dois artigos influentes, Tyson, professora da Universidade da Califórnia e assessora econômica da presidência americana no primeiro mandato de Clinton, ressalta a importância da propriedade nacional de setores-chave industriais da economia americana. Reich, secretário de Trabalho do mesmo governo, defende uma política nacional de educação pública capaz de manter a liderança econômica americana no século XXI. Blank, a subsecretária de Trabalho, sugere políticas sociais abrangentes que reduzam os impactos negativos da globalização e das políticas neoliberais dos governos republicanos. Lester Thurow, professor no Massachusetts Institute of Technology (MIT), considerado um formador de opinião pública nos Estados Unidos, aludiu ao papel educativo do Estado, neste momento de excessiva migração internacional do capital, como chave do sucesso para o próximo século.
Todos estes autores apontam para o papel decisivo das instituições públicas na geração de condições competitivas no mercado internacional. As políticas sociais e a participação democrática aparecem como as mais elevadas prioridades do desenvolvimento econômico equilibrado. Em suma, na década de 1990, as instituições públicas voltam a assumir o lugar de destaque em todas as discussões sobre desenvolvimento, globalização e mudança social.
De acordo com as referências citadas, pode-se afirmar que o aspecto positivo desta coletânea é a retomada da importância do Estado e das políticas sociais como ações corretoras dos efeitos da desregulamentação econômica mundial. Conclui-se que estruturas administrativas eficazes, políticas econômicas direcionadas ao fortalecimento da economia nacional e políticas sociais universalizadas levam a uma inserção sistemática na arena internacional. Por outro lado, os custos econômicos e sociais serão extremamente elevados.
Permanece a observação brilhante feita por Immanuel Wallertsein há mais de duas décadas. A participação de Estados dominados por clientelismo e personalismo no sistema econômico internacional inevitavelmente produz um quadro de troca desigual, onde o excedente econômico encontra refúgio nos pólos de desenvolvimento equilibrados. Talvez os últimos aconte-cimentos nas bolsas de valores confirmem esta tese. Países com instituições públicas enfraquecidas, políticas sociais inconsistentes, universidades abandonadas, recursos naturais devastados não terão futuro promissor no próximo século.
Resenhista
Jawdat Abu-El-Haj – Professor da Universidade Federal do Ceará. Doutor em política social.
Referências desta Resenha
GERSCHMAN, Silvia; VIANNA, Maria Lúcia Werneck (Orgs.). A miragem da pós- modernidade: democracia e políticas sociais no contexto da globalização. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1997. Resenha de: ABU-EL-HAJ, Jawdat. Democracia e políticas públicas na era da globalização. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.5, n.1, mar./jun. 1998. Acessar publicação original [DR]