A invenção da natureza. A vida e as descobertas de Alexander von Humboldt
Apenas um ano depois do lançamento do original em inglês, a editora Planeta e o tradutor Renato Marques brindam-nos com uma obra indispensável para todos aqueles interessados em história das ciências e da geografia. A invenção da natureza. A vida e as descobertas de Alexander von Humboldt é uma pesquisa bibliográfica e arquivística de fôlego cuja narrativa seduz o leitor da primeira à última página. Méritos para a autora, cuja escrita parece ter sido cuidadosamente elaborada — com destaque para a forma como ela posiciona as citações. São frases tão pequeninas quanto eloquentes cujo efeito é o de fazer parecer que estamos a conversar diretamente com Humboldt, Goethe, Bonpland, Darwin, Muir. Elogios também para o tradutor, que logrou a proeza de manter a fluidez e a elegância da versão original.
Baseado em nossa experiência como professor de História e Epistemologia da Geografia, cumpre confessar que Alexander von Humboldt (1769-1859) nunca foi tarefa fácil. Grosso modo, a impressão passada pela literatura acadêmica é a de que, a despeito de sua inquestionável erudição, seu projeto científico foi “ultrapassado” pela progressiva especialização disciplinar exigida pela institucionalização da geografia universitária. Todavia, as menções a ele são incontornáveis dentre os representantes franceses (Paul Vidal de la Blache), ingleses (Andrew J. Herbertson) e norte-americanos (Richard Hartshorne).
A questão de fundo, porém, parece mesmo residir na dicotomia entre passado e presente consagrada pela modernidade. A obsessão pelo novo cerra nossos olhos não apenas para aquilo que supostamente já passou, mas para a própria noção de processo histórico. Não por acaso o emprego de vocábulos como “recuperar”, “resgatar” ou “retraçar” quando nos referimos ao passado; parece algo distante que não mais está entre nós. Eles expressam nossa incompreensão diante do fato de que o passado não “passou” e ficou para “trás”, mas, sim, que continua a formar nossa percepção e nossas práticas sociais.
Assim, em uma disciplina tão dinâmica como a geografia, tudo é interessante — menos o passado. O resultado é que, para boa parte dos geógrafos, o Brasil “começa” (!) na década de trinta do século vinte com Getúlio Vargas… Explicar o país fora deste recorte temporal soa como digressão ou, mesmo, pretensão intelectual de quem ousa “conhecer história”. Escravidão? Regência? República Velha? “Sim, já ouvimos falar…” Mais uma vez, a história aparece como algo distante e, sobretudo, limitada ao passado. No máximo, possui esporádicas e aleatórias conexões com o presente…
Diante desse quadro, o recurso utilizado por quem trabalha com história da geografia tem sido o de mostrar a atualidade de seus temas de pesquisa. A título de exemplo, mencione-se Federico Ferretti relacionando o anarquista Élisée Reclus ao pensamento pós-colonial (Ferretti, 2013 [2012]); James Brotton incorporando um capítulo sobre mapas digitais em sua leitura social e de longa duração da cartografia (Brotton, 2014 [2012]); Guilherme Ribeiro sublinhando a interpretação vidaliana da modernidade como uma comparação possível em relação às transformações espaço-temporais provocadas pela globalização (Ribeiro, 2008); e, no presente caso, Andrea Wulf localizando Humboldt como uma das matrizes do ambientalismo (Wulf, 2016 [2015]).
Nesse sentido, os argumentos de Humboldt são tão atuais quanto os de, digamos, Edgar Morin ou Bruno Latour rumo à defesa da unidade do conhecimento e da crítica à excessiva especialização entre as ciências (Morin, 1996 [1990]; Latour, 2000 [1998]). Aliás, a impressão que tivemos foi a de que a inspiração metodológica do livro — não-explicitada pela autora em momento algum, ressalte-se — derivou dos conceitos de ciclos de acumulação, rede, centrais de cálculo, escala e aquisição de conhecimento elaborados em Ciência em ação. Como seguir cientistas e engenheiros mundo afora (Latour, 2000 [1998]).
Em certa medida, ao promover a fusão entre sensibilidade, arte e imaginação na compreensão da dinâmica da natureza ([Wulf, 2016: 53-71 [2015]; ver, também, pp. 189-203), parece também que estamos diante de algumas teses similares às defendidas pela abordagem cultural em geografia. Igualmente, sua preocupação metodológica com a unidade terrestre e com representar o mundo a partir de um texto tão denso quanto “paisagístico” encontra eco em geógrafos como Vidal de la Blache e Henry Clifford Darby (Vidal de la Blache, 1896; Darby, 1962).
Contudo, o êxito maior de Wulf consiste em ter mostrado que Humboldt engendrou uma nova concepção de natureza. Para além do mecanicismo cartesiano-newtoniano, o autor do Cosmos não se contentou apenas em medir e catalogar. Ele vislumbrava a Terra como um todo articulado, uma unidade orgânica cujas partes dependem necessariamente umas das outras. Daí associar clima e vegetação, vulcanismo e formação do relevo, desmatamento e erosão do solo. Principalmente as expedições na América do Sul, mas, também, na Rússia (ver parte II e capítulo 16, respectivamente), acrescidas do seu conhecimento das paisagens europeias, levaram-no a conceber a natureza à luz de padrões globais de funcionamento.
O pensamento de Humboldt pode ser sintetizado através do conceito de Naturgemälde, cujo significado pode ser simultaneamente pintura da natureza e noção de unidade, de todo. Lançando mão de uma ilustração da mais alta montanha do Equador, o Chimborazo (que ele próprio escalara), acompanhado de informações sobre temperatura, pressão atmosférica, espécies de plantas e animais conforme as diferentes partes do relevo, a
Naturgemälde mostrava pela primeira vez que a natureza era uma força global com zonas climáticas correspondentes ao longo dos continentes. Humboldt via ‘unidade na variedade’. Em vez de identificar e enquadrar plantas em suas categorias taxonômicas, ele via a vegetação através das lentes de clima e localização. Uma idéia radicalmente nova e que ainda hoje molda a nossa compreensão dos ecossistemas. (Wulf, 2016: 140-141 [2015])
Não há nenhuma coincidência, portanto, no fato de suas ideias terem fertilizado ninguém menos que Charles Darwin (1809-1882) — um dos pontos-altos do livro, ressalte-se (idem: 313-336). Aliás, uma das intenções de Wulf é exatamente tirar o legado de Humboldt do esquecimento e mostrar que suas pesquisas estavam em sintonia com o que havia de mais avançado em relação ao panorama científico da época. Amparada em arquivos, correspondências e referências bibliográficas, ela desfia como as lições do prussiano estiveram presentes desde o início da trajetória do jovem inglês que culminaria com a revolucionária hipótese da origem das espécies em 1859. A geografia das plantas era, nas palavras de Darwin, “o princípio básico das leis da criação” (ibidem: 332). Já não disseram que Humboldt fora darwinista antes de Darwin? (ibidem: 348 e 529). Andrea Wulf desvenda também como Humboldt inspirou o geólogo inglês Charles Lyell a escrever seu famoso livro Principles of Geology (1830); o conceito de ecologia forjado por Ernst Haeckel em Generelle Morphologie der Organismen (1866); e os pioneiros ambientalistas estadunidenses George Perkins Marsh e John Muir.
No Brasil, Humboldt certamente não passou despercebido, conforme podemos observar pela publicação do Quadros da natureza pela editora W.W. Jackson — com prefácio de Fernando Antônio Raja Gabaglia (conhecido professor de geografia do Colégio Pedro II) e tradução de Assis Carvalho no ano de 1965 (Humboldt, 1965 [1808]). As menções a ele nos dois maiores periódicos nacionais de geografia do século passado, a Revista Brasileira de Geografia (1939-1996) e o Boletim Geográfico (1943-1978), são recorrentes. Todavia, embora este último tenha vertido mais de quatrocentos textos estrangeiros para a língua portuguesa, Humboldt não aparece em nenhum deles.
A partir dos anos 2000, porém, destaque-se o aparecimento do artigo “El papel de Humboldt en el origen y desarrollo de la geografía moderna” na revista Geographia (UFF). Assinado pelo colombiano Héctor F. Rucinque e pelo equatoriano Wellington Jiménez, trata-se de um pequeno, porém interessante, panorama visando combater o “alzheimer histórico” ao redor de Humboldt (Rucinque & Jiménez, 2002: 9). Em 2012, mediado pelo geógrafo e tradutor do idioma alemão Leonardo Arantes, a mesma revista republicou o importante “Considerações introdutórias sobre as diversas formas de apreciar a natureza e uma investigação científica de suas leis” (Humboldt, 2012 [1827-1828]). Traduzido originalmente por Fabrício Coelho no periódico Floema. Cadernos de Teoria e História Literária (UESB) dois anos antes, trata-se da introdução ao Cosmos. Ao lê-la, percebemos de imediato sua complexidade e originalidade. Mutatis mutandis, assemelha-se a uma aula inaugural do Collège de France: como se antecipasse todo um programa de método que fertilizaria geógrafos dos mais variados matizes, Humboldt aborda tópicos como a conexão entre os fenômenos reconhecendo parte e todo, particular e geral, diversidade e unidade, bem como reclama a necessária fruição estético-sensível da natureza, a busca de leis em oposição ao empirismo e a relação entre pensamento e linguagem. Como se não bastasse, aponta ainda a disputa entre as nações pelos recursos naturais, pois “deve ocorrer necessariamente a redução parcial e, finalmente, a aniquilação das riquezas nacionais” (ibidem: 147-148). Esta observação está diretamente ligada às considerações assaz interessantes feitas por Andrea Wulf sobre Humboldt como um crítico atroz da escravidão e da relação predatória operada pelo colonialismo em termos ambientais e sociais, conforme o capítulo Política e Natureza. Thomas Jefferson e Humboldt (Wulf, 2016: 147-167 [2015]).
Em 2010 Floema ainda traduziria dois pequenos textos do prussiano: os prefácios às três edições de Visões da Natureza, vertidos por Carlos Alberto Gomes dos Santos e Lucia Ricotta. Esta, por sua vez, também publicara em 2003 o livro Natureza, Ciência e Estética em Alexander von Humboldt (Ricotta, 2003). Dois anos mais tarde, nova tradução: O Cosmos de Humboldt. Alexander von Humboldt e a viagem à América Latina que mudou a forma como vemos o mundo, de Gerard Helferich, por Adalgisa Campos da Silva (Helferich, 2005 [2004]).
Enfim, a investigação de Andrea Wulf consegue apresentar o pensamento de Humboldt em sua totalidade — algo difícil e que artigos curtos e lidos apressadamente são incapazes de realizar. Ao grifar sua sensibilidade estética e textual, Wulf mostrou o quanto jovens investigadores precisam estar atentos para a questão da linguagem lato sensu tal como Humboldt o fizera. Ao sublinhar sua invenção da natureza, ela transportou o legado de Alexander von Humboldt para os dilemas ambientais (que são, inútil esclarecer, sociais) do século XXI.
Referências
Brotton, Jerry (2014 [2012]). Uma história do mundo em doze mapas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Darby, Henry C. (1962). “The problem of geographical description”. Transactions and papers (Institute of British Geographers), n. 30, pp. 1-14.
Ferretti, Federico (2013 [2012]). “‘Eles têm o direito de expulsar-nos’: a Nova Geografia Universal de Élisée Reclus”. Espaço e Economia. Revista Brasileira de Geografia Econômica, ano II, n. 3.
Helferich, Gerard (2005 [2004]). O Cosmos de Humboldt. Rio de Janeiro: Objetiva. Humboldt, Alexander von (2010 [1827-1828]). “Considerações introdutórias sobre as diversas formas de apreciar a natureza e uma investigação científica de suas leis”. Floema (UESB), ano VI, n. 6, jan./jun, pp. 203-230.
Humboldt, Alexander von (1965 [1808]) Quadros da Natureza. Vol. 1. São Paulo: Jackson.
Latour, Bruno (2000 [1998]). Ciência em ação. Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp. Morin, Edgar (1996 [1990]). Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Ribeiro, Guilherme (2008). Modernidade e espaço, pós-modernidade e mundo: a crise da geografia em tempos de globalização. Diez años de cambios en el mundo, en la Geografía y en las Ciencias Sociales, 1999-2008. Actas del X Coloquio Internacional de Geocrítica, Universidad de Barcelona, 26-30 de mayo de 2008.
Ricotta, Lúcia (2003). Natureza, Ciência e Estética em Alexander von Humboldt. Rio de Janeiro: Mauad.
Rucinque, Héctor; Jiménez, Wellington (2002). “El papel de Humboldt en el origen y desarrollo de la geografía moderna”. Geographia (UFF), v. 4, n. 8.
Vidal De La Blache, Paul (1896). “Le principe de la géographie générale”. Annales de Géographie, ano Vultos, n. 20, pp. 129-142.
Wulf, Andrea (2016 [2015]). A invenção da natureza. A vida e as descobertas de Alexander von Humboldt. São Paulo: Planeta.
Resenhista
Guilherme Ribeiro – Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense, com estágio doutoral pela Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV). Pós-Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Associado I do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Trabalho realizado no âmbito do projeto de iniciação científica História da geografia no Brasil: o papel da tradução na circulação do pensamento geográfico (1939-2017) como parte das atividades do Laboratório Política, Epistemologia e História da Geografia na UFRRJ. E-mail: lapehge@gmail.com
Referências desta resenha
WULF, Andrea. A invenção da natureza. A vida e as descobertas de Alexander von Humboldt. Trad. Renato Marques. São Paulo: Planeta, 2016. Resenha de: RIBEIRO, Guilherme. Alexander von Humboldt no século XXI. Terra Brasilis (Nova Série), 10, 2018. Acessar publicação original