A Justiça D’Além-mar: lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (Século XVIII) | Maria Filomena Coelho
As ideias advindas da Escola dos Annales por muito tempo constrangeram o historiador que se aventurava pelas pesquisas da História política ou administrativa. Atualmente o ponto de vista político na historiografia tornou-se não só de suma importância para a compreensão da realidade das sociedades, mas também mostrou não ter sido o verdadeiro alvo das críticas da escola francesa fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre1. Seguindo essa linha de raciocínio, Maria Filomena Coelho em seu trabalho A Justiça D’Além-Mar: Lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (Século XVIII), parte do ponto de vista da administração da Justiça e aplicação do Direito na América Portuguesa em busca de vestígios de “lógicas jurídicas feudais” na Capitania de Pernambuco, como o título sugere. Para tal, doutora em História Medieval, do direito e das instituições, Filomena Coelho se fundamentou nos escritos de António Manuel Hespanha, bem como na concepção de um Antigo Regime nos Trópicos1, trazendo-nos um estudo do caso intrigante narrado por Veríssimo Rodrigues Rangel, cônego da Sé de Olinda, entre 1750-54 1.
A execução do testamento do padre Alexandre Ferreira fez de Olinda e Recife palco de um conflito protagonizado por juízes eclesiásticos e do rei, confronto jurisdicional este que durou cinco anos (1749-1753). Antônio Teixeira da Mata, Juiz de fora e Provedor dos defuntos e ausentes, capelas e resíduos, representando a Justiça secular (sua jurisdição e a da Coroa) entrou em choque com o Bispo, Frei Luiz de Santa Tereza e o Vigário geral, Manoel Pires de Carvalho. Maria Filomena Coelho nos descreve o embate ao longo de seu trabalho ressaltando, principalmente, o papel histórico e apologético do manuscrito de Veríssimo Rangel1.
Uma série de acusações foram trocadas entre os religiosos locais e os agentes da Coroa – Antônio da Mata foi excomungado duas vezes e o bispo frei Luiz de Santa Tereza junto com o vigário Manoel Pires de Carvalho foram acusados pelo magistrado de terem cometido crime de lesa majestade, uma vez que desrespeitaram a jurisdição real impedindo a fundação da capela como previsto no testamento do padre falecido. O caso chegou à Relação da Bahia, foi devassado pelo Desembargador Manuel da Fonseca Brandão e até sua resolução (em 1753) tornou-se algo maior para além do desentendimento intenso entre o juiz de fora e o bispo e vigário, o que a autora denomina de “luta de bandos”. Dessa forma, quem prestava serviços ao bispo ou demonstrava simpatia ao mesmo era seriamente prejudicado por Antônio da Mata dentro de toda uma lógica de redes clientelares que estava inserido, da mesma maneira, “crimes religiosos” dos aliados ao juiz de fora eram evidenciados1.
A fonte documental que serviu de base para o livro de Maria Filomena Coelho é riquíssima para análise não só que diz respeito a aplicação do Direito e Justiça do reino e Canônica, mas para observar a existência de pontos em comum entre essa a justiça real e a eclesiástica. As argumentações de defesa de ambas as partes passam por uma “inversão” deveras interessante, quando os religiosos buscam fundamento nas Ordenações do Reino e o juiz secular com seu advogado, José Correia de Sá, no Direito Canônico. Fica evidenciado que o processo de normatização avança por toda a América Portuguesa dentro da perspectiva de que a execução da justiça era a base para consecução da administração e do desenvolvimento da conquista ultramarina. O foco central da pesquisa da historiadora é identificar vestígios de uma justiça típica do feudalismo e a partir da busca dessa essência os capítulos são formados1.
A utilização da maior “espada da Igreja” (excomunhão) pelo bispo e vigário geral nos expõe a justiça eclesiástica que tal qual se estabelecera na Idade Média se fazia ainda presente e vigente na sociedade pronta às execuções mais drásticas. O “escândalo” das duas excomunhões ao juiz de fora, Antônio Teixeira da Mata, são explicados pelos dois confrontos – a execução do testamento do padre Alexandre Ferreira e a soltura dos presos do poder eclesiástico – que Veríssimo Rangel enxergou como usurpações da jurisdição da igreja. Foi em defesa do raio de atuação da instituição religiosa que os líderes religiosos locais adotaram a pena máxima dentro dos princípios católicos mesmo sabendo que em terras americanas as penas quase nunca eram obedecidas. Constitui-se o primeiro aspecto “feudal” apontado pela autora, apesar da punição eclesiástica ter sido ignorada pelo próprio juiz de fora baseado, sobretudo, nas Ordenações Filipinas. O magistrado não só ignorou o castigo e continuou servindo excomungado por três anos como se baseou nas leis do reino para justificar seu ato. Em nome da jurisdição real, como declara em suas primeiras defesas, o oficial régio pregou “anulatória” de sua excomunhão em praça pública e com o apoio do governador de Pernambuco1.
Como ministro letrado a serviço do rei de Portugal, Antônio Teixeira da Mata consequentemente estava inserido, quando nomeado juiz de fora (1749), em redes que pode-se denominar por conexões imperiais1. Dessa maneira, o apoio que recebera do governador de Pernambuco, bem como do desembargador nomeado para devassar o caso (Manoel da Fonseca Brandão), segundo as acusações do bispo frei Luiz de Santa Tereza e Veríssimo Rangel, estão dentro da lógica da construção da memória administrativa no trato com os assuntos jurídicos da América Portuguesa. Filomena Coelho enquadra a concessão de jurisdições pelo rei aos seus magistrados como outra evidência de consecução de características típicas do feudalismo. Porém, mercês de cargos administrativos (executores da justiça), bem como a ideia do serviço ao rei, típicos do Antigo Regime, somado a lacuna que a obra deixa a respeito do conceito de jurisdição na Idade Média, certamente desvia a compreensão do leitor das especificidades do período estudado (meados do século XVIII)1.
O apoio das Câmaras de Olinda e Recife ao juiz de fora, bem como da Relação da Bahia por onde o caso cursou demonstra, segundo Veríssimo Rangel, que Antônio da Mata mantinha uma série de alianças não só com magistrados letrados do reino, mas também com os da terra. A formação de bandos advinda não só do desenvolvimento inicial da América Portuguesa, mas também de um “governo polissinodal1 ” em vigor passa pela perspectiva feudal que a autora defende. Para Filomena Coelho, Pernambuco como parte da conquista ultramarina portuguesa demonstra ainda, em 1750, aspectos do feudalismo não só por sua formação fundamentada em investimentos de homens como Duarte Coelho, mas também por se encaixar na típica sociedade tradicional descrita por Max Webber1.
A resolução do conflito entre juízo eclesiástico e secular desde seus primórdios apontava para a vitória de Antônio da Mata e Veríssimo Rangel não deixa de mencionar que isso acontecera, sobretudo, pelas redes clientelares que o juiz de fora possuía. Apesar dos argumentos baseados no Direito Canônico e dos religiosos envolvidos demonstrarem ter considerável conhecimento das Ordenações do reino. Até mesmo sua carta com o pedido de anulação de excomunhão que Antônio da Mata dirigira ao bispo, em certo momento do choque entre as autoridades, apresenta uma formalidade que caracteriza antes o êxito da normatização que respeito ao religioso ou arrependimento do ocorrido. Porém, a importância de não ter pendências com a Igreja para aquele momento histórico fica evidente. Apesar de longe dos olhos do rei e dos costumes e das práticas apontadas por Veríssimo Rangel, o juiz de fora coloca-se aos pés do bispo em nome de apelar da pena que lhe fora imposta1.
Tanto do lado do promotor eclesiástico quanto do juízo secular nota-se a “excomunhão” tomada como parte de um processo jurídico. Maria Filomena Coelho vê os argumentos e encaixes da “excomunhão” na lógica jurídica dos tribunais portugueses como resultado da constituição de uma Justiça do reino de Portugal muito baseada na justiça eclesiástica. Para a autora, salvo as especificidades do período, há ainda muito da essência da forma de atingir o “bem comum” da Idade Média em pleno Antigo Regime. O rei como representante de Deus buscava, através dos meios possíveis, oferecer a justiça aos seus súditos em conformidade com a ordem natural das coisas. A filosofia religiosa no qual a justiça real se debruçava e era inspirada dizia muito sobre o ponto de partida da normatização do sistema jurídico vigente na América Portuguesa, segundo a historiadora. A ignorância dessa base filosófica eclesiástica por parte dos magistrados letrados enviados pela Coroa é extremamente prejudicial na visão do cônego da Sé de Olinda. Para Veríssimo Rangel a inexperiência dos agentes do rei em terras americanas impede não só a consecução da jurisdição da Igreja, mas promove “absurdos jurídicos”, impedindo o êxito da justiça para os povos1.
Com a retirada do frei Luiz de Santa Tereza da Sé de Olinda, em 1754, e Antônio da Mata ocupando assento na Casa de Suplicação, em Lisboa, dez anos após o embate, fica o questionamento sobre a “lógica jurídica feudal” apresentada ao longo do texto: ela foi encontrada, mas até que ponto estava ainda em vigência? O assunto da “excomunhão” fora resolvido basicamente pela via da justiça secular. A fonte utilizada como fundamento para a identificação de aspectos típicos do feudalismo é, como a própria autora afirma, o caso visto de uma perspectiva eclesiástica que obviamente não pouparia esforços para demonstrar sua base tradicionalista e fundamentada em antigos filósofos/teólogos e juristas. Parece-nos que o conflito evidencia menos a essência feudal ainda em vigor e mais a sua decadência visto o envolvimento intenso do braço secular e a sobreposição deste perante o Direito Canônico. Possivelmente a lacuna que abre portas à dúvida acerca da consecução ou não de uma “lógica jurídica feudal” no Pernambuco do século XVIII só não é superada por Maria Filomena Coelho não ter reservado maior atenção em demonstrar-nos os pontos em comum da justiça moderna com a medieval1. A falta de apontamentos mais esclarecedores acerca do que era a “lógica jurídica feudal” certamente nos permite afirmar a obra como um estudo direcionado exclusivamente para historiadores do medieval. As palavras “feudal” e “jurisdição”, considerando-se seu peso de utilização não colaboram para a fuga de uma compreensão inflamada pelo “paradigma estadualista1 ”.
No geral, a perspectiva do Direito Canônico versus Direito Régio e mesmo a indicação de uma substância feudal no discurso religioso dos eclesiásticos em defesa de sua jurisdição como nervo central do trabalho de Filomena Coelho é bastante interessante e instiga a aprofundamentos teóricos que gerariam novas investidas em busca da compreensão dessa problemática. Perceber a tradição medieval da aplicação de uma justiça para o “bem comum” presente em discursos das sociedades do ultramar para salvaguardar seus direitos e jurisdições abre uma janela importante para a interpretação da utilização do Direito Tradicional e Ordenações Filipinas pelos residentes da América Portuguesa, bem como para os letrados representantes da Coroa portuguesa. Em outras palavras, pode-se abrir novos caminhos para um entendimento da ambiguidade das leis escritas e o uso dessas aberturas de acordo com interesses do rei e de seus súditos ultramarinos representados, sobretudo, nos Senados das câmaras municipais.
Referências
BICALHO, Maria Fernanda B. “Elites coloniais: a nobreza da terra e o governo das conquistas. História e historiografia.” Anais Optima Pars. Lisboa: 2002.
CAMARINHAS, Nuno. Juízes e administração da justiça no Antigo Regime. Portugal e o império colonial, séculos XVII e XVIII. Lousã: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a ciência e a tecnologia, 2010.
COELHO, Maria Filomena. A Justiça D’Além-mar: lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (Século XVIII). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2009.
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria F. B. e; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (Séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima S. (orgs.) Na trama das redes: políticas e negócios no Império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
HESPANHA, A. Manuel. (org.) Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Coletânea de textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 26-32.
RÉMOND, René (Org.). Por uma História Política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
SCHAUB, Jean-Frédéric. “A História Política nos Annales E.S.C.: Mutações e Reformulações.” Penélope: Estado da questão. Lisboa, nº 14, p. 151-177; DEZ/1994.
Resenhista
Anne Karolline Campos Mendonça – Graduada em História/Bacharelado pela Universidade Federal de Alagoas e atualmente é mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E-mail: karolline-campos@hotmail.com
Referências desta Resenha
COELHO, Maria Filomena. A Justiça D’Além-mar: lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (Século XVIII). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2009. Resenha de: MENDONÇA, Anne Karolline Campos. Em nome de deus e do rei: A justiça de seus representantes e a defesa por suas leis. Revista Ultramares. Maceió, n.6, v.1, p. 192 – 196, ago./dez. 2014. Acessar publicação original [DR]