A História (quase) secreta: sexualidade infanto-juvenil e crimes sexuais na cidade de Salvador (1940- 1970) | Andréa da Rocha Rodrigues Barbosa

Em que pese o recente crescimento de uma perseguição desenfreada aos estudos sobre mulheres, relações de gênero, sexualidade, etc., é com muito entusiasmo que nós historiadoras/res recebemos o livro A História (quase) secreta, fruto originalmente de uma tese de doutoramento junto ao programa em História Social da Universidade Federal da Bahia e que foi defendida há mais de uma década, em 2007. O livro que ora resenhamos foi apresentado pelo historiador Renato Venâncio (UFMG), especialista em história da infância. Além disso, teve o prefácio assinado pela antropóloga feminista Cecília Sardenberg (UFBA), uma das fundadoras do Neim – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a mulher e gênero, da Bahia.

Atualmente, Andréa Barbosa é professora titular da Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia, dedicando-se, desde o início de sua carreira, aos estudos históricos sobre a infância pobre, mulheres, relações de gênero, corpo e sexualidade infanto-juvenil. É autora do já clássico A Infância Esquecida, Salvador, 1900-1940, 2 assim como, mais recentemente, organizou uma coletânea intitulada Revisitando Clio: estudos sobre mulheres e as relações de gênero na Bahia3 que, além de seu próprio trabalho, reuniu pesquisas feitas por outras historiadoras da área. Além disso, é coordenadora de um grupo de pesquisa e extensão, criado recentemente juntamente a um grupo de jovens historiadores, intitulado Nina Simone, com o objetivo de propiciar debates e pesquisas históricas e áreas afins sobre as relações de gênero, sexualidade etc.

Em A história (quase) secreta, Barbosa nos apresenta um estudo histórico sistemático, influenciado pelos estudos de gênero, teoria feminista, assim como sociologia e antropologia contemporâneas. Trata-se de uma investigação que versa sobre as práticas, experiências e os significados construídos a respeito da sexualidade infanto-juvenil entre as camadas populares soteropolitana compostas em sua maioria por afrodescendentes. Da mesma forma, o livro recupera os significados que as fases da vida – infância e adolescência – foram adquirindo no marco temporal 1940 a 1970, caracterizado por mudanças urbanísticas, culturais (contracultura, hippies) e políticas (feminismo, ditadura militar). Os médicos, os juristas e a mídia baiana foram protagonistas neste cenário, pois, seus discursos incidiram sobre a vida dos segmentos subalternizados, contudo, tais processos não foram vivenciados sem conflitos, apropriações e formas de negociação entre os grupos sociais. O livro está pautado a partir de fontes variadas: processos-crimes de sedução, rapto, estupro, atentado ao pudor, corrupção de menores, códigos penais, guia turístico, jornais, revistas, literatura, iconografia e até mesmo revistas pornográficas.

O capítulo I nos apresenta o cenário que foi palco das histórias que foram narradas ao decorrer do livro. Em uma abordagem que combina as escalas temporais/espaciais micro e macro, Barbosa demonstra como a cidade do Salvador, particularmente, e o Brasil, de forma geral, passaram por transformações urbanísticas, culturais, socioeconômicas e políticas. A representação de Salvador enquanto uma cidade atrasada e de valores tradicionais, por exemplo, foi sendo modificada, paulatinamente, com a introdução de modificações urbanísticas com vistas a inserção da cidade na rota turística nacional. Processo que, a partir do final da década de 1950, foi, ainda que timidamente, juntamente com a inserção da televisão, alterando comportamentos e sociabilidades entre os soteropolitanos. As partes nomeadas de anos dourados e anos rebeldes exploram a difusão de ideias feministas, bem como aspectos das estética e valores hippies que, sobretudo a partir dos idos finais da década de 1960, ganharam visibilidade no Ocidente e que foram, constantemente, criticados pelos articulistas baianos, imbuídos de valores morais fortemente católicos, que temiam a influência dessas práticas políticas e culturais que, na visão deles, representavam a dissolução das formas tradicionais de feminilidades e masculinidades.

O Capítulo II se desdobra em duas partes nomeadas A Idade Dourada e De mulher para mulher e investiga, de forma geral, os significados de ser criança e adolescente na cidade de Salvador que foram veículos a partir da literatura de aconselhamento sexual e os jornais baianos, Diário de Notícias, A Tarde e Diário da Bahia. Barbosa descreve que os articulistas, informados a partir da noção freudiana de complexo de Édipo, definiam crianças e mulheres como sendo suscetíveis aos domínios masculino e adultos. Além disso, ideias naturalizantes sobre os elementos demarcadores da adolescência, pautados principalmente no desenvolvimento biológico, aparecimento de certas características sexuais e a possibilidade de reprodução, foram veiculadas entre as elites letradas soteropolitana. Tais discursos possuíam, portanto, duas funções principais e relacionadas entre si, instruir corpos e impor comportamentos para cada fase da vida. A literatura ficcional de Jorge Amado, também analisada neste capítulo, estava em diálogo com o mundo social em que foi escrita, pois como Barbosa evidencia, concepções biologizantes para estabelecer uma compreensão sobre o mundo infanto-juvenil marcaram o pensamento amadiano.

No capítulo III, subdivido em O pensamento jurídico sobre os crimes contra a liberdade sexual e a noção de honra feminina e Tudo pela Honra, Barbosa argumenta como os conceitos jurídicos elaborados em torno das relações de gênero, arranjos familiares e comportamento sexual honesto foram motivo de disputas entre os próprios operadores da lei. A questão de quem poderia ser considerada uma mulher honesta sugere que as transformações nas relações de gênero e mudanças comportamentais exigiam que a norma jurídica buscasse formas de normatizar e enquadrar práticas consideradas desviantes. Este ponto não é uma grande novidade, pois imensa produção historiográfica desde então têm demonstrado as relações entre a normatividade da lei e o descompasso das vivências.4 No entanto, Barbosa traz um elemento que não foi posto por tal historiografia, a autora argumenta que, apesar das profundas mudanças culturais já referidas ao longo do livro, concepções freudianas sobre capacidade quase inata de mulheres e crianças em exercerem provocação sexual nos homens adultos estiveram presentes entre os operadores da justiça.

O capítulo IV, subdivido em Os crimes sexuais: dramas cotidianos na cidade do Salvador e A erotização do corpo infantil, é, a meu ver, um dos pontos centrais de todo o livro. Recorrendo a uma narrativa densa e interpretativa, com influência de certas abordagens antropológicas, 5 minunciosamente pautada na análise de processos de crimes sexuais, jornais e uma revista pornográfica, Barbosa investiga a naturalização do crime de estupro inserindo-a num quadro maior de uma suposta tolerância à violência de forma geral e sexual, em particular, por parte dos agressores e até mesmo das vítimas. A essa altura, é notável a influência do historiador cultural francês George Vigarello,6 só que numa abordagem mais afinada a história social do que cultural propriamente, visto que Barbosa considera as relações de gênero como chave analítica fundamental para descrever e explicar os crimes sexuais.

Barbosa fundamenta seu argumento demonstrando que em um universo de 202 processos-crime, apenas um pouco mais que 20% foram de estupro, a autora explica a dificuldades do meio jurídico em definir a natureza deste crime em detrimento da sedução, pois faltava aos juristas uma definição precisa do que seria ato libidinoso que acompanhasse às experiências cotidianas femininas. Além do mais, questões de classe combinadas às de gênero aparecem aí, pois quando ocupavam lugares hierarquicamente inferiores em relação aos seus agressores, no caso de empregadas domésticas violentadas por seus patrões, as vítimas tendiam a ter maiores dificuldades ao recorrer à justiça. Isto ficou perceptível nas análises da autora que caracterizou a maior parte das vítimas de estupro, 96,04%, como sendo pobres e moradoras de bairros populares soteropolitanos, compostos por chácaras e afastados do centro da cidade, o que talvez pudesse facilitar a impunidade e a fuga dos acusados.

Através de processos-crime de atento ao pudor, corrupção de menores e histórias pornográficas – de autoria do Carlos Zéfiro – envolvendo fantasias de sexo entre adultos e crianças, a autora constrói o argumento de que, ainda que tenha sido criticado pelos jornalistas e condenado juridicamente, o desejo sexual masculino pelas crianças estava, fortemente, sedimentado no universo erótico soteropolitano. Além disso, mais um dado complexifica esta discussão sobre desejo infanto-juvenil, visto que as vítimas encontradas nos processos pesquisados por Barbosa possuíam entre 15 a 19 anos, faixa etária mais recorrente, logo em seguida 12 a 15 anos, também bastante frequente, o que nos ajuda a compreender o argumento de uma precocidade na iniciação sexual no período estudado.

O último capítulo se chama Práticas e representações relativas ao crime de sedução e busca compreender as várias fábulas que foram criadas pelos atores sociais envolvidos nos casos de sedução que foram denunciados à justiça soteropolitana. As versões registradas nos processoscrime de sedução foram construídas com base nos ideais normativos de honestidade sexual e concepções hierarquizantes de gênero, mas, nem por isso, impediram os agenciamentos femininos expressos nos variados significados elaborados sobre virgindade, por exemplo. Barbosa demonstra que, a partir da década de 1960, mesmo com as transformações culturais, ainda era bastante frequente que as seduzidas e suas famílias recorressem à justiça para resolverem suas contendas sexo-afetivas. O caso soteropolitano, portanto, aponta uma situação bem diferente daquelas descritas pelos trabalhos já clássicos para o eixo sudeste, como o da historiadora Martha Abreu Esteves, que encontrou, conforme avançava o século XX, uma diminuição nos crimes de defloramento no Rio de Janeiro.7

A História (quase) secreta possuí uma capa muito marcante, uma versão colorida e modificada oriunda da história de Lia, criança que é violada sexualmente por um adulto, escrita por Carlos Zéfiro, uma das fontes exploradas pela autora. Apesar de ser um estudo cuidadoso, em diálogo com fontes documentais e bibliografia especializadas, observa-se a presença muito marcante de um ponto vista heterossexualizador. Esclarecemos que a palavra heterossexualidade, embora conhecida desde o final do século XIX como demonstrou o historiador Jonathan Ned Katz,8 talvez nem fosse tão disseminada entre os populares baianos no período que cobre o livro, a esse respeito, contudo, faltam pesquisas mais específicas. Mas, ao estudar a sexualidade direcionando o olhar para o enquadramento homem/mulher, Barbosa perdeu de vista a complexidade e pluralidade de identidades e práticas que escapavam/relativizavam o binarismo supostamente fixo e expresso pela diferença sexual. Isto ficou perceptível em uma notícia de 1961, veiculada pelo Diário de notícia, em que aparece um grupo de meninas prostituídas e “travestidos” em uma barraca em Salvador, mas que não mereceu aprofundamentos pela autora no que se refere as identidades de gênero e sexualidades que escapassem da lógica heterossexual.

Estas pequenas observações críticas, porém, não desmerecem a importância da obra para o conjunto da historiografia brasileira. Trata-se de um estudo inédito, se consideramos que em nossa historiografia são escassos os trabalhos que combinem a sexualidade e as questões de infância e juventude. Além disso, o recurso ao cruzamento de fontes variadas inclusive algumas pouco utilizadas pelos historiadores como é o caso das revistas pornográfica, o que permite ao leitor vislumbrar o conjunto polifônico de discursos e práticas que foram elaboradas sobre a sexualidade infanto-juvenil. Da mesma forma, as conclusões de Barbosa evidenciam que “era muito comum que as meninas pertencentes aos setores populares iniciassem cedo a vida sexual e quase sempre com homens mais velhos”. 9O que desmitifica, portanto, a ideia do senso comum de que as gerações antepassadas não experimentavam formas inusitadas de vivenciar a sexualidade, e, igualmente, sinaliza para práticas sexuais que, cotidianamente, flexibilizavam e ressignificavam os ideais de virgindade e honestidade sexual dominantes. Sendo assim, A História (quase) secreta insere novas interpretações à historiografia, através da releitura de temas e fontes, afastando-se de interpretações estereotipadas e totalizantes sobre o nosso passado. Do mesmo modo, o livro analisado em tela nos possibilita deslocarmos o olhar para a produção historiográfica que tem sido realizada no âmbito de programas de pós-graduação localizados nas regiões Norte e Nordeste do país.

Notas

2 RODRIGUES, Andréa da Rocha. A Infância esquecida: Salvador,1900-1940. 1. ed. Salvador: EDUFBA,2003, p. 260.

3 BARREIROS, Márcia Maria da Silva, RODRIGUES, Andréa da Rocha. (Orgs.). Revisitando Clio: estudos sobre mulheres e as relações de gênero na Bahia. 1. ed. Feira de Santana: UEFS Editora, 2014, p. 226.

4 Veja-se para o caso do Rio de Janeiro, ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1989; e CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000. Já para a Bahia, consultar VASCONCELOS, Tânia Nara Pereira. “Sertanejas defloradas” e “Don Juans” julgados: relações sexoafetivas em processos de crime contra os costumes, Jacobina – BA (1942-1959). 2018. Tese de Doutorado (Doutorado em História) – Instituto de História, Niterói, 2018. Enquanto para Belém, MESQUITA, Elainne Cristina da Silva. Práticas amorosas de mulheres das camadas populares de Belém (1888/1890). 2013. Dissertação de mestrado (Mestrado em estudos interdisciplinares sobre mulheres, gênero e feminismo) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2013.

5 Refiro-me a abordagem inspirada nas propostas do antropólogo Clifford Geertz, um dos expoentes do que se convencionou a chamar de Antropologia interpretativa, que é desenvolvida através da descrição densa de um certo fenômeno cultural tomado enquanto texto a ser lido e interpretado. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: TLC, 1989.

6 VIGARELLO, Georges. História do Estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Tradução: Lucy Magalhães. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

7 Especificamente em ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1989.

8 KATZ, Jonathan Ned. A invenção da Heterossexualidade. Tradução Clara Fernandes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 261.

9 BARBOSA, Andréa da Rocha Rodrigues. A História (quase) secreta: sexualidade infanto-juvenil e crimes sexuais na cidade de Salvador (1940-1970). 1. ed. Salvador: Sagga, 2019. v. 1, p. 278.

Referências

BARREIROS, Márcia Maria da Silva, RODRIGUES, Andréa da Rocha. (Orgs.). Revistando Clio: estudos sobre mulheres e as relações de gênero na Bahia. 1. ed. Feira de Santana: UEFS Editora, 2014.

CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000.

ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1989.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: TLC, 1989.

KATZ, Jonathan Ned. A invenção da Heterossexualidade. Tradução Clara Fernandes. Rio de Janeiro: Ediouro,1996.

MESQUITA, Elainne Cristina da Silva. Práticas amorosas de mulheres das camadas populares de Belém (1888/1890). 2013. Dissertação de mestrado (Mestrado em estudos interdisciplinares sobre mulheres, gênero e feminismo) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2013.

RODRIGUES, Andréa da Rocha. A Infância esquecida: Salvador, 1900-1940. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2003.

VASCONCELOS, Tânia Nara Pereira. “Sertanejas defloradas” e “Don Juans” julgados: relações sexoafetivas em processos de crime contra os costumes, Jacobina – BA (1942-1959). 2018. Tese de Doutorado (Doutorado em História) – Instituto de História, Niterói, 2018.

VIGARELLO, Georges. História do Estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Tradução: Lucy Magalhães. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.


Resenhista

Alessandro Cerqueira Bastos – Bolsista CNPq, mestrando no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro da linha de pesquisa Cultura e Sociedade. E-mail: cerqueirasandro@hotmail.com  http://lattes.cnpq.br/5283145576441508


Referências desta Resenha

BARBOSA, Andréa da Rocha Rodrigues. A História (quase) secreta: sexualidade infanto-juvenil e crimes sexuais na cidade de Salvador (1940- 1970). Salvador: Sagga, 2019. Resenha de: BASTOS, Alessandro Cerqueira. Histórias de dor e prazer: relações de gênero, classes populares e sexualidade juvenil na Bahia. Revista Hydra. São Paulo, v.4, n.7, p. 380- 388, dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

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