A Inquisição Contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681) | Yllan Mattos

[…] Passar um homem infortúnios Ruínas, perdas, naufrágios, por acaso, ou por desastre no mundo é ordinário. Mas não há maior desgraça, nem mais lastimoso caso, do que um triste nascer, por herança, desgraçado. Que um morgado de misérias, É mui triste morgado, ainda mal, ainda negro, que por seu mal vêm tantos! Como estou de posse dele, de dor e de pena estalo. E o coração me faz dentro do peito pedaços […].1

O Tribunal da Santa Inquisição em Portugal foi criado em 1536, com o intuito de zelar pela pureza da fé católica dando início a um processo de perseguição àqueles que de alguma forma cometeram, pronunciaram ou defenderam heresias, na qual os cristãos-novos seriam suas principais vítimas. Em um segundo momento, os sodomitas, bígamos, blasfemos, luteranos e feiticeiros (em menor número), se tornaram alvos constantes por parte do Tribunal.

Desde a instituição de tal Tribunal em terras lusitanas, este foi bombardeado por críticas dos mais variados tipos e encabeçadas pelas mais diferentes personagens. Desde clérigos, passando por literatos chegando até mesmo aos membros constituintes do poder real, estimulando a construção de inúmeras imagens sobre a instituição.

Estudos sobre as críticas referentes ao Tribunal do Santo Ofício português eram de certo modo esparsos em livros e artigos que envolviam outras temáticas ou personagens. Até agora. Em 2014, foi lançado no Rio de Janeiro, o livro A Inquisição Contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681), de autoria de Yllan de Mattos, atualmente professor de História Moderna da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP.

Esta obra, fruto de sua tese de doutoramento, defendida em abril de 2013 na Universidade Federal Fluminense (UFF), sob orientação de Ronaldo Vainfas, é segundo Isabel Drumond Braga, Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – Portugal, “um trabalho cuja temática é relevante para o melhor conhecimento do Santo Ofício Português, contribuindo para colmatar o vazio historiográfico ao apresentar-se como o primeiro trabalho de fôlego sobre a matéria”.2

A obra versa sobre as imagens construídas pelos críticos da inquisição portuguesa. Estudos semelhantes foram realizados fazendo referência ao Tribunal de Castela3 e ao Tribunal Romano4, retratando críticas às jurisdições e aos procedimentos inquisitoriais. No caso lusitano, críticas ao tribunal são contemporâneas ao período de seu funcionamento como após sua extinção, em 1821. Inúmeros escritos são produzidos de modo a registrar o cotidiano e as perseguições por parte da instituição inquisitorial construindo assim o que o autor designa como uma literatura anti-inquisitorial. Diversos letrados, clérigos, com destaque ao Padre Antônio Vieira, se posicionaram contra a atuação inquisitorial, causando diversos conflitos entre a Inquisição e suas relações com o poder real, mas também com relação ao papado, em Roma.

O livro é composto por quatro capítulos, construídos de um modo peculiar, em que, na tentativa de tornar o texto contínuo, a última frase de cada capítulo se completa na primeira frase do seguinte, apontando a preocupação do autor em não só apresentar e debater o assunto, mas também tornar o texto de certa forma acessível aos leitores especializados, mas também ao público em geral.

No primeiro capítulo, intitulado As “odiosas novidades” vindas de Castela e a Restauração é proposta uma discussão da tentativa por parte do Tribunal do Santo Ofício Castelhano de reforma do tribunal lusitano, bem como da recusa dos inquisidores portugueses a aceitar a interferência régia no tocante as suas rotinas procedimentais. Nesse meio tempo, as críticas ao tribunal já são grandes, chegando a Madri e Roma. Entretanto, as interferências papais, quanto do Tribunal Romano não se valeram, pois a inquisição lusitana utilizou de todos os meios para se manter autônoma dos outros poderes para desenvolver seus trabalhos.

“Não só o espiritual, senão o político deste papel”: a batalha pelos preceitos inquisitoriais é o título dado pelo autor para o segundo capítulo em que se volta para uma questão que envolve duas instituições portuguesas: o conflito entre a Companhia de Jesus e o Santo Ofício. É desencadeado um conflito entre tais instituições pela questão dos privilégios sobre a compra de maças. Além disso, o autor trata das críticas contra o confisco inquisitorial no período até chegar ao alvará de 1649 na qual o rei isenta o confisco dos capitais dos penitenciados pelo Santo Ofício, e a atuação do padre Antônio Vieira, maior crítico da Inquisição no século XVII.

O terceiro capítulo cognominado, “Havia bem de morder o justo da Inquisição”: as críticas ao Santo Ofício, a analise se volta aos populares que procuraram dar voz às queixas e as injustiças. Este capítulo mostra as críticas de homens, mulheres e poetas a Inquisição, denunciando julgamentos arbitrários, ações interesseiras por parte do Tribunal no quesito de bens de acusados, a concepção da prática do judaísmo em segredo presente no pensamento inquisitorial com relação aos cristãos-novos, enfim, neste momento, o cotidiano é colocado em evidência mostrando que a crítica era feita por todos.

No quarto e último capítulo da obra, chamado Confusão no reino, perturbação em Roma: os papeis contra o Santo Ofício, procura por meio de uma narrativa, construir o episódio do requerimento feito a Roma por parte dos cristãos-novos, com o auxílio do padre Antônio Vieira para a realização de uma reforma do estilo de atuação do Santo Ofício. Nesse sentido, a proposta é a de analisar as críticas apresentadas pelos procuradores dos cristãos-novos ao papado, tendo como fontes toda a correspondência trocada pelos agentes envolvidos nesta questão. Além disso, há a análise do processo de suspensão do Tribunal da Inquisição lusitano e finaliza com o seu restabelecimento em 1681.

Segundo a professora Isabel Braga:

Ao ler a obra, o leitor encontrará a marca de alguém cujo gosto pela literatura se percebe e se aprecia, a escolha de títulos de capítulos instigantes, cuja leitura subsequente não desilude, e uma escrita que revela a capacidade de tornar simples os complexos meandros inquisitoriais. Mas o leitor encontrará mais, isto é, terá a oportunidade de, pela primeira vez e de forma aprofundada, poder se inteirar da autoria e do teor das principais críticas dirigidas a uma instituição secular que marcou de forma indelével a sociedade portuguesa da Época Moderna.5

A obra se apresenta como uma inestimável referência àqueles que se interessam pela temática, nesse sentido, desafia o especialista mais rigoroso a encontrar algum demérito. 5 BRAGA. Prefácio, p.14.

Notas

1. BNP-Lisboa. Reservados, Códice 6.031. Carta a Francisco de Mezas. In: MATTOS, Yllan de. A Inquisição Contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681). Rio de Janeiro: Mauad: Faperj, 2014, p.141.

2. BRAGA, Isabel Drumond. Prefácio. In.: MATTOS, Yllan de. A Inquisição Contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681). Rio de Janeiro: Mauad: Faperj, 2014, p.13.

3. PASTORE, Stefania. Il vangelo e l aspada: l’Inquisizione di Castiglia e i suoi critici (1460-1598). Roma: Edizioni di Storia e letteratura, 2003.

4. VALENTE, Michaela. Contro l’Inquisizione: il dibattito europeo – secc. XVI-XVIII. Turim: Claudiana, 2009.

5. BRAGA. Prefácio, p.14.


Resenhista

Alex Rogério Silva – Mestrando em História e Cultura Social UNESP/Campus de Franca. E-mail: alex465@gmail.com


Referências desta resenha

MATTOS, Yllan de. A Inquisição Contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681). Rio de Janeiro: Mauad; Faperj, 2014. Resenha de: SILVA, Alex Rogério. Temporalidades. Belo Horizonte, v.7, n.3, p.313-316, set./dez. 2015. Acessar publicação original [DR]

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