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A ideia de justiça – SEN (C)

SEN, Amartya. A ideia de justiça. Trad. de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: DALSOTTO, Lucas Mateus. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 1, p. 212-215, jan/abr, 2013.

Qual deve ser o objetivo primeiro da justiça? Essa é, por assim dizer, a interrogativa que move grande parte dos escritos do economista e filósofo indiano Amartya Sen (1933), em especial em seu mais recente e proeminente livro denominado A ideia de justiça. Dentre as particularidades do autor, cabe sublinhar que Sen nasceu em Santinikenatan, onde atualmente é Bangladesh, e é professor da Universidade de Harvard. Foi laureado com o Prêmio de Ciências Econômicas em memória a Alfred Nobel no ano de 1998 por sua contribuição e pesquisa a respeito da teoria da escolha social e do walfare state, além de ser também um dos criadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) juntamente com Mahbub ul Haq.

Publicado inicialmente em 2009 na Grã-Betanha, A ideia de justiça é uma homenagem e ao mesmo tempo uma crítica ao pensamento de John Rawls (p. 23), importante filósofo americano que em 1971 publicou a importante obra Uma teoria da justiça, a qual marcou para sempre o pensamento seniano, inclusive servindo como ponto de partida para a presente obra. O livro é composto por 18 capítulos, subdivididos em quatro grandes partes, além de uma longa e esclarecedora introdução. Esses quatro núcleos em que o autor divide o texto dão uma compreensão geral da obra e organizam as teses defendidas por ele de forma profunda.

O filósofo e economista indiano abre o texto realizando uma distinção fundamental e necessária para a leitura do mesmo, dizendo que há duas famílias de pensadores que se ocuparam acerca do tema da justiça, cada qual amparado por uma linha teórica distinta da outra. A primeira família remonta à tradição contratualista de pensadores que se concentrou “antes de tudo em acertar as instituições, sem focalizar diretamente em sociedades reais” (p. 36), pois o pressuposto básico de pensadores tais como Hobbes, Locke, Rousseau, Kant e mais recentemente Rawls, era o desenvolvimento de teorias da justiça que enfocassem uma abordagem transcendental das instituições ideais. Entretanto, há uma segunda tradição, iniciada por Adam Smith e continuada por Condorcet, John Stuart Mill, Marx e Mary Wollstonecraft, a qual entende a justiça a partir de sua relação direta com as sociedades reais e não em conceber instituições perfeitas e transcendentalmente ideais. Tais autores estavam envolvidos com comparações entre sociedades já existentes e em comparações focadas em realizações. Assim sendo, a investigação de Sen não está doutrinalmente ligada ao institucionalismo transcendental, “mas à ‘outra’ tradição” (p. 39), como ele mesmo diz.

Na primeira parte do livro, nominado As exigências da justiça, a qual contém os capítulos I, II, III, IV, V e VI, Sen tenta responder a questão de qual deve ser o objetivo primeiro da justiça. Já no prefácio, ele abre a obra com uma citação profunda de Charles Dickens que diz “não haver nada que seja percebido e sentido tão profundamente quanto a injustiça” (p. 9). Essa ideia permeia toda a discussão da primeira parte, pois o objetivo elementar da justiça é evitar as injustiças e todas as suas formas de expressão (fome, pobreza, analfabetismo, tortura, racismo e etc.). O filósofo (e economista) faz duras críticas ao pensamento rawlsiano, especialmente ao experimento contrafactual da posição original, dizendo que esse experimento funciona como uma imparcialidade fechada (transcendental), de modo a parecer uma “camisa de força” (p. 165) aos indivíduos e sugere que o espectador imparcial de Adam Smith responde melhor à noção de imparcialidade aberta (real) e não impositiva.

No referido debate, na segunda parte do livro, a qual tem como título geral Formas de argumentação racional e que engloba os capítulos VII, VIII, IX e X, Sen fala que toda a vez que algum indivíduo se põe a pensar sobre o certo e o errado, em alguma medida, ele o faz com vistas a justificar suas posições às demais pessoas e fazê-las, contanto que estivessem devidamente motivadas, a “razoavelmente não rejeitar tal posição” (p. 232). Essa tese torna-se uma crítica a Rawls na medida em que ela afirma a possibilidade de haver princípios de justiça diferentes aos pensados por Rawls após a discussão pública, tendo em vista a pluralidade dos valores presentes na cultura democrática, não acenando assim, com uma visão unifocal de justiça.

Pode ocorrer que existam razões sobre determinada questão que sejam justas e ao mesmo tempo totalmente contrapostas. No tocante a essa questão, o autor procura aqui corrigir a influência dos valores paroquiais e ao mesmo tempo ressaltar a “necessidade de que se ouça as vozes das outras pessoas que são afetadas pela questão” (p. 275).

Sen, especificamente na terceira parte do livro que tem como nome Os materiais da justiça e que congrega os capítulos XI, XII, XIII e XIV, discorre designadamente acerca de quais as capacidades e os bens que a justiça deve resguardar. Retomando duas expressões do sânscrito que estão presentes no direito indiano e que expressam diferentes formas de ver a justiça, a saber, niti (adequação às regras das instituições) e nyaya (realização efetiva da justiça), Sen reafirma o que antes já havia defendido, que “se as exigências da justiça têm de dar prioridade à eliminação da injustiça manifesta, em vez de se concentrar na busca prolongada da sociedade perfeitamente justa, então a prevenção e a mitigação das inaptidões não podem deixar de ser bastante centrais na tarefa da promoção da justiça” (p. 294).

Por fim, há uma quarta e última parte da supracitada obra, nominada Argumentação racional pública e democracia, que abarca os capítulos XV, XVI, XVII e XVIII, em que o autor defende a tese na qual sustenta que a democracia e a argumentação pública exercem um papel fundamental no seio do debate acerca da justiça, e que a democracia deve ser um “governo por meio do debate” (p. 360). Como fervoroso cosmopolita que é, Sen argumenta a favor da possibilidade de uma justiça global baseada em um estado soberano global, o qual resguarde direitos humanos e faça cumprir alguns imperativos globais que possam ir além das fronteiras de uma região ou de um Estado, evitando assim o paroquialismo. Embora haja um acirrado debate sobre esses direitos inalienáveis e autoevidentes, o reconhecimento de direitos humanos se dá invariavelmente em meio a uma cultura democrática e por meio da argumentação pública, pois o reconhecimento de direitos humanos é, em última análise, admitir que qualquer indivíduo que tiver condições de fazer algo de efetivo para impedir a violação de algum direito tem uma boa razão para fazê-lo. O apelo ao uso público da razão é um pressuposto para se pensar a justiça, dado que entender suas exigências não é mais um exercício solitário, mas sim uma reflexão racional pública como insistia Mary Wollstonecraft.

É sabido que uma das grandes teses desenvolvidas por Sen e “o fio condutor de todo esse livro” (p. 445) é que pensar sobre a justiça não é buscar criar modelos representacionais de sociedades perfeitas ou ideais. O transcendentalismo das teorias do contrato, tal como em Rawls e Kant, dirigem-se exatamente a esse caminho que o autor indiano critica. Segundo ele, deve-se focar as questões de justiça em primeiro lugar nas avaliações das realizações sociais reais, isto é, analisar o que de fato acontece e os problemas relativos à melhoria da justiça ou à minimização do seu oposto. Muito influenciado pela teoria da escolha social, iniciada por Condorcet e recentemente estabelecida por Kenneth Arrow, o pensamento seniano enfrenta algumas dificuldades ao se deparar com o problema de como encontrar instrumentos que possam mediar de forma razoável comparações valorativas entre realizações sociais a partir de uma fundamentação plural e diversificada. Entretanto, não obstante essa nuance, parece que Sen acerta, grosso modo, quando argumenta que a teoria de Rawls parece não conseguir dar conta de uma justiça global, muito embora tenha feito um esforço para tal em The law of peoples.

De forma geral, longe de ser uma teoria ‘completa’ sobre a justiça, como muito se esperava que fosse, Sen realiza uma ampliação do debate acerca da justiça, trazendo críticas profundas ao pensamento rawlsiano e dando contribuições de grande valor para o presente debate, sem contudo ser, em momento algum, pouco profundo ou impreciso na abordagem dos conceitos. A valia de sua obra é inquestionável, mas ainda fica-se na expectativa que Sen retorne a essas questões uma vez mais para ampliar a discussão de forma mais propositiva, pois embora muitas de suas ideias sejam extremamente relevantes, tem-se a impressão que ele volta a alguns pontos como que “somente” para chamar a atenção da necessidade de serem discutidas publicamente as necessidades concernentes à justiça e de se ser razoável no debate das mesmas. No entanto, em suma, A ideia de justiça de Sen cumpre satisfatoriamente seu fundamental objetivo: incitar a discussão contemporânea acerca da temática filosófica da justiça.

Lucas Mateus Dalsotto – Professor da rede pública de ensino na Escola Dr. Assis Mariani. Mestrando em Filosofia na Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, RS, Brasil. E-mail: lmdalsotto@hotmail.com

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Itamar Freitas

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