A Inquisição em foco, dois séculos após sua extinção: Estruturas, personagens, vítimas e possibilidades de análise | Mnemosine Revista | 2021

The public hanging of witches in Scotland. Coloured engraving 1678. Illustration The Granger CollectionAlamy
The public hanging of witches in Scotland. Coloured engraving, 1678. Illustration: The Granger Collection/Alamy

O dossiê que aqui apresentamos à Revista Mnemosine é fruto de um convite feito aos organizadores pelos responsáveis pela Revista e foi proposto e pensado a partir dos esforços de reflexão em torno de uma data marcante para os estudos acerca do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Portugal: em 2021, comemorou-se os 200 anos de sua extinção, ocorrida por votação unânime das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação portuguesa em 31 de março de 1821, naquele alvorecer da monarquia constitucionalista lusa.

O encerramento das atividades inquisitoriais, após 285 anos de atuação e milhares de denúncias, confissões e processos, foi dos mais importantes desdobramentos da Revolução Liberal do Porto, ocorrida em 1820, e que teve ainda como uma de suas consequências, na outra franja do Atlântico, a independência do Brasil, em 1822 – data marcante da qual agora celebramos igualmente o bicentenário, apesar de outras independências que se fazem cada vez mais urgentes em nossa realidade – a dar fim aos mais de três séculos de dominação política portuguesa na América. Ventos de liberdade, cada um ao seu modo, que permitiam a Portugal e Brasil novos rumos e sonhos de progresso, sabemos bem, nem sempre concretizados.

A importância da efeméride pode ser medida pelo conjunto de atividades e produções que se preocuparam em discutir a Inquisição e seu mundo: eventos acadêmicos, projetos de pesquisa, dissertações e teses, livros, artigos e dossiês em várias revistas científicas, envolvendo pesquisadores do Brasil, Portugal e de outros países, dentro e fora do alcance de atuação da Inquisição portuguesa. Sinal de que o tema continua a despertar interesses.

Neste sentido, seria equivocado afirmar que o tema só ganhou força pela data que ora é relembrada: nas últimas décadas, os estudos sobre a Inquisição portuguesa, seus agentes e personagens têm ganhado cada vez mais destaque, espalhados por universidades de todo o Brasil (isso sem falar, como frisado acima, nas universidades estrangeiras – Portugal em especial, mas não só), consolidado como área de pesquisa das mais relevantes sobre a Modernidade.

Em boa parte, estes avanços têm sido possíveis pelos esforços tecnológicos; de cooperação internacional seja entre entidades governamentais, entre pesquisadores ou ainda, entre instituições de pesquisa; de democratização do acesso às fontes, como a digitalização e disponibilização de acervos documentais referentes à Inquisição portuguesa (em especial, no site do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal), bem como, para citar o caso brasileiro, aos altos investimentos no ensino superior e processo de crescimento e interiorização dos programas de pós-graduação durante os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff e que, infelizmente, regrediram a números muitíssimo menores no período pós-golpe de 2016.

O fato é que a recente historiografia inquisitorial, alçada a lugar de destaque a partir dos estudos de Anita Novinsky, Eduardo de Oliveira França, Sonia Siqueira, Elias Lipiner, José Antônio Gonsalves de Mello e José Gonsalves do Salvador, entre as décadas de 1960 e 1970, ganharam entusiastas que foram, aos poucos, sedimentando o campo de estudos. Cada vez mais mergulham nesta documentação explorando possibilidades variadas, para além dos estudos de caso e das análises acerca da estrutura e funcionamento do Santo Ofício, utilizando-se de novas teorias e metodologias de pesquisa, de relações interdisciplinares, com cruzamentos de fontes diversas, abordando questões cada vez mais atuais na sociedade e na historiografia, como os estudos culturais, étnicos e os de gênero. Passou-se a olhar a Inquisição e o seu mundo para além das análises clássicas, dos estudos de caso envolvendo suas vítimas, da estrutura de funcionamento do tribunal, cruzando fontes do Santo Ofício com outros materiais, envolvendo novas perspectivas de pesquisa e avanços metodológicos, propondo abordagens inovadoras inclusive de documentos e casos já analisados sobre outros vieses.

A cartela de textos que aqui o leitor tem ao alcance é uma venturosa prova desta variedade de possibilidades. Nela, os autores apresentam discussões sobre o Santo Ofício e seus personagens já concluídas ou ainda em desenvolvimento em programas de pós-graduação espalhados por todo o país, num claro sinal de como o tema se renova e ainda tem imensas possibilidades de expandir-se em novas e inéditas análises. Neste dossiê, encontram-se assim organizados:

A historiografia brasileira tem se dedicado há algumas décadas na temática acerca da presença judaica – e cristã-nova – no processo de formação social, econômica e religiosa na América portuguesa. O artigo que abre o dossiê, de Regina Costa, cujo título é Judeus sob suspeita: a tríada de judeus novos magnatas do Brasil Holandês, aborda uma dessas facetas, localizando as trajetórias de Duarte Saraiva, Moisés Navarro e Benjamin de Pina no contexto do domínio neerlandês no Nordeste durante a primeira metade do século XVII.

No trabalho de João Antônio Fonseca Lacerda Lima, “Pessoas eclesiásticas de prudência e virtude conhecidas”: Comissários e Notários do Santo Ofício na Amazônia Colonial, a extensa rede de agentes do Santo Ofício presentes na América portuguesa é o ponto de partida. Para isso, são analisadas algumas das trajetórias de uma série de indivíduos, incluindo clérigos, que atuaram na Amazônia Colonial como representantes da Inquisição portuguesa.

Publicada originalmente em 1559, a obra de Jorge de Montemayor, Los siete libros de Diana, é utilizada por Elizama Almeida, como ponto de partida para as análises realizadas no artigo intitulado Acervos digitais e o Tribunal do Santo Ofício: uma nova presença do passado a partir de Paula de Sequeira e William Shakespeare. Estes dois personagens, uma processada pela Inquisição e, o outro, um dos principais representantes da literatura inglesa, além do próprio Montemayor, servem como argumento para a revisitação do passado como “reativação” de memórias a partir da digitalização.

A religiosidade construída no universo colonial, principalmente no processo de formatação das crenças sobre o Diabo na América portuguesa, é alvo dos objetivos de Halyson Rodrigo Silva de Oliveira, no artigo “O Diabo esteve aqui”: feitiçaria, religiosidade popular e ação inquisitorial na Capitania do Rio Grande (séc. XVIII). Ao partir da documentação inquisitorial produzida pelos comissários locais, o autor percebeu uma ampla religiosidade colonial marcada pela relação entre diversos rituais e crenças e as demandas cotidianas protagonizadas por indígenas, negros e brancos.

Já Carlos Gontijo Rosa, em A Inquisição nas histórias do teatro português: uma ausência, trata da problemática da falta de quaisquer referências, entre algumas obras clássicas da história do teatro em Portugal, acerca da presença da Inquisição e dos variados mecanismos de censura vigentes quando o século XVIII é abordado. O artigo observa como essa ausência, na verdade, refletiu o interesse de variados autores em abordar esse período como um mero período de contradições pautadas no conflito estético.

Transgressão do matrimônio: um índio nas garras da Inquisição portuguesa, de Luana Souto Cavalcanti e Juciene Ricarte Apolinário, através do estudo de caso do indígena Miguel Dias Lopes, acusado, preso e processado pelo Santo Ofício por bigamia em inícios do século XIX em Olinda, analisa a percepção e atuação inquisitorial contra as presumíveis heresias cometidas pelos povos indígenas na América portuguesa.

Em As comunicações entre as Inquisições de Portugal e Espanha: circuitos e intermediários, Lucas Maximiliano Monteiro aborda a circulação de correspondências entre os tribunais inquisitoriais de Portugal e Espanha (incluindo os tribunais localizados nos domínios hispano-americanos) como ferramenta de colaboração no combate às heterodoxias e para a construção de uma rede de agentes e representantes que atuava em nome dos tribunais.

Como se pode ver, a diversidade de análises demonstra que a Inquisição é tema de abordagens plurais, longe de esgotar-se. Convidamos o leitor a aprofundar-se nas leituras, complementando-as com outras análises, consultando os trabalhos citados pelos autores em suas referências. Afinal, passados duzentos anos, as intolerâncias movidas pelo Santo Ofício fazem-se desgraçadamente atuais no mundo de negacionismos, incompreensões e falta de respeito ao próximo em que vivemos, e conhecer esse passado é uma forma de entendermos aonde chegamos.

A completar esta edição da Revista Mnemosine, os artigos livres que, embora não sejam diretamente ligados aos estudos sobre o Tribunal do Santo Ofício, também auxiliam na compreensão da nossa realidade e despertam o interesse por uma história crítica, consciente e reflexiva – estendemos a eles, o convite à leitura atenta por nosso público.

Por último, os organizadores deste dossiê o dedicam à Professora Anita Novinsky, nossa mestra maior dos estudos inquisitoriais no Brasil, falecida recentemente. De algum modo, todos os textos aqui presentes devem – e muito – aos seus ensinamentos contra todos os tipos de intolerância.


Organizadores

Angelo Adriano Faria de Assis – Universidade Federal de Viçosa (UFV).

Marcus Vinícius Reis – Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.


Referências desta apresentação

ASSIS, Angelo Adriano Faria de; REIS, Marcus Vinícius. Apresentação. Mnemosine Revista, v.12, n. 1, p.8-9, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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