A Invenção da Argentina: História de uma Idéia | Nicolas Shumway
Ao analisar as fronteiras do Brasil, percebe-se rapidamente que este possui um número expressivo de vizinhos, fato que sugere uma maior acessibilidade a estes países e, porque não, a necessidade do estabelecimento de relações de variados tipos. Com efeito, a proximidade territorial e o contexto geopolítico acabam por vezes determinando as grandes linhas de relacionamento externo, já que é a realidade da qual não se pode e nem se deve fugir.
Nessa perspectiva, alguns países emergem com maior relevância no conjunto das expectativas brasileiras relacionadas à sua realidade geográfica, seja por questões de high politics ou low politics. Dentre esses, a Argentina representa historicamente o principal eixo do país na América do Sul. Portanto, entender sua história e aqueles elementos que caracterizam sua cosmovisão é uma tarefa necessária ao Brasil e aos brasileiros.
Diante desse imperativo, o livro de Nicolas Shumway emerge como um facilitador no processo de aprendizagem e de compreensão do universo argentino. O autor, professor da Universidade do Texas, tem se dedicado desde o início de sua carreira ao estudo da história intelectual e da literatura latinoamericana, particularmente de Argentina, Brasil e México. Nesta obra publicada originalmente em 1991 e traduzida para o português por Sérgio Bath e Mário Higa em 2008, Shumway nos convida a refletir sobre as raízes mais profundas da construção do Estado Nacional argentino.
A idéia-chave que articula a obra é a de ficção-diretriz. Esse conceito visa destacar aqueles elementos mais subjetivos que sustentam o sentido de nação e de povo e que, por essa razão, constroem a identidade argentina e sua singularidade enquanto Estado. A aplicação de tal conceito levou o autor a abordar os intelectuais e a literatura do século XIX, pois teria sido nessa seara e neste momento histórico que o país apresentou as iniciativas mais relevantes no sentido de construir ficções-diretrizes que fundamentassem a nação e a identidade nacional.
Entre as ficções-diretrizes propostas por Shumway, duas em particular se destacam: a idéia do liberalismo argentino aplicado à política e à economia, responsável pela europeização das instituições e dos valores sociais e morais; e as diferentes visões acerca do gaucho, uma figura-síntese nas discussões sobre identidades, ora concebido como o inimigo da civilização e da nação, ora considerado o protótipo da autêntica identidade argentina. Essas duas ficções-diretrizes teriam contribuído na construção do dualismo ideológico do país, representado pela percepção das diferenças e do distanciamento que vai além dos limites geográficos entre Buenos Aires e o interior.
Cabe ressaltar que essa última questão, relativa à divisão interna do país, permeia toda a obra. Ao trabalhar com o conceito de ficção-diretriz, o autor parece estar em busca de uma fundamentação histórica para esse fenômeno que singulariza a experiência nacional argentina. Assim, essa seria a pergunta a ser respondida e a inquietação intelectual que indutivamente motiva tal estudo: porque a construção do Estado Nação argentino gerou unidade mais em termos geográficos do que em termos de compartilhamento de identidade nacional.
O livro está organizado em dez capítulos dedicados em sua maioria ao estudo de pensadores, escritores e homens da política que contribuíram cada qual ao seu modo no projeto de construção da nação argentina por meio de ficções-diretrizes. Entre estes estão Mariano Moreno, José Artigas, Bartolomé Hidalgo, Bernardino Rivadavia, Juan Manoel de Rosas, Juan Batista Alberdi, Domingo Faustino Sarmiento, Bartolomé Mitre, Carlos Guido y Spano, Olegario V. Andrade, José Hernández e Lucio V. Mansilla.
Shumway deixa claro em sua introdução que, sendo norte-americano, não pretende explicar a história da Argentina aos argentinos, mas sim oferecer ao público de língua inglesa – e agora também portuguesa -, a oportunidade de conhecer a história desse país. E, com efeito, o autor é exitoso nessa tarefa, ao desenvolver uma reflexão sistematizada, aprofundada e bem documentada.
Compreender a trajetória argentina contribui, sem dúvidas, para a compreensão de nossa própria história. Entender a “invenção” desse país sugere pensar nossa própria invenção, já que ambos foram colonizados e passamos por processos complexos até alcançarmos nossa auto-afirmação em termos de nacionalidade. Ademais, interagir com nosso vizinho hermano é uma tarefa e um desafio necessários, em que a leitura desta obra pode contribuir de modo significativo e surpreendente.
Resenhista
Taís Sandrim Julião – Mestranda em História das Relações Internacionais – Universidade de Brasília – UnB. E-mail: taisjuliao@unb.br
Referências desta resenha
SHUMWAY, Nicolas. A Invenção da Argentina: História de uma Idéia. Tradução Sérgio Bath e Mário Higa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília: Editora UnB, 2008, Resenha de: JULIÃO, Taís Sandrim. Temporalidades. Belo Horizonte, v.2, n.1, p.168, jan./jul. 2010. Acessar publicação original [DR]