Na obra aqui resenhada, a autora dedica-se a fazer um levantamento da literatura produzida no Brasil, entre 1959 e 1987, a respeito dos estudos africanos. O foco do livro é no modo como o continente africano figura nos trabalhos realizados por pesquisadores brasileiros.
Schlickmann apresenta dados desde o primeiro estudo acadêmico por ela identificado e cujo foco foram os estudos africanos no Brasil, realizado em 1987 por Luís Beltrán, intitulado O Africanismo Brasileiro, até pesquisas mais recentes acerca da temática, como a tese de doutoramento de Márcia Guerra Pereira, datada de 2012, História da África: uma disciplina em construção.
Na introdução, a autora ressalta que os estudos atuais sobre a temática priorizam novas abordagens, como as representações a respeito da África, bem como as contribuições para os estudos africanos no Brasil, ainda que se configurem estudos pontuais que não analisam a consolidação deste campo de estudo. Um dos principais objetivos da obra é tornar acessível as maneiras como diferentes intelectuais brasileiros analisaram o continente africano em suas pesquisas.
O primeiro capítulo é dedicado à análise das primeiras obras dedicadas à temática dos estudos africanos. A autora pontua as contribuições das primeiras publicações no que diz respeito à formação da identidade nacional da recém-criada república brasileira, momento em que uma das principais questões apresentadas era como inventar uma nação sendo esta formada em sua maioria por africanos.
Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), primeiro a debruçar-se sobre a questão, com a obra Africanos no Brasil, embasada nas teorias do racismo científico, reconhecia a presença africana no Brasil e ressaltava suas especificidades no tocante às etnias e grupos oriundos d’África; mas considerava a influência africana como negativa, condenando a mestiçagem. A autora segue pontuando os estudos produzidos, citando Manuel Raimundo Quirino (1851- 1923), abolicionista, dedicou-se aos estudos das populações africanas presentes na Bahia. Quirino divergia de Nina Rodrigues ao defender a mestiçagem, pois considerava que características positivas presentes nos africanos precisavam ser transmitidas para gerações futuras.
Outros discípulos de Nina Rodrigues também foram de suma importância para os estudos africanos. O primeiro, Arthur Ramos (1903-1949), pioneiro nos estudos antropológicos. Edison Carneiro, também discípulo de Nina Rodrigues, foi o primeiro a dedicar-se aos estudos do Quilombo dos Palmares, no entanto, centrou sua pesquisa nas religiões de matrizes africanas, especialmente o candomblé. Ele partilhava da visão nagocêntrica de Nina Rodrigues, que acabou por influenciar autores estrangeiros como Pierre Verger e Roger Bastide.
Gilberto Freyre (1900-1987) marcou a produção concernente aos estudos africanos no Brasil nos anos 1930. Seus clássicos Casa Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mocambos (1936) trazem a mestiçagem como traço característico da formação do povo brasileiro. Freyre via na mestiçagem fatores positivos e a incentivava, o que contribuiu significativamente para a criação do Mito da democracia racial. As populações indígenas passaram a aparecer, em menor número, em suas pesquisas, fato que contribuía para o favorecimento do ideário da convivência pacífica das três raças: indígena, africana e europeia.
As obras publicadas no Brasil na década de 1930, considerada por Schlickmann como período dos primeiros momentos dos estudos africanos no Brasil, desde Nina Rodrigues, são embasados por um viés racialista. Os autores desse período divergem no tocante a mestiçagem que, em 1906, era considerada um problema para Nina Rodrigues, já na década de 1930, tornou-se a solução para a identidade nacional brasileira.
Nos anos seguintes, o interesse predominante da Academia focaliza-se na questão do negro e as relações raciais. Temas como escravidão e as práticas religiosas prevalecem no cenário científico. Em 1960, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura nomeia o ano como o “Ano da África”, em razão da eclosão de movimentos de independência ocorridos no continente naquele momento, fato que ocasionou numa maior aproximação do governo brasileiro com as questões africanas, o que acabou por favorecer a consolidação e a criação de diversos centros de estudos africanos como o Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, existente desde 1940; o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-asiáticos da Universidade Cândido Mendes, criado em 1961 e o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo em 1965.
Para a autora, a fundação desses centros, na década de 1960, trouxe novo fôlego para os estudos africanos, uma vez que estes representavam o reconhecimento acadêmico dos estudos africanos que, até então, ocorriam de maneira esporádica e doravante passaram a ter estrutura oficial.
Não obstante, a “institucionalização” acadêmica da temática africana sofreu vários golpes decorrentes do endurecimento do regime militar, que em suas reformas educacionais, priorizava a organização da História seguindo os moldes europeus, não incluindo a História da África em seus currículos, além de cortar sistematicamente os projetos relacionados ao continente.
Já em 1970, organizações de luta contra o racismo e a discriminação racial ganharam força no país e o estudo da temática voltou a se reestruturar, tendo o combate ao racismo como demanda principal. O Pan-africanismo, o movimento da Negritude e as lutas pela independência dos países africanos também influenciaram os movimentos. Essas influências acabaram por modificar a forma como a historiografia enxergava o continente, surgindo nesse período historiadores que não analisavam a história africana tão somente sob o aspecto do subjugo ou pelas ações dos dominadores/colonizadores. A partir desse momento, as grandes civilizações africanas e os seus heróis ganhariam lugar de destaque na tentativa de se buscar uma identidade comum aos africanos.
O afrocentrismo ocupa destaque, uma vez que as pesquisas tiravam a África daquilo que se chamava “região periférica”, passando para “região central da humanidade” como foco de pesquisa. Contudo, a ausência de um refinamento metodológico e/ou teórico para lidar com as fontes orais, limitavam os avanços nas pesquisas.
Os anos 1980, segundo Schlickmann, foram marcados por uma intensa transformação na historiografia, dando lugar a novos métodos e novas questões que ganharam destaque em diversos campos da História. Novas abordagens influenciaram o estudo do continente africano em alinhamento com as novas perspectivas teóricas que possibilitaram novos ares à temática africana. Questões até então ignoradas, como a história das mulheres, a das doenças, conflitos no continente etc., tornaram-se novos objetos de estudos.
O segundo capítulo é destinado à análise da produção acadêmica brasileira sobre a África. A autora elenca uma série de produções acadêmicas como teses de doutorado, dissertações de mestrado, artigos das revistas dos centros de pesquisa de estudos africanos e livros acadêmicos que tem a África como abordagem central. A partir dessa análise, a autora busca traçar um perfil do pesquisador, de acordo com os parâmetros da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e os temas mais estudados da temática africana no Brasil.
Os artigos sobre o continente africano dominam as publicações das revistas, tendo Angola como principal país foco das pesquisas. No tocante às teses e dissertações, Angola também ocupa lugar de destaque nas pesquisas o que, segundo a autora, leva a crer que o fator língua seria determinante nas escolhas das temáticas, já que no recorte temporal aqui pesquisado, o estudo de uma língua estrangeira era menos acessível. A autora considera incipiente a produção localizada entre os anos 1960 e 1980, elencando para isso fatores como a falta de orientadores relacionados à temática, dificuldade de acesso às fontes, bem como as poucas referências bibliográficas encontradas nas bibliotecas brasileiras.
No terceiro e último capítulo do livro, Schlickmann dedica-se a avaliar a repercussão das produções acadêmicas sobre a África no Brasil, fazendo uma radiografia do que foi produzido em História. A autora ressalta as correntes de valorização do continente africano, bem como o afrocentrismo latente na década de 1970, os debates a respeito do colonialismo e as questões referentes às novas configurações do continente, desdobramento dos movimentos de independência africana. No Brasil, a produção historiográfica acerca dos estudos africanos ganha novas configurações a partir dos novos aportes teóricos historiográficos pensados para além do marxismo. Os centros de estudos e a institucionalização acadêmica dos estudos africanos também contribuíram de forma significativa para a formação de pesquisadores da temática africana, além da propagação de disciplinas e projetos de pesquisa que colaboraram para a evolução dos estudos africanos.
Por meio da análise apresentada pela autora ao longo do livro, podemos concluir que os estudos africanos no Brasil acompanharam ou também a reconfiguração política e econômica do continente após os processos de independência lá vivenciados. A análise nos permite visualizar, de forma objetiva, o andamento da produção historiográfica no Brasil concernente à temática africana e evidencia que embora haja o desenvolvimento e ampliação dos campos de estudos da História da África, ainda há muitos espaços a ocupar no que tange à produção acadêmica da temática no Brasil.
Assim, a obra aqui resenhada contribui de forma significativa para uma visão panorâmica sobre os estudos africanos no Brasil. Sua leitura é indicada para estudantes dos cursos de licenciatura em História e Ciências Sociais, assim como docentes dessas disciplinas e interessados nas discussões acerca das relações raciais e étnicas.
Resenhista
Rosivania de Jesus Costa – Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGen/UESB). Professora das Redes Estadual e Municipal de Vitória da Conquista, Bahia. E-mail: rosivaniajcosta@gmail.com
Referências desta Resenha
SCHLICKMANN, Mariana. A Introdução dos Estudos Africanos no Brasil (1959 – 1987). Curitiba: CRV, 2016. Resenha de: COSTA, Rosivania de Jesus. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.21, n.37, p.193-197, jan./jun. 2019. Acessar publicação original [DR]
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