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A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a Proclamação da República | Leda Maria P. Rodrigues

“Outro prazer (do historiador), este excitante prazer de decifrar, que não passa na verdade de um jogo de paciência.”

Georges Duby

A arte de vasculhar o passado, as memórias, as histórias fazem com que a oficina da História seja eternamente uma fonte de estudos e olhares, ciência e interpretações. O fato de sempre estar alerta às obscuridades e aos silêncios impele uma entrada investigativa em campos (inter)disciplinares como é a interface entre História e Educação, seguir os rastros empoeirados de velhos e esquecidos corpus documentae (sejam eles textuais, orais ou visuais), vozes silenciadas e, ainda assim, observar possíveis armadilhas que as intempéries e o uso de registros oficiais podem armar no processo de construção/reconstrução da História. Tudo isso indica-nos a difícil aventura percorrida neste campo do saber e tendo em vista que é produto da elaboração do conhecimento histórico/historiográfico.

Como expressou Georges Duby em seu livro A história continua: “cabe perguntar se o historiador encontra-se alguma vez mais próximo da realidade concreta, dessa verdade que anseia por atingir e que lhe escapa permanentemente, do que no momento em que tem diante de si, examinando-os atentamente, esses restos de escrita que emanam do fundo das eras, como destroços de um completo naufrágio, objetos cobertos de signos que podemos tocar, observar na lupa.”[1]

Este percurso por estudos que cruzaram as fronteiras da História e da Educação brasileiras tem um ponto em comum e um eixo fundante: a pesquisa desenvolvida por Leda Maria Rodrigues, ainda nos idos dos anos 60 e que reforçaram toda a produção posterior através de dissertações, teses, artigos e comunicações que partem de seu trabalho como referência da revisão historiográfica. Com seu doutorado intitulado A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a Proclamação da República, a historiadora Leda (mas também conhecida como Madre Maria Ângela) cria um marco na produção sobre a temática. Reconhecida pelas Escolas Profissionais Salesianas, de São Paulo, em 1962, conclui este estudo e faz extenso levantamento das principais inovações introduzidas no ensino particular feminino paulista durante o último quartel do século XIX, com destaque para o advento da Proclamação da República, ademais de ampla documentação para o Estado de São Paulo (elenco de colégios e dados fornecidos sobre educação feminina até 1889 é uma fonte demográfica/histórica de grande contribuição). Menciona desde ações governamentais que marcaram o período até a chegada de ordens religiosas ao Brasil e à Paulicéia. Alvo de sua atenção foram duas biografias em especial: Martha Watts e Marie Rennotte na Piracicaba dos anos 1880.

Das preceptoras às primeiras letras, das coleções de livros ao latim e às disciplinas “femininas”, das instruções “encomendadas” às primeiras ações políticas e religiosas que marcariam profundamente o projeto para um Brasil republicano. Das inúmeras instituições aos projetos profissionalizantes e técnicos; das exemplares professores/investigadoras até os mais remotos lugares de educação no interior do Estado foram alvo da tinta e da cuidadosa investigação promovida na tese.

Ao procurar narrar o cotidiano destas mulheres, formadas e educadas a partir dos princípios católicos de mãe cristã, Rodrigues marca o uso de categorias e fontes diferenciadas na construção da história regional. De um lado, há um ideal paradigmático de boa moça e do qual a mulher urbana não escapa, moldado para sua inserção funcional na nova sociedade brasileira, seguidora de normas do dever ser. Por outro, as experiências cotidianas demonstram existir uma certa tensão nesta relação, assentada nos costumes, nas maneiras originais pelas quais assimilaram ou não na sua formação os elementos prescritos, coercitivos e normatizadores, agravados pelos caminhos de um progresso acelerado decorrente do pós-guerra e que exigia a definição imediata dos novos papéis sociais para a mulher.

A tentativa de observar as transformações sócio-culturais ocorridas nos finais do século XIX e primeiras décadas do XX impõem, efetivamente, o inevitável esclarecimento de projetos ideológicos em vigor. No campo educacional, as discussões se exasperam no afã de adaptar a sociedade brasileira às constantes mudanças advindas do processo de republicanização e assentamento de novas relações no país. A trama republicana lançava os pilares de ordem e do progresso, contidos no ideário da Escola Nova, encontrando apoio nos princípios de desenvolvimento e de civilização, incentivando o surgimento de inúmeros agrupamentos em prol da formulação de políticas educacionais e médico-sanitaristas, incumbidos de traçar os rumos “inovadores” pelos quais a Nação deveria guiar-se. Confirma em sua tese que, no período anterior, justamente se caminhava na contra-mão: “na própria metrópole não havia escolas para meninas, apenas recolhimentos que visavam o ensino de afazeres domésticos e a mentalidade era considerar a instrução feminina como algo supérfluo e mesmo perigoso.”[2] Sua proposta doutoral indicou caminhos e possibilidades a outros estudos e detalhamentos. Não só como investigadora, mas sobretudo como integrante do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP, Irmã Leda – como era conhecida nos corredores – abriu múltiplas referências e oportunidades de entender, compreender e analisar melhor os matizes do projeto civilizador/civilizatório para educação e formação feminina dentro da história contemporânea brasileira.[3]

Um desses esforços, para além de suas orientações e trabalhos como educadora, foi verificar as contribuições realizadas a partir de seu marco. Pode-se mencionar aqui que um número especial da “Projeto História”[4] mostrou-se uma contribuição proeminente, não só pela temática apresentada, como por introduzir debates historiográficos que circundam ambos os temas. Nesta obra, a diversidade pode ser detectada a partir das perspectivas das autoras – de áreas acadêmicas distintas –, que enriqueceram a teoria e a historiografia em torno de temas tão “marginalizados”.

Em Educação e Gênero no Brasil, Fúlvia Rosemberg ressalta que a escola brasileira enfrentou um processo de “feminização”, causados por diversos fatores e que podem estar atrelados às “modificações culturais nas relações de gênero, os processos de urbanização, modernização, terceirização da economia e as crises econômicas poderiam estar provocando um aumento de escolaridade das mulheres e modificações no padrão de organização familiar”. Ademais, podemos citar como elementos constituidores deste processo de ampliação da escolaridade feminina: “a participação no mercado de trabalho, diminuição da fecundidade e retardamento da idade de casamento; diminuição da taxa de mortalidade infantil; ampliação de sua participação na esfera política.”[5]

Fruto também de diálogos com Leda Rodrigues, Rosemberg assinala contradições nos processos educacionais e que perpassam por questões de gênero, sendo exemplificado através da divisão curricular (conteúdos humanísticos para mulheres e técnicos para homens), ocasionando maior assimetria entre os sexos e apontando a escola como um centro de manutenção e reprodução da ordem estabelecida, seja esta na família, nos meios de comunicação ou no mercado de trabalho.

Outra assertiva é a de Eliane Lopes, cruzando História da Educação e Gênero e resgatando Michel de Certeau ao afirmar que a História é a escrita do “encontro de contingências, de decisões e de práticas”. Descreve os caminhos e fronteiras do ofício do historiador – desde o manuseio das fontes, passando pelo Scandere/Découper (decomposição/divisão) dos fatos históricos, pressupondo arte da inquirição e construção de categorias analíticas. “Categorizar, atrevo-me a uma definição, é a tarefa de organizar o material coletado, a partir de perguntas, para dar inteligibilidade ao problema posto. […] servem a problemas e a pesquisadores específicos, em realidades e tempos sociais determinados.”[6]

Talvez esta tenha, realmente, sido uma das maiores contribuições do trabalho original de Rodrigues e referência para as produções seguintes: a formulação, o uso de categorias de análise que possibilitem reconstituir culturas, memórias e histórias múltiplas. Concomitantemente, a tese envereda e articula a questão da história e educação feminina no Brasil, que será nas décadas seguintes alvo de inúmeros projetos e pesquisas. Apesar de uma ênfase na história das mulheres, sua tese ainda não se aproximava das contribuições sobre a categoria gênero.

Guacira L. Louro, em Uma leitura da História da Educação sob a perspectiva do gênero, demonstra séria preocupação nas questões concernentes ao gênero e a História da Educação, tendo como objetivo vislumbrar a abordagem histórica da educação sob tal perspectiva e com base teórica em Joan Scott e Michelle Perrot.

Após a introdução ao tema, Louro caracteriza a História da Educação: esteve sob o domínio de 1º) um paradigma experimental-positivista e, posteriormente, 2º) a articulação da educação com o todo social. Justamente neste ponto de transição e discussão epistemológica e teórica, a tese de Rodrigues marca seu tempo: ênfase dada aos estudos de instituições educacionais masculinas ou femininas, introduzindo uma abordagem embasada na categoria gênero, ampliando uso de fontes possíveis de investigação, além de contribuir para a elaboração de visões históricas. Para além do descritivo e cronológico, seguindo essa argumentação, a tese serviria como uma escrita comprometida e bastante detalhada de documentação sobre História e Educação feminina.

“Só podemos avançar em nossa leitura da história (e da história da educação) sob a perspectiva do gênero, na medida em que efetivamente aceitarmos que essa categoria é, ao mesmo tempo, social (portanto histórica) e biológica.”[7]

Outros foram continuidades e podem ser destacados: dissertação de Maria Cândida dos Reis Delgado sobre o período posterior ao estudado por Leda Rodrigues e avançando nas primeiras décadas da República. Também outros recortes e abordagens, tais como a escolarização profissional feminina, buscando “a relação histórica entre o dentro e o fora.”[8]

Outra questão revelada na leitura da tese é a relação Igreja e Educação. Ao dedicar um estudo sobre os libertários, existindo forças assimétricas na realidade feminina: “de um lado a Igreja, a força conservadora que coloca a mulher na secular ignorância, impedindo o seu acesso à educação e à ciência, pontuando o universo feminino de superstições, pregando a resignação e conformação. De outro lado está a educação, capaz de despertar a sua consciência crítica, apresentando-lhes um universo científico e racional, que a leva ao questionamento, sendo uma força de transformação de sua condição.”[9]

Uma resenha da tese e dos caminhos abertos por Irmã Leda são sinônimos. Seu doutorado é uma pesquisa original, inédita, útil e válida [10] e a revelação de suas potencialidades estão não só restritas ao número de citações, comentários e referências, mas aos impactos que tiveram e continuam a ter, mesmo depois de quase cinqüenta anos de distância temporal. ANPUH, ANPED, Programas de pós-graduação e graduação – especialmente nas áreas de História e Educação – continuam a mencionar a escrita de Leda Rodrigues. Rigor, compromisso, escrita criteriosa foram componentes de seu texto e de sua vida como educadora. Seu reconhecimento vem pelo acesso, disponibilidade, impacto, mas, sobretudo, por criar e potencializar uma área de interconexão nas Humanidades que resultou em diversas linguagens, pesquisas e continuidades.

Notas

1. DUBY, Georges. A vida continua. Rio de Janeiro, Zahar/UFRJ, 1994, p. 17.

2. RODRIGUES, Leda Maria P. A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a proclamação da República. São Paulo, 1960, p. 18. (Tese. PUC/FFCL “Sedes Sapientiae”.

3. CAVALCANTI, Vanessa R. S. Vestígios do Tempo: Memórias de mulheres católicas (1929-1942). 1995. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 1995.

4. ROSEMBERG, Fúlvia et al. Projeto História: Mulher & Educação, São Paulo, PUC-SP, n. 11, 1994, p. 9.

5. ROSEMBERG, op. cit., 1994, p. 9.

6. LOPES, 1994, p. 21. In: ROSEMBERG, op. cit., 1994.

7. LOPES, op. cit., 1994, p. 40.

8. OLIVEIRA, 1994, p. 58. In: ROSEMBERG, op. cit., 1994.

9. PRACCHIA, 1994, p. 76. In: ROSEMBERG, op. cit., 1994.

10. ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1997.

Referências

CAVALCANTI, Vanessa R.S. Vestígios do Tempo: Memórias de mulheres católicas (1929- 1942). 1995. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 1995.

DUBY, Georges. A vida continua. Rio de Janeiro, Zahar/UFRJ, 1994.

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1997.

RODRIGUES, Leda Maria P. A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a Proclamação da República. São Paulo, 1960. (Tese. PUC/FFCL “Sedes Sapientiae”).

ROSEMBERG, Fúlvia et al. Projeto História: Mulher & Educação, São Paulo, PUC-SP, n. 11, 1994.

Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti – Pós- doutora em Humanidades pela Universidade de Salamanca, Espanha (CAPES, 2011 e CNPq, 2008). Doutora em História – Universidad de Leon (2003). Mestrado em História Social pela PUC-SP. Professora e pesquisadora da Universidade Católica do Salvador no Doutorado e Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea. Integrante do Núcleo de pesquisa e estudos sobre juventudes, identidades, cidadania e cultura (NPEJI/UCSAL) e do Núcleo de Estudos de História Social da Cidade – NEHSC – PUC-SP.


RODRIGUES, Leda Maria P. A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a Proclamação da República. São Paulo, 1960. Tese. PUC/FFCL “Sedes Sapientiae”. Resenha de: CAVALCANTI, Vanessa Ribeiro Simon. Conexões históricas para além de uma geografia paulista: educação, gênero e instituições. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.5, 2010. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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