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A Malinche dos cronistas – JOSÉ (FH)

JOSÉ, Maria Emília Granduque. A Malinche dos cronistas. Curitiba: Editora Prismas, 2016. 158 p. Resenha de: SILVA, Rodrigo Henrique Ferreira da. A Malinche do Século XVI. Faces da História, Assis, v.5, n.2, p.316-321, jul.dez., 2018.

A utilização da crônica e de outros textos semelhantes é de suma importância para os estudos coloniais sobre a América. O uso de tais documentos é um campo aberto que começou a ter mais atenção no Brasil nas duas últimas décadas. Além das fontes de arquivos e cultura material, os trabalhos sobre o período colonial se enriquecem com as crônicas, pois cada espaço do continente americano teve seus próprios cronistas, desde os primeiros contatos entre europeus e indígenas, passando pelo processo de conquista, colonização e catequese. A obra aqui resenhada, A Malinche dos cronistas, da historiadora Maria Emília Granduque José, insere-se nesse crescimento de pesquisas que tomam por corpus documental essas crônicas.

A proposta do livro visa preencher uma lacuna em relação aos estudos da história da conquista espanhola sobre as populações indígenas astecas, entre os anos de 1519 e 1521, no atual território do México. Diante dos atores desse evento, uma das personagens destacou-se entre os próprios pares e foi reinterpretada durante longo tempo na historiografia dedicada à conquista espanhola. Trata-se de Malinche, uma índia intérprete que se envolveu e participou desse momento da conquista.

Ao tratá-la como principal objeto de pesquisa, Maria Emília José tem por objetivo consultar os relatos que versam sobre a conquista espanhola do México para analisar o que os próprios cronistas narraram sobre a indígena e qual a imagem que esses homens produziram dela em seus textos escritos no século XVI. Dito isso, a intenção da autora não é propor a busca de um retrato mais verdadeiro, mas sim, analisar a perspectiva desses diferentes cronistas na própria época da conquista, o que não significa ser um registro mais confiável sobre a Malinche em relação aos documentos de séculos posteriores. O estudo em questão contribui no preenchimento da lacuna do tema abordado e, mais especificamente, a participação da Malinche nesse evento. “Saber o que esses cronistas disseram sobre ela é saber um pouco mais sobre o encontro dos espanhóis com os nativos mexicanos e, assim, sobre a conquista do império de Montezuma […]” (JOSÉ, 2016, p. 85).

O livro é composto por uma apresentação, duas partes com quatro tópicos na primeira e sete na segunda, além de um prefácio escrito pelo historiador Leandro Karnal, e palavras finais. É na apresentação e nas palavras finais que a proposta da historiadora justifica-se ao cotejar as correntes do pensamento mexicano mais expressivas dos séculos XIX e XX, que, inclusive, são bem distantes das construídas pelos contemporâneos quinhentistas, mesmo em relação à representação de Malinche.

A primeira delas refere-se ao discurso nacionalista dos primórdios da independência do país, na primeira metade do século XIX. Na intenção de estabelecer uma identidade mexicana, tais autores releram essas crônicas e consideraram a indígena como a grande culpada pela queda do império asteca ao colaborar com Cortés e seus soldados espanhóis e a consequente situação colonial do México. Com isso, nas obras de temática indigenista, “Malinche aparece como uma anti-heroína que vende seu povo aos invasores externos durante a conquista espanhola […]” (JOSÉ, 2016, p. 147). Ou, como afirma Karnal no prefácio da obra, ela seria uma personalidade contraditória por não ter desenvolvido a “consciência étnica”, um conceito europeu e essencialista no sentido de nação de indígena do Oitocentos. Se a intérprete é personificada como um símbolo de traição à pátria, os expoentes do nacionalismo buscam nos governantes astecas – como Cuauhtemoc – a expressão do herói nacional para representar os mexicanos contra os invasores espanhóis.

No entanto, podemos identificar, ainda nos séculos XIX e XX, o enfoque hispanista, que buscou, na escrita, a construção de uma imagem positiva da Malinche ao destacá-la como uma das figuras mais importantes da conquista, sendo esta um feito benéfico na formação de toda a estrutura social e política do México. Além disso, “Malinche aparece, nessa versão, como uma valiosa colaboradora para a obra religiosa e civilizacional promovida pelos conquistadores” (JOSÉ, 2016, p. 148). Por fim, existe uma terceira corrente, a mestiça, que busca conciliar o elemento indígena e espanhol ao usar a mestiçagem como um fator de coesão da nação mexicana. Logo, a intérprete é lida como a “madre da pátria” por gerar o primeiro mestiço mexicano, fruto de sua relação com Cortés, e simbolizar a união do espanhol com o indígena.

Os autores oitocentistas e novecentistas que se propuseram a analisar a figura da Malinche partiram das crônicas quinhentistas para ampararem suas teses e desenvolverem as variadas interpretações da índia, de acordo com seus contextos históricos. Entretanto, Matthew Restall aponta que “quase todos esses elementos são muito reveladores da história mexicana moderna – mas não da Conquista em si […]” (RESTALL, 2006, p. 157), o que faz com que Maria Emília José busque nesses mesmos homens do século XVI os seus relatos sobre a Malinche. São eles: os próprios soldados do momento da conquista, Hernán Cortés e Bernal Díaz; Francisco de Gómara, em 1552; o religioso Bernardino de Sahagún, em 1575; e também os cronistas mestiços Diego Munhoz Camargo, durante 1584-1585, e Alvarado Tezozomoc, em 1598.

Ao verificar nesses diversos textos as informações transmitidas sobre a Malinche, a historiadora sustenta em seu livro uma tese de que os escritos dos cronistas não são coincidentes no que se refere à origem, ao modo como a intérprete chegou até Cortés e ao seu desfecho após o término da conquista aqui retratada, até pelo fato desses homens partirem de lugares diferentes no registro de suas narrativas, já que há crônicas de conteúdos religiosos e outras mais apegadas a questões militares. Por outro lado, a autora mostra na obra que “as impressões legadas por esses narradores acerca da personagem são formadas muito mais por semelhanças do que diferenças” (JOSÉ, 2016, p. 20), e mesmo no caso dos cronistas mestiços, as anotações são equivalentes às dos espanhóis e “suas opiniões acabam se complementando, ou melhor, ajudam a construir uma mesma imagem da parceira de Cortés” (JOSÉ, 2016, p. 21).

Como dito anteriormente, o livro se estrutura em duas partes. Ao considerar o documento da crônica como um suporte textual para armazenar o registro do encontro entre espanhóis e indígenas e as percepções da Malinche, a proposta da primeira parte concentra-se na discussão do processo de formação dessas narrativas, o gênero cronístico e seus autores; mais adiante, analisam-se os motivos e razões da escrita dos textos, levando em consideração os propósitos e interesses pessoais de cada cronista e as leituras e ideias compartilhadas na época que orientaram os olhares sobre os acontecimentos.

A historiografia atual da escrita da crônica segue um caráter inter ou transcultural da produção histórica, devido à suposta dificuldade em generalizar a obra como sendo espanhola, indígena ou mestiça em sentido étnico; ou seja, a produção cronística não necessariamente representa a origem étnica de seu autor, pois cada texto é visto como interlocução particular de um contexto específico, da interação entre tradições distintas e a disposição de diferentes opções e possibilidades segundo o público alvo. Um cronista pode ser indígena de origem, mas socialmente pode pertencer a qualquer grupo pelo fluxo e refluxo constante de informações e ideias; tudo procede das configurações culturais resultantes da produção de significações por interesses, alianças e cumplicidades (LEVIN ROJO; NAVARRETE; INOUE OKUBO, 2007). Como afirma Inoue Okubo, na discussão epistemológica, pode-se reconhecer as três denominações – espanhóis, índios e mestiços – como provisórias apenas para facilitar a compreensão, mas nunca como absolutas. Essa é a linha historiográfica que Maria Emília José segue ao tratar da questão da crônica e dos homens quinhentistas que utiliza como exemplos: Sahagún é um espanhol religioso que usou elementos indígenas para conhecer o passado mexica; Muñoz Camargo é um mestiço que se valeu de elementos europeus na narrativa sobre Tlaxcala. “Ambos os relatos foram o resultado de uma interação cultural nascida do contexto histórico em comum, vivenciado e atuado tanto por indígenas quanto por espanhóis” (JOSÉ, 2016, p. 39).

“A especificidade dos autores envolvidos com essa escrita também configura uma característica dessas crônicas” (JOSÉ, 2016, p. 39). Seus propósitos pessoais em registrar um texto que reafirme seus interesses na América estão interligados, segundo a autora, com o próprio contexto histórico do período: são homens renascentistas em busca de honrarias (valores caros no mundo ibérico), glórias, fama, títulos e todo tipo de recompensas do rei a fim de eternizarem seus nomes na história e servirem de exemplos para as gerações futuras. O renascimento, especialmente o espanhol, coloca em tensão as hipóteses dos antigos gregos com a nova realidade americana. As referências dos cronistas ainda se respaldam nos clássicos antigos e medievais,2 mas algumas teses consolidadas são contestadas pelos seus novos feitos com as navegações e descobertas marítimas; conhecimentos que os povos antigos não obtiveram. Com isso, era preciso igualar os antigos e superá-los com os novos conteúdos e feitos, o que justifica as constantes disputas envolvendo os diferentes pontos de vista defendidos pelos cronistas acerca das novidades. “É dessa forma, pois, que o afã por escrever um texto inovador ou produzir uma obra única caracterizou o cronista espanhol desse contexto” (JOSÉ, 2016, p. 46-47).

Outra referência fundamental e talvez a mais expressiva entre elas, é a premissa religiosa bíblica que conduziu as visões e os olhares desses homens dentro de uma concepção providencialista do mundo.

“Como se vê, o tom pessoal do cronista teve um peso considerável no momento da escrita, de modo que a necessidade de se inserir na história da conquista o fez criar outra ordem para os eventos” (JOSÉ, 2016, p. 76). Com toda a discussão feita em torno da produção cronística, Maria Emília José adentra na segunda parte do livro e analisa a construção da memória dos atores da conquista pela crônica, enfaticamente a Malinche, como foi vista por esses cronistas do século XVI e retratada em seus supracitados relatos.

A história da conquista dos povos astecas pelos espanhóis e outros aliados indígenas foi marcada pelo problema da comunicação. Para que Cortés e seus soldados conseguissem dialogar com os diversos nativos foi preciso a colaboração de intérpretes que entendessem as várias línguas em contato, como o maia, o náhuatl e outros dialetos locais, além do castelhano. Alguns índios capturados por guerra costumavam burlar e distorcer as informações aos espanhóis por animosidade e os induziam ao erro, sendo, com isso, ocultados das crônicas. Entretanto, as exceções foram os intérpretes Aguilar e, principalmente, a Malinche, lembrada em muitos relatos da conquista, mesmo que de forma limitada. É por essa peculiaridade percebida nas crônicas e por outros pontos notáveis revelados pelos cronistas que motivou a autora a estudar seu objeto de pesquisa: o olhar construído sobre a Malinche na própria época dos Quinhentos.

Malinche teria sido enviada de presente junto a outras dezenove mulheres aos espanhóis pelos índios de Tabasco como recompensa por perder a guerra,3 com a intenção de servi-los nos afazeres domésticos, sendo batizadas e repartidas entre os melhores soldados. As mulheres pertencentes à linhagem nobre, normalmente filhas dos senhores principais, eram entregues com a finalidade de se tornarem esposas dos novos aliados – o caso de Malinche –, e as demais, sendo escravas, deveriam servir em diferentes funções a seus novos donos. Há divergências das narrativas sobre o local de origem de Malinche e o modo como foi entregue aos índios de Tabasco, mas, todas em geral reconhecem sua condição que passou por diversas províncias até chegar a Tabasco. Os cronistas Bernal Díaz e Gómara sugerem que o conhecimento linguístico de Malinche se deve à convivência com diferentes grupos durante os anos em que foi tratada como escrava por essas outras populações, o que pode ter contribuído para o aprendizado das línguas faladas na região e que permitiram a comunicação com boa parte dos nativos, e com os hispânicos, posteriormente.

O aparecimento de Malinche foi importante para intermediar os diálogos que serviram de negociações de alianças com os senhores de Tlaxcala e o contato entre Cortés e Montezuma, agindo em benefício dos conquistadores por julgar adequado para os seus objetivos, ao contrário de outros índios intérpretes. O respeito e admiração conquistados faz com que Malinche seja vista como a “lengua de Cortés” e alcance uma posição de destaque entre os espanhóis: é reconhecida como senhora nobre e exemplar, sendo até chamada de “doña Marina”.4 Toda essa “ponte comunicativa” possibilitada pelas habilidades linguísticas e persuasivas de Malinche a coloca como uma típica faraute, a intérprete responsável pelo trânsito das mensagens.

Talvez por isso nossa personagem tenha ganhado certo destaque nas crônicas […]. A tarefa exercida de intermediar a comunicação entre tais culturas distantes, a partir da constituição de uma fala comum a ambas, pode ser percebida nas páginas escritas pelos diferentes testemunhos da conquista.

É uma imagem construída tanto pelas crônicas aqui consultadas como pelos códices indígenas produzidos nessa época, especialmente o Códice Florentino, que traz cenas de Malinche em pé, à frente dos conquistadores, negociando pontualmente com os naturais (JOSÉ, 2016, p. 120).

Diante dessas situações, Maria Emília José afirma a boa imagem de Malinche nas crônicas quinhentistas, tendo seu lugar nos discursos realizados durante a conquista e nas décadas posteriores. Mesmo com a divergência de informações no que se refere a algumas particularidades de Malinche, seja pelos distintos interesses desses narradores com a escrita, seja pelo confronto de dados sobre a personagem, “[…] não alterou, no entanto, o consenso entre os cronistas sobre a sua relevante contribuição como tradutora nos diálogos estabelecidos durante a conquista” (JOSÉ, 2016, p. 141). Portanto, uma imagem da Malinche como figura central na comunicação e papel protagonista desse evento histórico, mesmo com poucas menções; bem diferente das visões historiográficas posteriores mencionadas no início da resenha.

O livro de Maria Emília José traz grande contribuição para os estudos da história da conquista, pois trata sistematicamente de uma personagem histórica indispensável para os sucessos dos espanhóis e aliados indígenas, e como a índia intérprete foi retratada por um seleto grupo de cronistas do século XVI – uma importante lacuna que necessitava ser preenchida. A autora também se propõe a analisar as representações históricas de Malinche na historiografia moderna mexicana, com destaque às correntes nacionalista, hispânica e mestiça. A obra também possibilita pensar outras questões da conquista no que se refere à participação da Malinche inclusive no campo de estudos sobre gênero, atualmente em expansão na área de estudos históricos.

Notas

2 Maria Emília José menciona as que seriam as principais referências que amparam a escrita dos homens quinhentistas: a busca pelas maravilhas do Oriente relatadas por Marco Polo e Mandeville; os mitos antigos dos antepassados, como o das guerreiras Amazonas e a terra dos Gigantes; a literatura cavalheiresca, responsável por ensinar os modos e condutas de agir dos heróis para buscar a honra e a glória.

3 A doação de mulheres era uma prática comum entre os nativos em situação de guerra, tanto para estabelecer alianças com os adversários como para estreitar laços de amizade.

4 É importante ressaltar que Malinche passa a ser chamada de Marina após receber o batismo cristão.

Já a expressão “doña” possuía um grande peso social por ter origem nobre ou ter prestígio reconhecido.

Referências  

INOUE OKUBO, Yukitaka. Crónicas indígenas: una reconsideración sobre la historiografia novohispana temprana. In: LEVIN ROJO, Danna; NAVARRETE LINARES, Federico (Orgs.). Indios, mestizos y españoles: Interculturalidad e historiografia en la Nueva España. México: Universidad Autónoma Metropolitana & IIH – UNAM, 2007. p.55-96.

JOSÉ, Maria Emília Granduque. A Malinche dos cronistas. Curitiba: Editora Prismas, 2016.

RESTALL, Matthew. As palavras perdidas de La Malinche: o mito da (falha na) comunicação. In: RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Trad. Cristiana de Assis Serra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

Rodrigo Henrique Ferreira da Silva – Doutorando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), sob a orientação do Prof. Dr.Luiz Estevam de Oliveira Fernandes. E-mail: silvarhf@gmail.com.

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Itamar Freitas

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