A majestade do Xingu Z Moacyr Scliar

O novo romance de Moacyr Scliar, A majestade do Xingu, parece ser, a princípio, uma biografia romanceada do médico sanitarista Noel Nutels, imigrante russo de origem judaica que dedicou vida e profissão a cuidar dos índios brasileiros. Até aí não haveria nada de especial a destacar, uma vez que o romance seria unicamente a moldura que permitiria narrar a vida do biografado. A literatura seria apenas o expediente para cativar o leitor, e o interesse do texto reduzir-se-ia às peripécias da vida do médico. Mas, felizmente para a literatura, para a medicina e especialmente para o leitor, estamos diante de um texto que vai muito além de qualquer mecanismo mercadológico daquela espécie.

Felizmente para a literatura porque, ao invés de ser uma biografia romanceada, o livro constitui, antes de tudo, um romance, em que a biografia funciona como um catalisador, um ponto de partida e não de chegada. A diferença é vital: mais do que a vida do “médico dos índios”, o que importa ao autor são as relações dessa vida com o mundo que a cerca e, por extensão, com o mundo que nos cerca, a nós leitores. Não por acaso, a figura do narrador, um homem comum no leito de morte, meditando sobre sua vicia, ganha muito mais vulto do que a personagem de Noel Nutels. O médico paira sobre o texto, mas nunca é o seu centro absoluto, servindo antes de contraponto à vida e à narrativa desse moribundo, de onde emerge uma reflexão sobre a própria condição humana.

Felizmente para a ciência hipocrática porque, mais do que de um médico, o livro fala da medicina, de seu lugar enquanto saber e poder, de sua inserção histórico-social. Se a medicina é tomada como metáfora do conhecimento, são os limites desse conhecimento o que o romance parece querer investigar.

Dessa forma, não estamos diante da biografia de um médico, mas de um romance que toma a medicina como uma imagem do saber e, ao mesmo tempo, medita sobre o saber da medicina. Um dos lemas de Hipócrates parece ser o lema do romance: “Transportar a sabedoria para a medicina e a medicina para a sabedoria, pois, na realidade, não há diferença entre a sabedoria e a medicina.” Longa é a tradição da relação entre literatura e medicina. O próprio Moacyr Scliar debruçou-se sobre essa história em A paixão transformada: história da medicina na literatura (São Paulo, Companhia das Letras, 1996), bem como em Sonhos tropicais, (São Paulo, Companhia das Letras, 1992) que se situa a partir da vida de Oswaldo Cruz e do episódio da Revolta da Vacina. Se lembrarmos que o escritor é, ele mesmo, médico e sanitarista, como Cruz e Nutels, veremos que seu ponto cie vista é o cie alguém que, através cio próprio percurso de vicia, tem meditado sobre as relações entre os dois saberes. Se lembrarmos ainda que, como Nutels e como o narrador de A majestade do Xingu, Scliar é filho de imigrantes judeus russos, vemos que há no romance uma intricada rede de espelhamentos, a qual, se, por um lado, poderia facilitar’ a narrativa, uma vez que o autor possui vivências semelhantes às de suas personagens, por outro, faz cia ‘facilidade’ uma arma enganosa, que pode contaminar a necessária despersonalização sem a qual não há literatura.

A histórica relação entre a medicina e o gênero do romance, em especial, pode nos dizer muito sobre o livro de Scliar. As primeiras manifestações cio romance aparecem, no final da cultura grega, pelas mãos de Luciano de Samósata, autor cie diálogos pós-filosóficos, marcados por uma ironia crítica, um riso filosófico, à maneira dos cínicos. Na obra do autor das Saturnais, o médico-filósofo é sempre uma personagem central, através da qual as formas de sabedoria cia filosofia e cia história são colocadas em xeque (basta conferir, por exemplo, os diálogos O amante da mentira ou O deserdado). Nesse sentido, Luciano é o pai da idéia cie ficção, uma forma de saber que se define exatamente pela suspensão dos critérios valorativos cia verdade e pela colocação em diálogo dos mais diversos saberes. Luciano era também um estrangeiro aculturaclo que, da margem, criticava as estruturas centrais da cultura grega.

Na literatura ocidental existe o que se poderia chamar cie ‘tradição luciânica’, já largamente estudada, e que inclui autores como Rabelais (para quem o médico-filósofo é igualmente figura-chave), Dostoievski, Machado cie Assis ou Thornton Wilder, entre muitos outros. O que aproxima autores tão díspares é a apropriação e o desenvolvimento de certas formas luciânicas, como o Diálogo dos mortos ou o Diálogo no limiar, gêneros cias ‘últimas questões’, nos quais personagens colocadas aquém ou além cia morte, mas sempre em seu limiar, discutem o mundo dos vivos (vale lembrar como exemplo as Memórias póstumas de Brás Cubas, do nosso Machado, ou a peça Nossa cidade, de Wilder).

A majestade do Xingu pode ser visto como mais um elo nessa série luciânica. Ali temos uma história de um médico e uma reflexão sobre a medicina vistas pelo prisma irônico de um narrador colocado à margem cio processo histórico, ciada a mediocridade de sua existência, e igualmente colocado em frente às ‘últimas questões’, já que se encontra em um leito cie hospital, à espera da morte. Essa situação exige do narrador-personagem um balanço sobre sua vicia. Esse balanço se revela como uma imagem cia nossa miserável condição humana, presa nos liames cie um tempo limitado, sob as exigências de um corpo também limitado. Entretanto, nosso corpo como nossa consciência do tempo são plenos de desejos: o corpo querendo superar a si mesmo no encontro amoroso; o tempo querendo superar-se na continuidade da memória.

O narrador, em seu leito cie hospital, revela-se, então, sobretudo como um contador de histórias: “Ai que dor, doutor, que dor no peito, essa injeção que o senhor me deu não adiantou nada, preciso de alguma coisa mais forte. Ou então preciso falar, falar pelo menos me distrai, espero que distraia o senhor.” A urgência da fala é o remédio contra a dor e a morte. O moribundo indaga do doutor se, depois que morrer, o médico irá publicar as histórias que ele conta, já que vê o doutor tomar notas enquanto fala.

Há, portanto, um certo elemento de delírio na narrativa do doente, mecanismo esse que libera o autor para a infidelidade necessária ao estatuto ficcional. A situação narrativa poderia ser resumida da seguinte maneira: o narrador foi amigo de infância de Noel Nutels, amizade essa construída no navio de imigrantes que os trouxe ao Brasil, fugindo dos horrores da Rússia czarista. No Brasil, os caminhos se separam. Narrando sua vidinha medíocre, em contraponto com a de Noel Nutels, o narrador passa em revista um largo momento da história do Brasil, da ditadura de Vargas à ditadura dos militares, momento no qual a questão dos índios se torna dramática e ao mesmo tempo emblemática para uma discussão maior sobre os caminhos da sociedade brasileira.

Noel é o médico dos índios. Sua ciência se revela, entretanto, mais do que apenas medicina. Revela-se como sabedoria, no sentido hipocrático da relação. Essa transformação se dá quando os índios são tomados como microcosmos da sociedade brasileira e a medicina como microcosmos de uma sabedoria social. O mais importante é que não se trata de uma parábola redutora, mas de uma imagem cheia de contradições. Diz o narrador: “Noel é médico. Não é muito médico, segundo os critérios habituais; trata-se de um sanitarista. Uma vez perguntei a um colega seu, doutor, e ele me disse que sanitarista é o médico que trabalha com o corpo social, não com o corpo individual. Confesso que não entendi muito bem. Corpo social? O que é o corpo social? Onde está o corpo social.?’ Não há aqui uma apologia da medicina sanitária, uma vez que a auto-ironia do autor deixa entrever que os médicos sociais não são lá assim tão médicos. Aqui há mesmo a brincadeira séria que diz que sanitaristas são médicos incompetentes ou aqueles que não “deram certo”. O próprio narrador diz que não consegue entender Noel, pois se fosse médico, ele, narrador, colocaria um consultório num bairro elegante, com vistas a ganhar muito dinheiro. Entretanto, a condição marginal do sanitarista, com todas as suas contradições, é o que possibilita ao autor colocar em xeque os saberes constituídos. Seja um saber histórico que excluiu os índios da civilização brasileira, seja um saber médico que reduziu a saúde à ciência do corpo individual.

Vejamos um exemplo trazido pelo narrador: “O pajé da tribo não gosta de Noel. Evita-o como pode. Finalmente, e por insistência do cacique, vai conhecer o médico. Noel cumprimenta-o efusivamente: você vai me ajudar a tratar dos doentes, diz, eu dou os remédios e você espanta os maus espíritos. E ri gostosamente.” A sabedoria do médico está em reconhecer que a saúde é maior do que a medicina, e que a medicina só pode alcançar a dimensão da saúde, e tornar-se sabedoria, se abdicar da condição de saber único e se abrir a outros saberes. Não se trata, no entanto, de uma condescendência como curandeirismo do índio (Noel obviamente sabe bem que é a penicilina e não os espíritos o que vai curar a malária), mas de uma tomada de posição filosófica em relação ao saber: a saúde é maior do que o bem-estar do corpo. Os maus espíritos precisam também ser espantados. Nesses maus espíritos podemos ler toda a história dos índios no Brasil.

E mais importante, do ponto de vista literário, é que aquela apreensão filosófica da sabedoria médica se faz através do riso. Como nos diálogos luciânicos, para Scliar é também o riso a arma filosófica capaz de reavaliar a potência de cada um dos saberes. Sobre o riso filosófico, poderia dizer que o romance passa por dois movimentos distintos. Um primeiro, em que o riso parece ausente. Toda a narrativa da infância de Noel numa pequena aldeia judaica, marcada pela violência do pogrom e pelo signo da exclusão, apresenta-se muito sombria, por ser talvez a parte da narrativa em que a despersonalização não chegou a termo. Dizendo de outra forma: ao narrar a infância de Nutels, o autor narra experiências trágicas muito próximas daquelas vividas por seus próprios ancestrais, e essa proximidade cultural parece dificultar o necessário distanciamento ficcional (que ao longo do livro é dado pelo riso), marcando então a narrativa com um tom soturno.

À medida que o livro avança, entretanto, o riso filosófico surge como instrumento de saber, e o autor encontra sua vocação crítica através da ironia. Essas primeiras experiências de Noel passam a ser, então, mais um entre os muitos termos de comparação que se multiplicam no livro: entre judeus e índios; entre índios e coreanos; entre o médico e o pajé; entre o pajé e o schochet (o encarregado das circuncisões dos homens e da morte ritual das galinhas, na aldeia judaica); entre esses dois últimos e o médico, além de muitas outras comparações que iluminam cada uma das situações sociais com novos sentidos.

Essa visão multifacetada dos papéis sociais constitui uma marca da obra de Scliar. Se no discurso do autor os índios são aparentados aos judeus, poderíamos mesmo fantasiar até que ponto o autor não se sente pressionado pelo próprio nome, uma vez que Moacyr é o “filho da dor” de Iracema, a virgem dos lábios de mel, que não por coincidência aparece no romance parodiada na amante do narrador. Seja como for, as motivações profundas de um autor só podem mesmo interessar a si próprio.

Para nós leitores o que interessa de perto é o produto, e o que podemos com ele aprender. Scliar construiu uma história perigosamente próxima de seu percurso pessoal. Um desafio difícil de ser enfrentado por qualquer escritor. Eventualmente cedeu à tentação dessa proximidade. Mas só eventualmente. O resultado maior é que A majestade do Xingu é um romance instigante, pelo poder imagístico de seu narrador e pela precisão no desdobramento da narrativa. Para os que se interessam pelas relações entre medicina e história, em busca de um conceito amplo de saúde, o livro se constitui numa meditação indispensável.


Resenhista

Marcus Vinícius de Freitas – Professor de literatura portuguesa e brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutorando do Department of Portuguese and Brazilian Studies, Brown University.


Referências desta Resenha

SCLIAR, Moacyr. A majestade do Xingu. São Paulo: Companhia da Letras, 1997. Resenha de: FREITAS, Marcus Vinícius de. Noel Nutels: vida, história e romance. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.4, n.3, nov. 1997. Acessar publicação original [DR]

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