A história secreta da Mulher-Maravilha | Jill Lepore
“É impossível registrar boa parte de qualquer vida. Todo casamento, todo amor, é inefável” assumiu Jill Lepore ao final de seu livro A história secreta da Mulher-Maravilha que é sobre a criação da super-heroína mais famosa do mundo (LEPORE, 2017, p. 341). A sentença declarando os limites de uma narrativa historiográfica decorre depois da historiadora ter demonstrado conduzir uma pesquisa que desvendou os mistérios em torno da vida, do casamento e do amor da família Marston, criador da Mulher Maravilha. Jill Lepore, historiadora e professora de Harvard, tem como objetivo em seu livro contar a história da criação da Mulher Maravilha, para isto, ela investigou a biografia do criador da super-heroína, William Moulton Marston. O que ela traz para o público é mais do que uma biografia, é também parte significativa da história americana do século XX, é uma história do direito, da psicologia, da ciência, do feminismo, do sufrágio e – por que não dizer – também da mídia e hegemonia cultural americana. Para isto, além das HQ’s da Mulher Maravilha, Jill Lepore teve a chance de fazer uma investigação meticulosa em papéis e documentos pessoais da família Marston. É de se admirar a quantidade de fontes que Jill Lepore (2017, p. 13-14) pôde acessar:
milhares de páginas de documentos manuscritos e datilografados, fotografias e desenhos, cartas e cartões-postais, fichas criminais, anotações rabiscadas nas margens de livros, depoimentos de tribunal, prontuários médicos, memórias não publicadas, roteiros rascunhados, esboços, históricos de estudantes, certidões de nascimento, documentos de adoção, registros militares, álbuns de família, álbuns de recortes, anotações para palestras, arquivos do FBI, roteiros de cinema, as minutas cuidadosamente datilografadas dos encontros de um culto sexual e minúsculos diários escritos em código secreto.
E além disso tudo, entrevistas com membros da família Marston. Sem dúvida alguma, depois de anos de pesquisa em arquivos, imprensa, HQ’s, Jill Lepore (2017, p. 14) pode anunciar sem medo: “Parem as máquinas: eu tenho a origem da Mulher Maravilha”. E de fato, ela tem mesmo. Como um historiador não pode se contentar em narrar uma vida, é preciso analisar um problema histórico, Jill Lepore (2017, p. 14-15) defende a tese de que a Mulher Maravilha “é o elo perdido numa corrente que começa com as campanhas pelo voto feminino nos anos 1910 e termina com a situação do feminismo um século mais tarde”. A historiadora afirma categoricamente: “O feminismo construiu a Mulher-Maravilha. E, depois, a Mulher Maravilha reconstruiu o feminismo – o que nem sempre fez bem ao movimento” […] “A Mulher Maravilha vem lutando pelos direitos das mulheres há muito tempo” (LEPORE, 2017, p. 14-15) Para justificar essa afirmação, Jill Lepore divide A história secreta da Mulher Maravilha em três partes: “Veritas”, “O círculo familiar” e “Ilha Paraíso”.
A primeira parte, “Veritas”, carrega como título o lema de Harvard, Universidade frequentada pelo criador da Mulher Maravilha. O leitor é situado na vida acadêmica do casal William Marston e Elizabeth Holloway. Eles, de alguma forma, militaram no movimento sufragista, que lutava pelo direito feminino ao voto. Como estudante, Marston se envolveu com pesquisas de psicologia experimental. Comprometido com o laboratório, ele desenvolveu o detector de mentiras. Esta parte se encerra com a primeira vez que Marston, já como professor universitário, conseguiu levar seu detector de mentiras ao tribunal. Fracasso que custou sua reputação acadêmica e sua demissão.
O mais importante da primeira parte é como esta se amarrará com a última, que é sobre a produção da Mulher Maravilha. Jill Lepore, numa forma de análise tão cara aos historiadores da literatura, demonstra como as HQ’s da super-heroína são entranhadas da experiência social de Marston e repleta de referências destes anos de formação universitária: a vida em Harvard, o movimento sufragista, o laço da verdade – arma poderosa da Mulher-Maravilha que serve de detector de mentiras –, as referências literárias populares entre os estudantes de Boston da época, como Safo de Wharton e os escritos de Margaret Sanger. Tudo isso será matéria ficcional para o processo de escrita dos quadrinhos da Mulher Maravilha.
A segunda parte tem como título “O círculo familiar”, referência à revista “Family Circle”, periódico estadunidense publicado desde 1932 com ênfase nos assuntos domésticos e familiares. Esta parte tem como assunto justamente a vida doméstica e familiar dos Marston. Nos primeiros capítulos somos apresentados a duas figuras importantes do movimento pela luta do controle de natalidade, as irmãs Margaret Sanger e Ethel Byrne. Estas figuras importantes para o movimento feminista estadunidense eram tia e mãe de Olive Byrne, a outra esposa de William Marston. Entre Olive, Elizabeth e Marston havia um acordo conjugal. Com a carreira acadêmica irrecuperável, William Marston tentava a vida de escritor de pulp fiction e até de psicólogo em Hollywood. Ele que chegou a escrever roteiros para o cinema enquanto estudante, demonstrava cada vez mais interesse em entender o potencial psicológico do cinema e da propaganda.
Já em 1937, com o arranjo conjugal ao que tudo indica funcionando muito bem, Marston continuava a tentar divulgar suas ideias, e agora tornava-se um entusiasta do poder feminino. O psicólogo passou a defender cada vez mais o poder das mulheres, o matriarcado e a superioridade moral feminina baseado em escritos feministas. Naquele ano ocorreu a fundação da DC Comics, e Superman e Batman estrearam em 1938 e 1939, respectivamente. Ao observar como seus filhos consumiam as HQ’s de super-herói, Marston percebeu nelas um meio de divulgação das suas ideias para um público leitor mais amplo, então teve a ideia de criar uma super-heroína.
A terceira parte intitulada “Ilha Paraíso” é sobre a elaboração da Mulher Maravilha, o título se refere à terra das Amazonas, onde, segundo a história de origem da super-heroína, ela nasceu. Marston foi admitido como psicólogo consultor da DC Comics, mas logo foi transferido para o setor de criação ao convencer seu chefe Gaines – criador do Superman – a publicar uma super-heroína. O psicólogo afirmou que realizaria “uma personagem com toda a força do Superman e todo o fascínio de uma boa e bela mulher” (MARSTON apud LEPORE, 2017, p. 232). Segundo ele, havia a intenção de “propaganda psicológica com vistas ao novo tipo de mulher” que na opinião dele “deveria dominar o mundo” (MARSTON apud LEPORE, 2017, p. 236).
A construção narrativa de Lepore tem como objetivo demonstrar que a Mulher Maravilha era uma agitadora social e que convocava greves e boicotes. A historiadora mostra que a imagem da heroína encontrava referências em fotos do movimento sufragista. Além de contrastar os desenhos da Mulher Maravilha e as fotos dos protestos das sufragistas, o indício também se encontra no desenhista das HQs, Harry G. Peter. Ele e sua esposa foram militantes pelo voto feminino e por isso os desenhos da heroína carregam as referências do movimento sufragista.
Mais significativo ainda é a demonstração de que as ideias de Marston enquanto psicólogo estavam presentes em cada quadrinho da Mulher-Maravilha. Além de uma suposta propaganda feminista, as HQ’s serviam como uma espécie de experimento social para o psicólogo experimental frustrado que ele era. A “nova mulher” imaginada por Marston, mesmo prestes a salvar o mundo, estava sempre amarrada, acorrentada ou amordaçada em cenas que possuíam um forte apelo sexual e de bondage 1.
Lepore teve o raro prazer de ter tanto material sobre a vida íntima de seus personagens à disposição. Ela escreveu uma história atrativa com imenso respeito ao casamento de Marston, Holloway e Byrne. De fato, a vida, o amor e o casamento é inefável. Ainda assim, ela demonstrou como estas vidas serviram de matéria ficcional para a Mulher Maravilha, deliberadamente inspirada em Holloway e Byrne. A história secreta da Mulher Maravilha é um livro de História que vale a pena ser lido, com personagens sedutores, um tratamento inigualável com as fontes e uma narrativa que emociona.
Contudo, tenho uma divergência teórica com o argumento de Lepore (2017) de que “o feminismo construiu a Mulher-Maravilha” e de que “a Mulher Maravilha reconstruiu o feminismo”. Concordo com os indícios de que a partir da experiência social de William Marston emergiu a super-heroína. Sobretudo, concordo que daquilo que o autor entende como ideal de mulher, de feminino e de feminismo surgiu a amazona. Entretanto, o que é feminismo? Jill Lepore não investiu em um tratamento teórico cuidadoso, nem mesmo em suas notas sobre o tema. Se aquilo que Marston compreendia sobre feminismo fez nascer a Mulher-Maravilha, torna-se necessário deixar claro qual o movimento feminista a que ele se alinha.
Lendo A história secreta da Mulher-Maravilha, posso tomar a liberdade de parafrasear Bell Hooks e afirmar que “as mulheres a quem [Lepore] se refere são brancas, ainda que ela jamais afirme isso”2. Até mesmo salta aos olhos o conteúdo racista da Mulher Maravilha, que Jill Lepore (2017, p. 267) justifica como fruto do seu tempo histórico e como “racismo difuso” típico dos quadrinhos dos anos 1940, em que se propagava estereótipos de negros, japoneses, mexicanos e judeus. Mais do que isso, a Mulher Maravilha é um produto da hegemonia cultural estadunidense e o próprio Marston foi categórico ao afirmar o papel dela como defensora da democracia liberal e como difusora da ideologia americana, e isto não deixa de ser entranhado de racismo. A despeito do tempo histórico, não é correto dizer que racismo se trata de algo “difuso”, ainda mais numa sociedade como a estadunidense, fundada no escravismo e na segregação racial. Portanto, o racismo é bem nítido e definido na ideologia que as HQs pregavam. Elas são fruto da tensão racial de um país como os Estados Unidos onde vigorava a lei Jim Crow e o apartheid social, e onde se hierarquizavam os imigrantes de acordo com a raça.
O feminismo a que Marston se filiou de alguma forma resvalou no racismo. Controvérsia que encontra base na principal referência feminista de Marston, de Holloway e de Byrne: a tia Margaret Sanger. Esta, militante pelos direitos das mulheres, foi também militante socialista e entendia o controle de natalidade como algo importante para a emancipação da classe trabalhadora. Porém, seu posicionamento foi bastante dúbio e encontrou uma forte aceitação racista em sua defesa da eugenia (DAVIS, 2003, p. 353 – 367). Sanger passou a justificar que muitos filhos eram a causa da pobreza das famílias, ideia que saía de alguns círculos socialistas neomalthusianos. No entanto, ao romper com o Partido Socialista, ela ficou ainda mais sujeita a construir um movimento com propaganda racista. Já por volta de 1919, o potencial eugenista da campanha de Sanger estava estabelecido. Isto é crucial para entender como Marston interpretou Sanger e como Lepore investiga aquilo que o primeiro entendeu da segunda. Enquanto que para Sanger o controle de natalidade e o domínio sobre o próprio corpo não deixava de ter importância para a libertação da mulher, ainda que branca, para Marston, o interesse estava na libertação sexual decorrente do controle de natalidade.
Concordo com a importância do sufragismo para a criação da Mulher Maravilha, pois isto fez parte da experiência social da família Marston. O problema é a construção do elo entre o movimento sufragista de 1910 e o feminismo de 1970. Para provar seu argumento, Jill Lepore recorre a revista Ms, publicação que em sua primeira edição (1972) empregou a imagem da Mulher Maravilha como símbolo do feminismo. Ao que tudo indica a Ms, revista ainda em circulação nos Estado Unidos, é um periódico vinculado ao feminismo liberal. Movimentos sociais realizaram o feminismo dos anos 1960, já a Mulher Maravilha parece ter sido um artifício do mercado como forma de controle sobre os símbolos feministas. Haja vista a escolha de Lynda Carter, Miss Mundo de 1972, para protagonizar a série da super-heroína. Em 1972 houve disputas em torno do concurso de Miss América, suscitado pelo movimento Red Stocking, chamado por Lepore de radical3.
Jill Lepore se alinha à historiografia da segunda onda do feminismo ao defender que o problema do movimento foram as disputas e divergências internas.
No fim dos anos 1970 e nos anos 1980, o movimento feminino travou. Os salários nunca chegaram à paridade; os ganhos sociais e econômicos tiveram retrocesso; as vitórias políticas e jurídicas que pareciam próximas nunca se concretizaram. […] Também foi uma época de divisão entre feministas, em que as radicais atacavam as liberais e as liberais atacavam as radicais em um fenômeno tão amplo que tinha até nome: trashing (LEPORE, 2017, p. 353-354).
O marco do ano de 1982 como declínio do feminismo é amplamente defendido pela conhecida historiografia da segunda onda na Academia estadunidense4. Historiadoras da segunda onda consideram que o período entre 1972 e 1982 foi ideal para a mobilização de massa e que entre 1983 e 1991 houve uma dissipação do movimento por conta das divisões internas. Por outro lado, os anos 1980 podem ser vistos como o momento em que as opressões de classe e raça foram expostas e o feminismo ganhou um movimento de massa multicultural e antirracista5.
Marston pretendeu fazer de sua super-heroína uma propaganda psicológica do feminismo. A Mulher-Maravilha até pode ser símbolo do feminismo hegemônico e liberal. No entanto, sobretudo nos anos 1940, período em que os Estados Unidos receberam tantos imigrantes, a Mulher Maravilha acaba sendo propaganda psicológica da democracia liberal e da cultura estadunidense. Jill Lepore, na verdade, escreveu uma excelente história, não de um elo do feminismo, mas, talvez, de um importante elo da cultura midiática e da hegemonia cultural americana. Marston foi um aficionado pela relação entre mídia e psicologia. Ele escreveu roteiros para o cinema e pulp fictions, chegou a ser psicólogo em Hollywood, aprimorou as propagandas veiculadas nos jornais estadunidenses e, por fim, foi contratado pela DC para elaborar relatórios psicológicos sobre o público leitor de HQ’s. Baseado em suas teorias, ele decidiu criar sua própria super-heroína como um experimento (que deu muito certo!). A cultura midiática fez a Mulher Maravilha e ela refez, e ainda refaz, a cultura midiática americana. Haja vista as recentes recuperações feitas pelo cinema da Mulher Maravilha e de outras superheroínas6. Sem dúvida, a pesquisa de Jill Lepore, apresentada em livro nos Estados Unidos em 2015, também faz parte do contexto de debates feministas dos últimos anos e da forma como a mídia hollywoodiana tem controlado símbolos passíveis de incorporação identitária por meio do cinema.
Notas
1 Sobre a Mulher-Maravilha e bondage, ver: BERLATSKY, 2017.
2 “Através da história estadunidense, o imperialismo racial branco tem apoiado o costume de acadêmicos de usar a palavra “mulheres”, mesmo quando se referem somente à experiência de mulheres brancas. Ainda que tal costume, seja ele consciente ou inconsciente, perpetue o racismo por negar a existência de mulheres não brancas nos Estados Unidos. Ele também perpetua sexismo à medida que pressupõe ser a sexualidade o único traço de definição da mulher branca e nega a identidade racial delas. Mulheres brancas e liberacionistas não desafiaram essa prática sexista e racista; elas a continuaram” (HOOKS, 2019, p. 28).
3 Sobre como a década de 1970 reviveu a Mulher Maravilha, ver: HANLEY, 2014.
4 Ver: ECHOLS, 1989; TOBIAS, 1998. RYAN, 1992.
5 Ver: DAVIS, 2016; HOOKS, 2019; SMITH, 1978; THOMPSON, 2002.
6 Sobre identitarismo ver: HAIDER, 2019; MAITRA, 2020;
Referências
BERLATSKY, Noah. Wonder Woman: bondage and feminism in the Marston/ Peter Comics, 1941-1948. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2017.
DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016
. ______. “Racism, Birth Control and Reproductive Rights”. In: LEWIS, Reina, and MILLS, Sara, editors. Feminist Postcolonial Theory: A Reader. Edinburgh University Press, 2003. pp. 353 – 367.
ECHOLS, Alice. Daring To Be Bad: Radical Feminism in America 1967-1975. Univ. Of Minnesota Press, 1989.
HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. Tradução: Léo Vinícius Liberato. São Paulo: Veneta, 2019.
HANLEI, Tim. Wonder Woman Unbound: The Curious History of the World’s Most Famous Heroine. Chicago: Chicago Review Press, 2014.
HOOKS, Bell. E eu não sou uma mulher? São Paulo: Rosa dos Tempos, 2019.
LEPORE, Jill. A história secreta da Mulher-Maravilha. Tradução: Érico Assis. Rio de Janeiro: BestSeller, 2017.
MAITRA, Ani. Identity, Mediation, and the Cunning of Capital. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 2020.
RYAN, Barbara. Feminism and the Women’s Movement: Dynamics of Change in Social Movement Ideology, and Activism. Psychology Press, 1992.
SANGER, Margaret, “Birth Control and Racial Betterment” Birth Control Review. Feb. 1919. Library of Congress Microfilm. Acessado em 04 ago. 2020.
SMITH, Barbara. Toward a Black Feminist Criticism. The Radical Teacher, March, 1978, No. 7 (March, 1978), pp. 20-27.
THOMPSON, Becky. Multiracial Feminism: Recasting the Chronology of Second Wave Feminism. Feminist Studies, 28(2), 336, 2002.
TOBIAS, Sheila. Faces of Feminism: An Activist’s Reflections on the Women’s Movement, Westview Press, 1998.
Resenhista
Larissa Alves Mundim – doutoranda em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). E-mail: mundim.lari@gmail.com
Referências desta Resenha
LEPORE, Jill. A história secreta da Mulher-Maravilha. Trad. Érico Assis. Rio de Janeiro: BestSeller, 2017. Resenha de: MUNDIM, Larissa Alves. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.10, n.1, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]