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A literatura infantil e juvenil em língua espanhola: história, teoria, ensino – CARDOSO (EA)

CARDOSO, Rosane Maria (Org.). A literatura infantil e juvenil em língua espanhola: história, teoria, ensino. Campinas, SP: Pontes Editores, 2018. 407 p. Resenha de: MONTEMEZZO, Luciana Ferrari. Literaturas para o ensino de língua espanhola. Em Aberto, Brasília, v. 32, n. 105, p. 205-210, maio/ago. 2019.

Em 2018, a Pontes Editores brindou-nos com a publicação da obra A literatura infantil e juvenil em língua espanhola: história, teoria, ensino. Organizada pela professora Rosane Maria Cardoso, da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), vem cumprir o importante papel de trazer à tona reflexões acerca do papel dos professores de línguas adicionais perante grupos discentes variados: desde o ensino básico até a formação de professores e seus cursos de licenciatura.

A preocupação com o tema, conforme conta a organizadora na apresentação da obra, surgiu das inquietudes internas dos alunos do curso de licenciatura em Letras. Ansiosos pelo ingresso em sala de aula, esses alunos projetam novas possibilidades para o ato de ensinar. Durante esse processo, percebem que, via de regra, a literatura que aprendem na universidade acaba ficando de fora da sala de aula, no ensino básico. Ali, por questões que se referem sobretudo às exigências de avaliações em que a literatura não é contemplada, há espaço apenas para o ensino de língua adicional, em escassas horas semanais.

Identificado o desafio, surge o grupo de pesquisa “Didáticas de Língua e de Literatura: leituras na educação básica”, que busca pensar, em conjunto, alternativas para essa lacuna. E, das reflexões do grupo, nasce o livro aqui resenhado.

A inserção da literatura em aulas de língua não apenas pode ser implementada, como tende a ser um de seus braços mais destacados. Quando se trata especificamente de literatura em língua espanhola, o farto material e a qualidade da literatura produzida no mundo hispânico favorecem a seleção de textos que podem estimular os alunos a conhecer a língua, por conseguinte, sua literatura e, por meio desta, também a cultura e a história dos países que têm o espanhol como língua oficial.

Isso significa, para os alunos brasileiros, a oportunidade de ampliar o conhecimento sobre os países fronteiriços, com os quais compartilhamos hábitos e paisagens. Por exemplo, lendo os contos do uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937), o estudante brasileiro perceberá a existência de paisagens e costumes muito semelhantes aos do Sul do Brasil. Tal reconhecer-se no outro poderá provocar um importante movimento identitário, de fundamental relevância para despertar o interesse do discente, que seguirá estudando e descobrindo com autonomia.

Ciente desse quadro e buscando propor respostas às inquietações de professores e alunos, a coletânea organizada pela professora Rosane Maria Cardoso conta com artigos de pesquisadores de vários países de fala hispânica: Espanha, Peru, Uruguai, Colômbia, Guatemala e Venezuela. Inclui também artigo de autora brasileira cuja pesquisa lança um olhar estrangeiro sobre o objeto, ressignificando-o.

Tal fato demonstra não apenas a capacidade de integração e articulação entre pesquisadores, mas também a pertinência de seus estudos.

Além disso, esta obra marca posição em uma área que, infelizmente, ainda carece de estudos, sobretudo no Brasil. Se a literatura, em termos gerais, vem merecendo cada vez menos atenção das políticas culturais no âmbito brasileiro, o que se pode esperar da fatia dedicada aos pequenos leitores? Como muito bem assevera Gretel Eres Fernández, no prefácio que acompanha a publicação, nosso país atravessa um momento delicado, em que o ensino da língua espanhola é visto com certo desprestígio. Nesse sentido, trazer à luz essa obra anima e revigora todos aqueles que acreditam que o ensino de uma língua adicional é primordial, não apenas para a comunicação, mas também para a ampliação de horizontes do ser humano, no sentido mais incondicional de sua existência. Nada melhor do que a literatura para estabelecer essa ponte entre o que é próprio e o que é alheio (Carvalhal, 2003).

A obra está dividida em três partes: “Sobre a literatura infantil em língua espanhola”, “Literatura infantil e práticas de leitura” e “Leituras da literatura infantil em língua espanhola”. Essa organização responde a perspectivas distintas, mas não excludentes, uma vez que o principal objetivo da publicação é ampliar o diálogo sobre o tema. Diante da impossibilidade de resenhar cada um dos capítulos, destacarei brevemente apenas um de cada parte, à guisa de exemplo.

O segundo capítulo da primeira parte, de autoria de Elvira Cámara Aguilera, “Panorama general de la LIJ y su traducción en España: evolución y tendências”, oferece ao leitor um panorama da produção literária em literatura infantil e juvenil (LIJ) na Espanha, a partir de seus processos tradutórios. Remontando aos primórdios da literatura nesse país, ao citar Gonzalo de Berceo, poeta do século 13, a autora recompõe a trajetória da produção literária para crianças e destaca também as relações que a referida produção estabelece com obras estrangeiras.

El origen de la LIJ española está intrínsecamente ligado a la traducción. Así, la obra Kalila wa-Dimna (Calila e Dimna), que serviría de inspiración a Don Juan Manuel para escribir El Conde Lucanor, llega hasta nosotros desde toda una serie de traducciones y cuyo punto de partida es la obra hindú Panchatantra, del 200 a. C. (Cámara Aguilera, 2018, p. 38).1 A consequência de uma tradição fundada na diversidade pode resultar na intensificação desse processo, como conclui a própria autora, quando menciona o boom da literatura infantil e juvenil na Espanha dos anos 1980. Segundo ela, o fato de que, paralelamente ao espanhol, convivem no país outros idiomas cooficiais, – catalão, vasco e galego – certamente contribuiu para o incremento da produção de obras infantojuvenis. Tal diversidade gerou, por conseguinte, uma posição de destaque para a área, no que se refere a traduções.

Hay que destacar que fue el segundo subsector con mayor porcentaje de traducciones (37,5 %), solo por detrás y a una escasa diferencia de Tiempo Libre (38,8 %). La principal lengua de traducción fue el inglés (50,2 %), seguido por el francés (16 %), el castellano (10,4 %) y el italiano (6,8 %). (Cámara Aguilera, 2018, p. 43).2 Esse panorama somente é possível graças ao apoio de políticas educacionais que fomentam a leitura, a educação e a formação cidadã. Além dessas, merecem destaque as atividades promovidas pela Asociación Nacional de Investigación en Literatura Infantil y Juvenil (ANILIJ), que articula pesquisadores e promove intensos diálogos entre pares. Com base em tais observações, a autora explicita avaliações e processos tradutórios desenvolvidos em aula, com vistas a melhor abordar o público infantil. De acordo com a pesquisadora, as investigações que reúnem tradução e literatura infantil e juvenil precisam levar em conta a opinião – ainda que empírica – das crianças, embora essa ainda não seja uma prática efetiva. Afinal, são elas o objetivo final do trabalho de autores e tradutores.

Na segunda parte, o capítulo intitulado “Literatura eletrônica em língua espanhola: seleção e aplicabilidade de obras na escola”, de Naiane Carolina Menta Três, do Brasil, discute os novos desafios de (…) investigar sobre o ensino da língua espanhola na cibercultura. Sendo assim, define-se a problemática: “Como a literatura eletrônica, voltada ao público infantil, pode ser lida na escola e auxiliar na formação de leitores em língua espanhola?” (Menta Três, 2018, p. 254).

A pesquisadora chama a atenção para os espaços internos das escolas, como laboratórios de informática e bibliotecas, considerando-os ambientes privilegiados para a formação de novos leitores na era digital. Ressalta, nesse sentido, a fundamental importância da escola, uma vez que esta poderá orientar as leituras do público infantojuvenil, tendo em vista a diversificada – e nem sempre confiável – oferta virtual. Contudo, a autora apresenta um problema relevante: a formação de professores ainda é restrita à literatura impressa. Diferencia a segunda – que apenas foi digitalizada –, da primeira, que foi produzida por meio digital, o que a caracteriza como “um objeto digital” (Menta Três, 2018, p. 257).

A pesquisadora ressalta, por outro lado, as desigualdades das escolas brasileiras: em algumas, há acesso irrestrito à tecnologia, enquanto em outras, professores e alunos ainda estão limitados a técnicas rudimentares. Entretanto, em sua opinião, o telefone celular – tido como vilão em sala de aula – pode transformarse em um aliado, desde que tenha seu uso mediado por um profissional. Sob essa perspectiva, a autora conclui seu texto com a esperança de que todos os alunos possam ter acesso à literatura digital e, por conseguinte, motivar-se ante essa arte tão importante e transformadora.

Na terceira parte da obra, o texto intitulado “El paraíso perdido de la infancia en Paulina de Ana María Matute”, de autoria de Sara Núñez de la Fuente (Espanha), trata do livro, publicado em 1960, por Ana María Matute (1925-2014). A partir da contextualização da obra e da autora no âmbito da literatura espanhola contemporânea, a pesquisadora enfatiza suas relações com outros autores espanhóis que a crítica convencionou chamar filhos da guerra: “niños asombrados por la perplejidad con que tuvieron que asumir la guerra civil [en] el tránsito de la infancia a la adolescencia”.

Refere-se, portanto, àqueles autores que começaram a publicar na década de 1950, em plena ditadura franquista, para os quais a metáfora representou muito mais do que um recurso expressivo e acabou tornando-se uma forma de resistência.

Nesse contexto, surge a infância como símbolo de paraíso perdido, que pode ser interpretado como a perda da liberdade e dos direitos individuais e coletivos de uma sociedade que vive sob forte repressão. A autora relaciona, também, a obra infantil de Matute com sua obra para público adulto, evidenciando que as fronteiras, no caso matuteano, não são assim tão inflexíveis. Ao mencionar a obra adulta Paraiso inhabitado (2008), a pesquisadora destaca o papel que teve a infância na vida da protagonista Adriana e a compara com protagonistas de outros romances de Matute: Sol Roda, de En esta tierra (1955), Mónica, de Los hijos muertos (1958), e Matia, de Primera memoria (1959).

De acordo com a autora, há muito de autobiográfico em Paulina, sobretudo no que se refere à condição de saúde da protagonista, que, assim como aconteceu com Matute na infância, se recupera de longa enfermidade em companhia de seus familiares, em espaço rural. Ali, a literatura é a melhor companhia para a menina que precisa aliar-se ao tempo para obter a cura de sua enfermidade.

Siguiendo un esquema literario que presenta los tópicos de Heidi (1880), como el amor por la naturaleza y la relación de la niña con su abuelo, la escritora ambienta su historia en el espacio real de Mansilla de la Sierra, un pueblo de La Rioja donde solía veranear con su família. (Núñez de la Fuente, 2018, p. 373).3 3 Seguindo um esquema literário que apresenta os tópicos de Heidi (1880), como o amor pela natureza e o relacionamento da garota com seu avô, a escritora ambienta sua história no espaço real de Mansilla de la Sierra, uma cidade de La Rioja onde ela costumava passar o verão com sua família (Núñez de la Fuente, 2018, p. 373). (Traduzido por Jessyka Vásquez).

A vigorosa e bem fundamentada análise simbólica do romance demonstra, uma vez mais, os objetivos peculiares da obra matuteana voltada para a infância: o duplo destinatário e a multiplicidade de significações. Levando em conta que, em alguns casos, os adultos “participam” da leitura de seus filhos, Matute constrói narrativas que servem para ambos os públicos. Quando um adulto lê para um filho, não o faz de forma passiva. Se se envolve com a narrativa – o que é comum quando se trata da literatura de Matute – certamente aprofundará, a partir dela, muitas reflexões e será, ele também, mais um leitor.

Por outro lado, um texto baseado em relações simbólicas tende a dificultar o trabalho de censores que, em regimes de exceção, costumam identificar na arte um de seus mais importantes inimigos. A autora conclui seu texto destacando a influência que teve Elena Fortún (1886-1952) na obra de Ana María Matute. Esse tema, ao que tudo indica, merece pesquisas mais aprofundadas, uma vez que a autora madrilenha, exilada na Argentina, foi importante referencial para vários autores da geração de 1950.

É preciso enfatizar, diante do exposto, sem medo de ser redundante, que a obra organizada pela professora Rosane Maria Cardoso é de suma importância no contexto atual. Além de tudo o que já foi dito, vale ressaltar que a referida obra apresenta textos escritos originalmente em português e em espanhol. O que pode, de início, parecer um descuido é, na verdade, parte da proposta investigativa: que nos entendamos sem barreiras, ou melhor, que não avaliemos as diferenças como obstáculos ao entendimento. Todos somos diferentes e, a partir de nossas diferenças – que são constitutivas –, podemos nos irmanar, se nos une um objetivo comum.

Nesse caso, o amor pelas palavras, pela arte literária, pelo ensino de língua espanhola (e suas respectivas literaturas) e, por fim, pela esperança do que as crianças e os adolescentes significam neste mundo já um pouco corrompido pelos adultos: um futuro melhor, em que reinem a paz e a tolerância entre todos.

Referências

CÁMARA AGUILERA, Elvira. Panorama general de la LIJ y su traducción en España: evolución y tendências. In: CARDOSO, Rosane Maria (Org.). A literatura infantil e juvenil em língua espanhola: história, teoria, ensino. Campinas, SP: Pontes Editores, 2018. p. 37-56.

CARVALHAL, Tania Franco. O próprio e o alheio. São Leopoldo, Ed. Unisinos, 2003.

MATUTE, Ana María. Paulina, el mundo y las estrelas. Barcelona: Editorial Garbo, 1960.

MENTA TRÊS, Naiane Carolina. Literatura eletrônica em língua espanhola: seleção e aplicabilidade de obras na escola. In: CARDOSO, Rosane Maria (Org.). A literatura infantil e juvenil em língua espanhola: história, teoria, ensino. Campinas, SP: Pontes Editores, 2018. p. 253-268.

NÚÑEZ DE LA FUENTE, Sara. El paraíso perdido de la infancia en Paulina de Ana María Matute. In: CARDOSO, Rosane Maria (Org.). A literatura infantil e juvenil em língua espanhola: história, teoria, ensino. Campinas, SP: Pontes Editores, 2018. p. 365-387.

Notas

1 A origem do LIJ espanhol está intrinsecamente ligada à tradução. Assim, a obra Kalila wa-Dimna (Calila e Dimna), que inspiraria Dom Juan Manuel a escrever O Conde Lucanor, chega até nós em toda uma série de traduções e cujo ponto de partida é a obra hindu Panchatantra, de 200 a. C. (Cámara Aguilera, 2018, p. 38). (Traduzido por Jessyka Vásquez).

2 Cabe destacar que foi o segundo subsetor com a maior porcentagem de traduções (37,5%), só ficou atrás e a uma ligeira diferença de Tempo Livre (38,8%). O principal idioma da tradução foi o inglês (50,2%), seguido pelo francês (16%), espanhol (10,4%) e italiano (6,8%). (Cámara Aguilera, 2018, p. 43).( Traduzido por Jessyka Vásquez).

Luciana Ferrari Montemezzo – Professora de Literatura Espanhola e Tradução na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), desde 1996, e, atualmente, em estágio pós-doutoral na Facultad de Traducción e Interpretación da Universidad de Granada, Espanha. E-mail: lucesfm@gmail.com.

Consultar publicação original

Itamar Freitas

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