A irresponsabilidade médica | Philippe Meyer || Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas | Paulo Henrique Martins

No último século, a medicina sofreu profundas transformações, fruto da incorporação de recursos diagnósticos e terapêuticos inimagináveis ao final do século XIX. Da eletrocardiografia à tomografia computadorizada, da descoberta da penicilina aos modernos marcapassos cardíacos, muitas das melhorias foram aplicações diretas da física, da química e da biologia ao ato médico de cuidar dos enfermos. A medicina adquiriu status de ciência e, antes de tudo, alcançou uma eficácia anteriormente imprevista na capacidade de curar, aumentar o tempo de vida e fazer viver melhor.

Com sucesso variável, cada nação desenvolveu seus esforços de universalização do acesso da população a tais recursos, cada vez mais caros e eficazes. Formou-se, assim, um mercado consumidor de produtos farmacêuticos, médico-hospitalares e serviços de saúde, movimentando hoje gigantescos orçamentos públicos e privados. O ato médico passou a ser objeto de interesses econômicos e, por que não dizer, ditado também por uma dinâmica de mercado. O conhecimento de como funciona a medicina e, principalmente, a definição de como ela deve funcionar deixou de ser interesse da classe médica e passou a ser objeto de atenção de toda a sociedade.

Nesse contexto, são bem vindas as publicações de A irresponsabilidade médica, do médico francês Philippe Meyer, e de Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas, do sociólogo pernambucano Paulo Henrique Martins. Ambas as obras abordam o impacto da radical transformação ocorrida na prática médica, provocada pela incorporação da tecnologia, que induziu os médicos a se preocuparem mais com exames complementares do que com o paciente, com a doença mais do que com o doente. Contra esta ‘desumanização’ e perda de responsabilidades se insurgem, com muita propriedade, Meyer e Martins em seus textos, compartilhando da recusa de uma medicina tecnicista e descomprometida com o paciente.

Os autores, porém, falam de locais diferentes para públicos distintos. Meyer é professor de medicina da Universidade René Descartes, em Paris, com atuação como anestesista no hospital universitário Necker. Martins é sociólogo e professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco. O primeiro escreve para um leitor leigo, embora seu texto seja especialmente útil para médicos e estudantes de medicina. O livro de Martins é um trabalho acadêmico, fruto de pesquisas financiadas pelo CNPq e de pós-doutoramento realizado pelo autor na França, e dirige-se principalmente à comunidade médica e universitária.

A irresponsabilidade médica enfatiza um aspecto simples, mas freqüentemente negligenciado: a responsabilidade médica (e por conseqüência, a ‘irresponsabilidade’) é filha do progresso científico e da socialização da medicina ocidental. Enquanto a prática médica era tão eficaz quanto a magia do pajé, não existia erro médico: “Eu o tratei, Deus o curou”, era a reflexão do Ambrose Pare, cirurgião francês do século XVI, considerado o pai da cirurgia moderna. Quando um erro administrativo — como a decisão francesa de se utilizar sangue potencialmente contaminado pelo vírus da AIDS em meados da década de 1980 — é capaz de transformar um ato terapêutico (a transfusão de sangue e derivados) em doença potencialmente letal, é hora de estabelecer a cadeia de responsabilidades relacionadas ao ato médico, que inclui médicos, administradores e políticos.

Meyer trabalha com o conceito de responsabilidade moral — em oposição à responsabilidade penal típica dos norte-americanos —, segundo o qual cada um é obrigado a responder por seus atos e intenções perante a própria consciência. Essa responsabilidade é historicamente construída e dependente do saber: o maior conhecimento, a disponibilidade de novos métodos diagnósticos e terapêuticos trazem novas obrigações à medicina e, antes de tudo, a premência de uma organização mais sofisticada dos sistemas médicos.

O autor discute a questão da responsabilidade médica nos mais diferentes aspectos, como pesquisa, previdência social, atenção à morte e educação médica, geralmente de modo instigante, embora simples. Algumas considerações são excessivamente específicas para o caso francês, como o capítulo sobre a previdência social. Por sua vez, no texto sobre o ‘O hospital do século XXI’, o autor descreve um hipotético hospital do futuro, que seria inaugurado em 2033, construído sobre o primado da técnica e da desumanização, em um exercício de futurologia megalômano e desnecessário. No conjunto, o livro é claro, objetivo e de fácil leitura, constituindo uma boa introdução para os que se interessam pelo papel da medicina na sociedade contemporânea.

Paulo Henrique Martins, em Contra a desumanização da medicina, trabalha sob a égide do sociólogo Marcel Mauss e do paradigma da dádiva, segundo o qual “a sociedade se constitui a partir de uma regra social primeira, a obrigação de dar-receber-retribuir, e que a constituição do ‘vínculo social’ é mais importante do que a produção de ‘bens'”. A reflexão seria válida para se pensar o campo médico, definido como território de organização das práticas médicas e de organização de um mercado de bens simbólicos de curas. Martins defende que “a generalização da ideologia utilitarista e mercantilista do campo médico está em vias de produzir uma desumanização ou tecnificação importante do sistema como um todo, e das práticas de cura em particular”. Esta ‘tendência desumanizante’ da ‘medicina oficial’ abriria espaço para a legitimação das terapias ditas alternativas, capazes de resgatar a dádiva médica, assim como transformações da própria medicina oficial que levariam ao nascimento de uma ‘nova medicina’, com sentido histórico ainda incerto.

Alguns termos operacionais são usados no texto, como medicina oficial e medicina alternativa, mas o agrupamento de diferentes práticas e interesses em número tão restritos de classes é nitidamente uma simplificação excessiva. O conceito de ‘medicina oficial’ é construído, no decorrer do texto, como aquela de base biológica cartesiana, “cooptada e manipulada pelo utilitarismo tecnomercantil e pela engenharia de órgãos humanos”. Seria caracterizada pela especialização excessiva, pela “separação metodológica entre o médico e o paciente” e pela diferenciação arbitrária entre mente e corpo, normal e patológico.

Por outro lado, a ‘medicina alternativa’, “um dos ícones da reação reumanizante do campo médico”, de caráter ‘mais feminino’, tem como referência “a redefinição imaginária do corpo e a conseqüente rearticulação do sujeito moderno a partir das novas subjetivações em curso” no pós-guerra. Responde à demanda complexa da sociedade por técnicas “ao mesmo tempo abertas ao sagrado e ao profano, ao moderno e ao tradicional, ao corpo e à alma, ao ‘interior’ e ao ‘exterior'”. Engloba técnicas distintas, como a acupuntura, a homeopatia, a psicanálise, o reiki, a iridologia e a massoterapia, entre outras.

Martins avisa que não devemos fazer uma leitura maniqueísta, identificando uma tendência à re-humanização com as terapias alternativas e um movimento rumo à desumanização com a biomedicina dominante. Mas é o próprio autor que usa e abusa dessa dicotomização como método de análise, sempre identificando um lado humano e bom, em oposição a outro, ‘egoísta’ e técnico. Assim, haveria a ‘medicina alternativa’ e a ‘medicina oficial’, o ‘humanismo’ versus o ‘tecnicismo’, a ‘filosofia da errância’ em oposição à ‘filosofia do progresso’, as reações em favor da cidadania e os interesses econômicos e corporativistas, o bem e o mal.

Dessa maneira, a análise empreendida por Martins é prejudicada pelas três características acima citadas: a necessidade de incorporar um modelo externo à análise do fenômeno médico (a teoria da dádiva); a definição de classes operacionais divididas de forma estanque e arbitrária; e um maniqueísmo acentuado e moralista. Além disso, algumas afirmações que faz são incorretas ou carecem de embasamento científico.

Formas de terapias alternativas e populares, consideradas pelo autor como uma reação da sociedade contra o utilitarismo tecnicista e mercantilista da medicina da segunda metade do século XX, coexistem no Brasil com a medicina tradicional desde o Império, como descreve Betânia Gonçalves Figueiredo no livro A arte de curar: cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX em Minas Gerais (Rio de Janeiro, Vício de Leitura, 2002). Muitas dessas práticas, como a psicanálise ou a ioga, estão sabidamente fora do campo médico, embora tragam bem-estar, prazer ou autoconhecimento aos pacientes. De um modo geral, elas não se opõem à medicina ‘tradicional’, simplesmente porque, embora eficazes na melhoria do bem-estar e da satisfação dos indivíduos, são incapazes de lidar com inúmeras situações clínicas importantes e comuns, como as neoplasias, as arritmias cardíacas, o infarto agudo do miocárdio e o trauma.

Do mesmo modo, nenhum ‘alopata’ com formação adequada despreza as dificuldades de separar o normal do patológico, deixa de enxergar a influência dos conflitos psíquicos na gênese e apresentação das doenças, ou considera que “o sintoma da doença deve ser combatido com um medicamento que seja o seu contrário”, como diz Martins. Essas afirmações estereotipadas e caricaturais acerca da prática médica revelam grande desconhecimento da profissão, de vez que o reconhecimento desses princípios e nuanças não é um movimento em direção a uma ‘nova medicina’, mas constituem parte integrante da ‘medicina oficial’ praticada diariamente, descrita nos livros-texto de medicina e discutida nas escolas médicas.

O tratamento preconceituoso das inovações médicas e do papel da indústria também deve ser combatido. A incorporação da tecnologia à prática médica proporcionou uma revolução fantástica na capacidade de o médico diagnosticar e tratar, promovendo bem-estar e evitando doenças e mortes. Ela trouxe consigo, como afirmam Martins e Meyer, problemas relacionados à mercantilização da medicina, à especialização excessiva e ao alto custo e complexidade. A indústria farmacêutica e médico-hospitalar, que busca primariamente o lucro, tem participado ativamente do esforço de melhoria do arsenal médico, com contribuições capazes de permitir que as pessoas efetivamente vivam mais e melhor. Isso não invalida o fato de que, em diversas situações, tais empresas atuem contra interesses nacionais ou mesmo dos pacientes, devendo ser então denunciadas e combatidas.

Nenhuma dessas considerações atenua a existência de problemas sérios nas práticas médicas, tanto convencionais como alternativas, muitos deles fruto do tecnicismo e do mercantilismo exagerado. Nesse aspecto, os dois livros, escritos algumas vezes em tom de manifesto, podem ser o ponto de partida para se pensar qual é a medicina que desejamos e necessitamos. É tarefa da sociedade em geral e dos médicos em particular a organização e instrumentalização da medicina, usando desde recursos tecnológicos a tratamentos alternativos, para que se busque efetivamente a promoção da saúde e do bem-estar para o maior número possível de pessoas. Para isso é fundamental reconhecer que o campo médico é uma arena em que atuam interesses diversos e ocasionalmente conflitantes, embora não necessariamente bons ou maus.


Resenhista

Antonio Luiz Pinho Ribeiro – Professor adjunto do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina, Coordenador do Serviço de Cardiologia e Cirurgia Cardiovascular do Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: tom@hc.ufmg.br


Referências desta Resenha

MEYER, Philippe. A irresponsabilidade médica. São Paulo: Unesp, 2002. MARTINS, Paulo Henrique. Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas. Petrópolis: Vozes, 2003. Resenha de: RIBEIRO, Antonio Luiz Pinho. Para além do bem e do mal. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.11, n.1, jan./abr. 2004. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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