A história da historiografia pós Giro Linguistico: para além da metáfora dos lugares
Independentemente das avaliações que possamos fazer das polêmicas produzidas pelo Giro Linguistico, a historiografia que hoje praticamos foi profundamente afetada por ele. Uma melhor compreensão dos aspectos não representacionais da linguagem revelou ao historiador uma nova extensão da realidade. A forma como lemos os textos transformouse, não estamos mais limitados aos seus conteúdos imediatos, aprendemos a perguntar por estruturas e fenômenos da linguagem, pela dimensão performativa dos discursos. Não apenas decifrar o sentido, mas descrever seus significados contextuais. A noção de contexto deixou de coincidir com o enquadramento dos objetos no estado-da-arte da história social; ele foi desnaturalizado, tornando-se um problema / objeto da pesquisa. No lugar do famigerado “contexto histórico”, aprendemos a desconstruir as imagens historiográficas e apontar novos problemas. Os diferentes campos da historiografia são afetados de modo distinto, mas na medida em que esse outro continente vai revelando sua extensão, os resultados dessas pesquisas afetam nossa compreensão da história.
A escrita da história deve ser estudada pelo uso de múltiplas ferramentas teórico-metodológicas. Durante muito tempo a metáfora do lugar pareceu dar conta dessas diferentes dimensões da escrita, mesmo que ela implicasse pontos cegos relevantes, como o da garantia epistemológica do lugar do qual se poderia analisar criticamente. A metáfora dos lugares parece ainda devedora da determinação externa da linguagem, sem permitir ver a própria linguagem como um lugar. Talvez pudéssemos substituí-la pela pergunta pelas situações ou modos de produção da historiografia, incluindo a linguagem em sua dimensão performativa. Não parece ser acidental que as principais fontes de inspiração para as novas agendas de pesquisa caminhem na direção de metáforas temporalizadas ou multidimensionais, tais como cronótopos, regimes, experiências, contextos, horizontes e expectativas.
Um dos traços da consciência histórica em sua fase clássica é a percepção de que a representação da história deve coincidir com a própria história; e que o conhecimento da história é uma das condições de seu acontecer. Talvez essa circularidade nos ajude a entender a força cognitiva que emerge nos grandes períodos comemorativos, neles podemos identificar momentos de esgotamento dessa conjunção entre a representação da história e seu acontecer. Assim, não é por acaso que o cronótopo moderno encontre um dos seus momentos de crise na revisão motivada pelas comemorações do bicentenário da Revolução Francesa. Entre 1789 e 1889 o mundo ocidental organizou a experiência do tempo em torno de elementos centrais da metahistória liberal: nação, civilização, evolução, razão e indivíduo. No século seguinte, esses conceitos foram explorados até seus limites, de modo que em 1989 a Revolução Francesa já não poderia ser evocada apenas como a origem mítica de nosso mundo.
Os processos de Independência da América seguem nessa mesma direção, com um grande esforço de releitura da experiência da colonização e formação dos Estadosnacionais. Com a perda das grandes narrativas, esses eventos voltaram a exibir certa opacidade, perderam o seu caráter fundador e tornaram-se fonte de disputa historiográfica. O próprio tema da revolução perdeu sua carga normativa na avaliação desses eventos. Antes, a sensação de estarmos vivendo em uma continuidade com essa história – éramos a sua realização seja como nacionalidade em formação, seja como homens modernos – gerava uma transparência que autorizava que medíssemos esse passado pelo que ele viria a ser: nós mesmos. Assim, entendemos a concentração dos problemas em temas como modernização, nação e revoluções incompletas. Buscavam-se as raízes desses fracassos, mas sempre de posse de definições muito sólidas do que deveria ser ou ter sido a revolução, a modernidade ou a nação verdadeiras. Todos esses temas retornam com força na historiografia contemporânea, mas enfraquecidos em seus traços normativos e ampliados na vontade de descrevê-los mais do que defini-los.
Não poderia ser diferente com a história da historiografia. O deslocamento do foco analítico, que antes estava preocupado com a montagem de uma história celebrativa da formação de uma ciência, para o que se tem chamado de cultura histórica, ampliou o significado e o escopo de uma história da escrita da história. Esse deslocamento tem reflexos em todos os níveis, particularmente no alargamento das agendas de pesquisa, objetos de estudos e da variedade documental. Antes se impunha o limite de uma definição absolutamente estreita de “texto historiográfico” que excluía tudo o que não se encaixasse no cânone; agora, com a crescente consciência da historicidade dessas definições de “texto historiográfico” e da circularidade entre cultura histórica e historiografia, ficou mais claro que narrar os modos pelos quais os historiadores escreveram a história exige abordagens ao mesmo tempo especializadas e totalizantes. É preciso recuperar os múltiplos contextos que constituem uma determinada “cultura histórica”, sejam eles contextos sociais, políticos, profissionais, intelectuais, conceituais, narrativos, dentre muitos outros que devem ser reconstruídos para que esses textos, imagens e representações readquiram significado.
Ao mesmo tempo em que recuperamos o absoluto enraizamento histórico da escrita da história, somos despertados para a impossibilidade de se compreender qualquer aspecto da história moderna sem o recurso a uma história da historiografia em suas relações com a cultura histórica. Não é possível descrever a formação dos Estados nacionais, as formas propriamente modernas de sociabilidade ou de ação política, sem atentar para o papel central que as representações, conceitos, narrativas e imagens históricas jogam na configuração desses mundos históricos. Mais do que apenas reagir ou servir a agendas de ação política ou social, as formas de experimentar e representar passado, presente e futuro constituem uma das condições estruturantes dessa história, tornando-se um contexto sem o qual não se pode interpretar os fenômenos da história social ou política.
É neste cenário que podemos entender as contribuições reunidas neste dossiê. A partir de diferentes perspectivas te abordagens, todos os autores procuram reintegrar a história da historiografia em seus horizontes conjunturais, demonstrando, ao mesmo tempo, sua centralidade para a compreensão desse momento de crise fundadora dos tempos modernos. Os textos Fabio Wasserman e Guillermo Zermeño estão entre os melhores exemplos dessas transformações no mundo hispano-americano. Seja pelo viés da história dos conceitos e das linguagens, seja pelo estudo exaustivo da “cultura histórica”, estes autores têm produzido uma historiografia capaz de interferir na revisão dos processos de independência em seus respectivos países. O texto de Ana Rosa Cloclet segue a tendência de recuar essa nova agenda de investigação para o século XVIII luso-brasileiro, revendo e ampliando temas clássicos tratados quase que exclusivamente por uma antiga história das ideias, como é o caso do ecletismo. Por fim, o texto de Bruno Medeiros aposta na descrição de um dos contextos centrais de nossa historiografia, a saber, a “tradição francesa”. No lugar de uma cansada história das influências, o autor estabelece tradições e modelos historiográficos efetivamente vigentes naquele momento de nossa história nacional. Em todas essas contribuições, a modernidade é desfeita de sua presença mítica e reavaliada como processo histórico complexo e ambíguo, recuperando algo da opacidade que desafiava os sujeitos históricos que viviam a crise que a inaugurou.
Valdei Lopes de Araujo
ARAUJO, Valdei Lopes de. Apresentação. História da Historiografia, Ouro Preto, v.3, n.4, mar., 2010. Acessar publicação original [DR]
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