A tradução de obras celtológicas, tanto de estudos acadêmicos quanto de fontes históricas e literárias, sempre são bem-vindas, pois infelizmente os pesquisadores brasileiros deparam-se com a dificuldade de encontrar tais obras em língua materna nas estantes das bibliotecas e livrarias. Mas o que percebemos é que há um interesse do mercado editorial em publicar obras antigas que, na maioria das vezes, trazem representações equivocadas a respeito dos Celtas, mas que podem fazer grande sucesso apelativo com o público. A tradução de A lenda de diamante, do francês Edmond Bailly, vem justamente de encontro a esse propósito.
A obra apresenta sete narrativas – as sete lendas – e um capítulo intitulado “Notas e esclarecimentos”, onde são arroladas explicações tanto de termos que aparecem nas narrativas como “consciência”, “eternidade das almas”, “religião”, entre outras como também de termos diretamente ligados à cultura celta: “druidismo”, “Ogham” e “vates”. Muitas dessas definições estão permeadas de idéias esotéricas, espíritas e algumas advindas da celtomania francesa dos séculos XVIII e XIX.
Publicada pela primeira vez na França em 1909 (La légend de diamant), quando a Doutrina Espírita já estava consolidada, o livro apresenta a sociedade celta e, em particular os Druidas como monoteístas, preocupados com o “bem da humanidade” e em viverem única e exclusivamente para realizar a vontade do Pai Celestial. Essas construções são fictícias e não correspondem às descrições dos druidas feitas por autores clássicos como Júlio César, Cícero e Plínio, para citar alguns.[1] Essas idealizações, tanto dos celtas, como dos druidas presentes na obra, vinham de encontro às intenções de um determinado grupo que, procurava projetar no passado, suas concepções de mundo, de vida, de religião e de fé. A França por fazer uma exaltação ao seu passado gaulês e, por vezes, buscar ali inspiração para o seu forte nacionalismo, foi o cenário perfeito para que florescessem obras como A lenda de Diamante.
A primeira lenda “O encantamento da harpa” apresenta logo no terceiro parágrafo um equívoco quanto ao panteão celta. Há a menção da deusa do mundo inferior Hela, que pertence ao panteão escandinavo! Os celtas não possuíam divindades guardiãs dos mundos subterrâneos. Esse equívoco cometido pelo autor e por outros autores do mesmo período deve-se à ausência de conhecimentos e de uma pesquisa mais aprofundada sobre os mitos e o panteão celta que, infelizmente ainda não existia no final do século XIX e início do XX,[2]
e reflete parte das fantasias que, lamentavelmente ainda povoam o imaginário contemporâneo.
A terceira narrativa “O único amor” traz a estória de uma desilusão amorosa e dos transtornos ocasionados por ela. A jovem Gwennola, filha de uma grande “colar de ouro” – essa é denominação que os grandes chefes e guerreiros recebem nas narrativas de Bailly – tem o seu amor recusado por Yvor um exímio harpista. Com a recusa de Yvor em aceitar Gwennola como esposa, é desencadeada uma terrível guerra entre os demais pretendentes e a moça é obrigada a vagar sem rumo até encontrar Niod, que lhe mostra uma perspectiva: ela deve deixar o orgulho e o egoísmo e sair pelo mundo levando alento, conforto e cura a todos que necessitarem. Seguindo as ordens de Niod, Gwennola parte e, por onde passa, não deixa de oferecer ajuda a quem necessita. Passa então a ser conhecida como a “viúva virgem”. Todos esses elementos contidos na narrativa estão repletos de ensinamentos cristãos onde é preciso sofrer para conquistar as glórias eternas. Há uma passagem já no final da narrativa que reflete não só os preceitos cristãos, mas também a crença em uma reencarnação evolucionista como meio de purificação e elevação do espírito:
“- Levante-se, minha irmã bem-amada. E não perca a confiança, sua grandeza á superior à minha, pois lhe foi dado se humilhar e se arrepender. Doravante, você não estará mais sujeita à servidão dos sentidos, embora sua libertação ainda não seja completa, pois você recaiu no Abred de Necessidade e está exposta ao Mal e à Morte. Será preciso que você renasça ainda duas vezes, nesse mundo de dor, nessa mesma pátria da qual a faço protetora. Duas vezes ainda o artesão do orgulho estenderá para você os frutos envenenados de seu pomar. Duas vezes ainda você será a carne para o holocausto. Então, eu a levarei, finalmente liberta, para a luz da morada eterna de nossa perpétua felicidade!…” (Bailly 2006:52).
Nesta mesma narrativa há a menção aos eubages que, são descritos como uma “espécie de adivinho da antiga Gália. Hierarquicamente abaixo dos Druidas, encarregava-se da parte externa dos cultos” (p. 46). Segundo autores clássicos latinos como Diodoro, explica que o vate realizaria os sacrifícios (humanos, por exemplo) e interpretaria os augúrios. Mas, essa função também é atribuída aos druidas. Na verdade, o vate poderia estar numa hierarquia inferior ao druida. Na antiga Irlanda, o ensino máximo era reservado à formação em druida, portanto, o vate/eubage seria responsável pelo ofício do sacrifício, enquanto o druida teria funções de cunho mais teológico/filosófico, e seria o responsável pela doutrina e interpretaria os sacrifícios. Na verdade, ambas as funções se confundem, pois druida não deixa de ser um termo geral. Essa nota da tradução merecia um cuidado maior na sua elaboração para elucidar com mais clareza o leitor que pode não estar familiarizado com as terminologias da religiosidade celta.
Na narrativa “Os do Carvalho” encontramos a descrição de uma legião romana tentando a golpes de machado derrubar um grande carvalho sagrado. Para tentar impedir tal ato os druidas permanecem nos galhos da árvore recitando as tríades e os demais ensinamentos. Os sacerdotes são apresentados ao leitor como homens benevolentes que estão sendo vítimas da intolerância romana que procura não só exterminar sua religião, mas também todo o seu conhecimento. O desfecho da narrativa mostra a redenção dos druidas em um sacrifício:
“Quando o sacrifício foi consumado, quando vítimas e algozes dormiam, quietos, na reconciliação do sono da morte, as almas dos Do Carvalho voaram, puras e santas, sobre as asas impetuosas da fogosa cotovia. E enquanto os eleitos de Gwynfyd saldavam a feliz libertação de seus irmãos bem-aventurados, aqui embaixo, maravilhosas rosas de cor púrpura desabrochavam sobre as brancas túnicas dos sacrificados, chamando os Da Terra para a comunhão de Sabedoria e de Amor!” (p. 118).
Essa representação dos druidas lembra em muito o martírio sofrido por muitos cristãos que, por defenderem a sua fé, morreram assim como os druidas nas mãos dos romanos. Percebe-se claramente um juízo de valor do autor onde apresenta os druidas como homens bons e puros e apresentados como os eleitos de Deus e, os romanos como vilões que, tinham como missão exterminar os escolhidos e, que por isso mesmo eram severamente punidos. Uma visão maniqueísta de celtas e de romanos.
A última narrativa “Os do Awen” traz uma personagem muito conhecida das estórias arturianas: Merlin. Este é apresentado como um sábio e talentoso bardo que, em companhia de mais outros dois igualmente geniais travam uma disputatio com o Demônio, o artesão de todos os males. Enquanto há o embate, o próprio Jesus Cristo assiste a tudo e, glorioso no final defende e acolhe os três bardos como novos emissários da boa nova. Ao colocar o Cristo como personagem de uma narrativa de suposta origem celta, o autor procura conceder aos druidas um perfil cristão. Essa construção anacrônica deste povo como precursor do cristianismo muito tempo antes deste surgir, faz com que alguns pesquisadores sejam adeptos do que convencionou-se denominar como “cristianismo druídico”.[3] Uma fantasia que procura conferir aos druidas uma imagem de pureza e benevolência, para tentar desconstruir a imagem descrita nas fontes clássicas como executores de sacrifícios humanos e incitadores de guerra. Infelizmente essa representação dos druidas é ainda apresentada em muitos cursos e livros esotéricos e, por mais que as pesquisas arqueológicas, históricas e literárias apresentem uma visão contrária, ainda há resistência em aceitá-la. E, essa resistência muitas vezes tem sido um grande entrave para uma divulgação de pesquisas sérias sobre os celtas. Além essas fantasias há outras como a das avós-druidas, que nada mais são do que invenções de ditos pesquisadores que baseiam suas investigações em uma visão distorcida e envolta em brumas das fontes clássicas, aliadas é claro, à sua relutância em admitir que seus argumentos, muitas vezes, nada mais são do que frutos de sua fértil imaginação.
Com relação ao pensamento de Bailly, esse tem fortes raízes na celtomania e no esoterismo francês. Durante o final do século XVIII, diversas publicações literárias popularizaram o interesse pela língua e religiosidade dos antigos habitantes da Gália. E, apesar do sucesso das coleções de antiquários pela Europa, a Arqueologia desta época ainda era muito insipiente em termos metodológicos, popularizando várias fantasias relacionadas aos Celtas: os grandes megálitos (como Carnac e Stonehenge) foram considerados de origem druídica. O sucesso destas hipóteses arqueológicas vão se somar a uma perspectiva nacionalista pela França, e regionalista na Grande Bretanha, especialmente no início do Oitocentos, onde a memória a respeito dos gauleses foi cristalizada sob a forma de culto do passado (Launay 1978: 11-18). Um dos mais emblemáticos livros desta tendência é Monuments celtiques, 1805, de Jacques Cambry (Cunliffe 1999: 12). Mas essa valorização extremada de um passado idealizado também teve diversos momentos anacrônicos, e um dos mais contundentes foi a idéia fantasiosa entre os escritores da primeira metade do século XIX de que os druidas e Celtas foram adoradores de uma única divindade (Ellis 2001: 132), nas palavras do próprio Bailly: “(…) Druidismo, nada esteve mais ausente dessa grande crença que o Politeísmo” (p. 144).
Em particular, um texto do escritor M. Édouard Fourmier obteve um certo êxito nos meios intelectuais franceses. Publicado originalmente na revista Siècle em 1847, e posteriormente num livro de 1859 (Le vieux neuf), o texto seria uma espécie de registro folclórico de antigas tradições dos bardos da Gália, mas na realidade possuía diversos anacronismos: monoteísmo, crença na reencarnação evolucionista, dogma dos druidas para com a caridade humana e divina, entre outros aspectos. O mesmo texto de Fourmier foi publicado no primeiro ano da Revista Espírita, de 1858, periódico editado por Allan Kardec, o codificador do Espiritismo. Kardec havia se interessado pelo fenômeno do mesmerismo e das mesas girantes a partir de 1854, e adotado esse nome que teria origem em uma suposta vida passada que teve como druida na Gália. Seu túmulo, datado de 1869, foi construído imitando um dólmen. As influências da celtomania no Espiritismo Kardecista ainda são objetos de poucos estudos, mas as conexões existiram.[4] O druida, neste caso, seria uma espécie de antecipador do modelo de pureza de conduta e dos valores morais idealizados para os religiosos do Oitocentos, transfigurados em um passado nacional de cunho heróico (a Gália). O fato é que a idéia de um monoteísmo druídico sobreviveu tanto no Espiritismo quanto no esoterismo francês. No primeiro caso, o exemplo mais famoso é o livro de Leon Denis, O gênio céltico e o mundo invisível, publicado em 1927.
Outra forte influência no livro de Bailly advém do esoterismo, a exemplo da citação: “herança dos antepassados, o Arquidruida que, ele próprio, havia recebido do grande sacerdote atlante” (p. 9). A imagem dos druidas como descendentes dos atlantes foi criada pela teosofista Helena Blavatsky, especialmente em A doutrina secreta, de 1888.[5] A obra de Bailly, desta maneira, foi influenciada diretamente pelas idéias existentes desde Fourmier, mas radicalizou ainda mais os elementos monoteístas, originando o que podemos considerar de druidismo cristão (ou cristianismo druídico), o ápice do anacronismo em escritores populares da França. Muitas obras esotéricas modernas ainda perpetuam fantasias e anacronismos advindos dos séculos passados,[6] prejudicando uma popularização de idéias corretas sobre os Celtas.
As editoras brasileiras, ao invés de publicarem qualquer material sem nenhum critério, poderiam traduzir obras clássicas ou de investigadores renomados, a exemplo das dezenas de livros de Miranda Green, ainda inéditos em nosso país. Apesar deste panorama editorial, os estudos acadêmicos sobre Celtas no Brasil estão aumentando qualitativa e quantitativamente, deixando cair por terra algumas afirmações preconceituosas daqueles que insistem em afirmar que os estudos celtas se constituem como mero apêndice dos estudos clássicos, germânicos e medievais. A busca por informações de maior qualidade pelo público leigo já é um sinal dessa transformação.
AGRADECIMENTOS: Ao professor Fillipo Olivieri, pelas informações preciosas sobre os Druidas e a Gália.
Notas
1. Para referenciais bibliográficos e acadêmicos sobre o druidismo, consultar: Lupi 2004: 70-79.
2. “Mas, pouco mais bem informados do que os antigos, os amantes do celtismo perpetuam as velhas confusões. É preciso citar esta frase de Malo Corret de La Tour d’Auvergne, nativo de Carhaix, extraída de seu ‘Origens Gaulesas’, aparecido no ano da ponte de Lodi, onde ele se mostra menos bom lingüista do que intrépido granadeiro: ‘Vários dos hinos gauleses… estão contidos num poema erse, chamo a Edda… Esse monumento rúnico… seria próprio para nos esclarecer sobre os Celtas…’ Ele visivelmente ignorava que a palavra ‘erse’ designa o dialeto gaélico da Escócia, que a Edda é uma coletânea de lendas escandinavas e que as runas constituem o antigo alfabeto germânico”. Launay 1978: 12.
3. O termo é muito popular em textos espanhóis, para contextualizar o cristianismo praticado em povos germânicos e celtas logo após a conversão: http://www.nuevorden.net/r_204.html; http://www.elamigobuster.c.telefonica.net/aurelius.htm Acessados em 18 de junho de 2007. 4 Em termos sócio-históricos, o Espiritismo kardecista foi uma influência de idéias do mesmerismo, celtomania, esoterismo, cristianismo e ciência popular do século XIX. Para algumas reflexões sobre as origens do Espiritismo, especialmente as influências anglo-americanas na formação das novas idéias religiosas e funerárias da França, consultar Cuchet 2007: 74-90.
5. Blavatsky rompeu com algumas tradições do período, por exemplo, creditando os monumentos megalíticos diretamente aos atlantes e não aos druidas e Celtas (Blavatsky 1888: vol. 2: 756). Outra idéia inovadora da teósofa no imaginário da época foi a de que os atlantes possuíam uma tecnologia muito sofisticada, como o uso de aeroplanos e inventos motorizados, uma idéia muito utilizada depois por videntes e escritores. Mas uma imagem sobre os druidas permaneceu: a de sacerdotes com alto grau de moralidade e ética. Para considerações acadêmicas sobre as relações do atlantismo com o esoterismo oitocentista consultar: Vivante & Imbelloni 1939: 175-186.
6. A exemplo do escritor Cláudio Crow Quintino, que entre outras considerações, perpetua representações idílicas e moralistas da sociedade Celta e do druidismo, herdeiras do esoterismo oitocentista, mas com alguns novos elementos da literatura New Age pós-Brumas de Avalon: “(…) a sociedade celta (…) vivia em harmonia com o mundo à sua volta (…) Entrevê-se nesse procedimento a elevação de consciência ecológica dos celtas (…) uma sociedade em que tanto homens quanto mulheres desfrutavam dos mesmos direitos e prerrogativas (…) sem Roma, teriam os celtas formado um império e se corrompido da mesma forma? É provável (…) Os celtas (…) não eram bárbaros iletrados, tampouco apreciadores de sanguinários sacrifícios humanos”. Quintino 2002: 23, 239, 240, 241; “Ser celta é viver intensamente, é vencer desafios, é cantar quando um ente querido morre (…) Ser celta é, no fim das contas, ser humano”. http://druidismo.com.br/m_ensaios-secelta.htm Acessado em 21 de junho de 2007.
Referências
BLAVATSKY, Helena Petrovna. The secret doctrine, 6 vol., 1888. Edição completa online: http://www.theosociety.org/pasadena/sd/sd-hp.htm#pt23 Acessado em 25 de junho de 2007.
CUCHET, Guillaume. Le retour des esprits, ou la naissance du spiritisme sous le second empire. Revue d’histoire moderne et contemporaine 54 (2), 2007, pp. 74-90.
CUNLIFFE, Barry. Celtomania and Nationalism: c.1700-1870. In: ______. The Ancient Celts. London: Penguin Books, 1999, pp. 11-16.
ELLIS, Peter Berresford. Druidas: el espíritu del mundo Celta. Madrid: Oberon, 2001.
GREGÓRIO, Sérgio Biagi. Druidismo e espiritismo, 1998. http://www.ceismael.com.br/artigo/artigo001.htm Acessado em 20 de junho de 2007.
LAUNAY, Olivier. A civilização Celta. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1978. Le spiritisme chez les druides, 1858. http://perso.orange.fr/charles.kempf/rs1858/18580402.htm Tradução impressa disponível em: A revista espírita: jornal de estudos psicológicos, 1858. São Paulo: Edicel, s.d.
LUPI, João. Os druidas. Brathair 4 (1), 2004, pp. 70-79. http://www.brathair.com/Revista/N7/druidas.pdf Acessado em 02 de maio de 2007.
QUINTINO, Claudio Crow. O livro da mitologia Celta: vivenciando os deuses e deusas ancestrais. São Paulo: Hi-Brasil, 2002.
VIVANTE, Armando & IMBELLONI, J. Libro de las Atlantidas. Buenos Aires: Jose Anesi, 1939.
Luciana de Campos – Doutoranda em Letras UNESP/SJRP. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br
BAILY, Edmond. A lenda de diamante: Sete lendas do mundo celta. São Paulo: Madras, 2006. Resenha de: CAMPOS Luciana de. Druidismo Cristão? Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.7, n.1, p. 96-100, 2007. Acessar publicação original [DR]
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