Desde as últimas décadas do século XX a imprensa se transformou em importante objeto da pesquisa histórica. Mais do que um repositório de informações jornalísticas sobre o passado, camufladas sob o rótulo da “neutralidade” forjada ainda no século XIX, ela passou a ser entendida como espaço fundamental de batalhas políticas e sociais, simbólicas e discursivas. Intelectuais, jornalistas, literatos e tantos outros escritores fizeram das páginas dos jornais instrumentos de reflexão, intervenção e transformação social, nas quais se publicavam projetos de sociedade e de nação. Nesse sentido, o objetivo deste dossiê se confunde, em grande medida, com o perfil da própria revista em que ele é publicado.
No entanto, se há tempos os jornais se consolidaram como objetos passíveis de investigação histórica, somente em anos mais recentes o estudo da imprensa negra – jornais produzidos por pessoas negras e para pessoas negras, em sua maioria, veiculando assuntos de interesse das populações negras em diálogo com a sociedade como um todo – tem se tornado mais sistemático e ampliado na historiografia. Resultado da atuação grupos e indivíduos, em diferentes temporalidades, que investiram na produção de discursos que confrontavam, entre outras coisas, situações de discriminação, a imprensa negra se transformou em lócus privilegiado para o estudo sobre a forma como homens e mulheres refletiram e se expressaram sobre o mundo no qual estavam inseridos. Uma vez que o preconceito de cor, o ódio de raça ou o racismo são elementos constitutivos das sociedades fundadas na escravidão de africanos e seus descendentes, as páginas desses jornais evidenciam não só as trajetórias de vida dos muitos escritores, intelectuais, jornalistas e poetas negros, como trazem à tona as lutas e os enfrentamentos contra o preconceito racial, as batalhas por cidadania e direitos e as redes de sociabilidade e solidariedade que se formaram.
Há no Brasil um vasto material disponível em arquivos públicos e acervos particulares que oferecem múltiplas possibilidades de reconhecimento e análise da produção intelectual de pessoas de ascendência africana falando na primeira pessoa, seja a do singular ou a do plural. Vozes que estão ganhando as páginas de estudos produzidos em diferentes instituições de pesquisa no Brasil e no exterior. O presente dossiê buscou reunir alguns desses trabalhos, priorizando a diversidade não só regional, quanto temática e metodológica presentes nos estudos da imprensa negra.
Em “Autodesignaciones de las y los afrouruguayos em su prensa (1872-952)”, Mónica García nos apresenta uma interessante análise sobre as diferentes designações que as e os afro-uruguaios se utilizaram em sua imprensa para autodesignar-se. Num estudo que acompanha a imprensa negra uruguaia por décadas, a pesquisadora mostra como tais termos são um meio de autoafirmação e de construção identitária. Atenta aos diferentes contextos políticos e sociais em que os termos de autodesignação vão aparecendo na imprensa negra, a autora problematiza e historiciza o uso de expressões como “de color”, “negro”, “raza”, “nuetra colectividad”, “nuestra comunidad” e “nuestra sociedade” pelas escritoras e escritores desses jornais.
Melina Kleinert Perussato, em “O Exemplo, a imprensa e os homens ‘de cor’ em Porto Alegre no pós-abolição”, retoma o debate sobre a inserção dos jornalistas negros no campo jornalístico porto-alegrense, bem como as lutas travadas por eles contra os estereótipos reproduzidos por jornais de maior circulação, na tentativa de afirmar imagens positivas sobre raça e, nesse sentido, contestar as ideias raciais hegemônicas. Em seu artigo, a pesquisadora nos conta não só o processo de inserção d’O Exemplo no meio jornalístico e as batalhas travadas pelo periódico, como acompanha também um pouco da trajetória dos fundadores do jornal que, apesar de serem jovens “homens de cor” inseridos em espaços de trabalho e educacionais de prestígio, não se livraram dos efeitos do preconceitos de cor.
Já Lívia Maria Tiede, em “Os homens de cor invisíveis da imprensa negra paulistana: como a biografia de um intelectual negro nascido no século XIX auxilia a repensar a historiografia do pós-abolição paulistano”, analisa episódios da trajetória de Frederico Baptista de Souza, membro da imprensa negra paulista e líder de clubes e sociedades nas primeiras décadas do século XX, no intuito de compreender as redes de sociabilidade e práticas culturais da população negra de São Paulo nos primeiros anos do século XX.
Em “Transgredindo as margens e forjando histórias: a imprensa negra na fronteira Brasil-Uruguai no Pós-Abolição”, Fernanda Oliveira analisa a imprensa negra publicada na região fronteiriça entre os dois países, investigando como, através da tribuna pública, foram transgredidas essas margens naquilo que diz respeito às experiências e vivências de racialização entre a população negra local.
Com o artigo “The Quilombo newspaper, Abadias do Nascimento, and Human Rights Activism in Brazil”, Niyi Afolabi examina a importância do periódico na atuação do importante escritor, poeta, ator e ativista negro em suas lutas pela dignidade política e cultural dos afro-brasileiros.
Por fim, o dossiê conta ainda com a importante participação da historiadora e ativista Martha Rosa Figueira Queiroz que nos concedeu uma entrevista sobre o Projeto Negritos – Imprensa negra no Recife e em Salvador, dedicado à reunião, digitalização e divulgação de coleções de periódicos em sua maioria preservados em arquivos particulares de ativistas do Movimento Negro. A todas e a todos fica o convite para a leitura deste dossiê que contou com participações e trabalhos fundamentais para o desenvolvimento do tema.
Apresentadoras
Ana Flávia Cernic Ramos (Universidade Federal de Uberlândia)
Ana Flávia Magalhães Pinto (Universidade de Brasília)
Julho de 2018.
Referências desta apresentação
RAMOS, Ana Flávia Cernic; PINTO, Ana Flávia Magalhães. Apresentação. Intellèctus. Rio de Janeiro, v.17, n.1, 2018. Acessar publicação original [DR]
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