Qual é a relação entre a ciência histórica e a revolução digital? Gestada e concebida no mundo do impresso, essa disciplina permaneceria impassível diante da emergência do mundo digital e da textualidade eletrônica? Quais são os seus efeitos no interior do campo historiográfico? Até que ponto a transformação radical (e recente) do suporte de existência do escrito produz impactos no trabalho do historiador, no trabalho de produção do saber histórico? Quais seriam os efeitos metodológicos e teóricos da digitalização da cultura – tornada possível por essa nova forma de escrita, a escrita digital2 – no campo historiográfico? Que mutações a entrada na era digital e da textualidade eletrônica impõem à história? Qual a relação entre a escrita das ciências (no sentido de uma poética do saber) e a escrita eletrônica? A emergência do código da informática não transforma o que se definia como documento, o que se compreendia por arquivo e o modo como se alimentava a relação entre história e memória? Assim como falamos na existência de uma memória, também podemos falar em esquecimento digital? Qual é o seu estatuto? Ou será que o processo de epistemologização da história no século XIX teria assegurado a essa disciplina conquistas definitivas e impassíveis à ação do tempo? Ou a relação entre a digitalização da cultura e essa disciplina se caracterizaria apenas por disponibilizar um mero recurso formal (o computador) ao trabalho de escrita (o editor de textos) e de elaboração da história (auxiliando no tratamento de dados quantitativos) e facilitar o acesso e a consulta de acervos remotos? Como esse acontecimento, a revolução digital, acontece na ordem do discurso histórico?
São essas e outras questões que a leitura do último ensaio publicado no Brasil do eminente historiador francês, Roger Chartier, colocam e sugerem à reflexão. Não é surpreendente que elas partam de um historiador que não é diretamente oriundo das fileiras dos militantes da teoria da história, mas sim da história da cultura escrita. É que a singularidade da démarche chartieriana no domínio desta história se afirmou em boa parte por meio do acento na análise das modalidades de relação entre o escritor/leitor e os textos. Donde a importância em suas reflexões da noção de suporte e da análise das estratégias de publicação e edição dos textos. Ora, esse conjunto de questões que abre nossa recensão só poderia advir de um trabalhador da história cuja interrogação sobre a leitura e a interpretação das obras não partisse de uma definição puramente semântica dos textos. Mas não apenas: parece-nos que a noção de atualidade desempenha um papel decisivo no trabalho do autor d’A ordem dos livros. Antes de sublinharmos este aspecto do seu pensamento, é preciso apresentar resumidamente o que é que está em jogo em seu ensaio.
O texto parte de uma genealogia do que se diagnosticou, nos anos de 1980 e 1990, como crise da história. A partir do momento em que se evidenciou a dimensão retórica e narrativa da história, nos anos 70, colocou-se o problema do “regime específico do conhecimento” e da verdade na história. As discussões sobre a não-oposição entre prova e retórica, sobre as “operações” próprias ao trabalho do historiador, sobre as “regras e controles” constituintes de um regime de verdade da história “definido por critérios de prova dotados de uma validade universal” (p. 16) inserem-se aí e, de certa forma, “acalmaram os historiadores, cujas certezas” haviam sido abaladas pela emergência dessa evidência3.
Para Chartier, no final dos anos 90, entrevê-se um novo problema. A questão recai, então, sobre a própria “instituição histórica”, sobre os “efeitos na prática dos historiadores do lugar social onde se exerce sua atividade” (p. 17). Trata-se da questão de Michel de Certeau sobre o “lugar social” da produção do saber histórico. A interdição e a liberdade na ordem do discurso não são exteriores a ele. Como se sabe, Michel de Certeau articulou uma análise das regras de formação dos discursos (expostas n’Arqueologia do Saber) com o que denominou de “lugar social”: os limites do que é possível e do que é impossível dizer no interior de uma determinada disciplina, em determinado momento, articulam-se com os lugares que essa disciplina ocupa no campo social. Esta questão permite interrogar não apenas sociologicamente a economia e as regras de funcionamento do campo historiográfico, mas também repensar a história do saber da história a partir de uma análise destas articulações. De um lado, o reconhecimento de que a história é uma dentre outras modalidades de relação com o passado coloca o problema das diferenças entre a história e a memória, tal como as descreve Paul Ricoeur; de outro, o reconhecimento de que as obras de ficção “conferem uma presença ao passado”, sobretudo, em nossa época, marcada pela “tentação de criar histórias imaginadas e imaginárias” (p. 31), exige que se distinga com clareza o que parece evidente de antemão: os limites que distinguem a história de outras modalidades de relação com o passado. Para Chartier, estas reflexões participam “do longo processo de emancipação da história em relação à memória e em relação à fábula” (p. 31).
Nos últimos anos, assiste-se a uma rica discussão e ao esforço agrimensório de um conjunto de trabalhos devotados a demarcar o campo da história cultural. De onde partir para fazê-lo? Deve-se partir dos objetos que seriam próprios a ele, tal como o livro, por exemplo? Vê-se claramente o problema desta opção: onde estariam, então, os limites entre uma história literária ou da educação e uma história cultural? Deve-se, então, partir do princípio antropológico de que toda história é cultural na medida em que interroga a produção de significados? Não ressoaria, neste caso, a antiga sentença do autor de Como se escreve a história: “se tudo é histórico, logo a história não existe”? Onde reside a singularidade deste domínio para este trabalhador diretamente responsável pela sua configuração?
Para Chartier, o mais pertinente seria partir de algumas questões comuns às diferentes heranças e tradições da história cultural. A primeira delas se relaciona às diferentes compreensões da articulação entre “as obras singulares e as representações comuns”: “o processo pelo qual os leitores, os espectadores ou os ouvintes dão sentido aos textos (ou às imagens) dos quais se apropriam” (p. 35-36). Inúmeras respostas foram dadas a essa questão em reação ao estrito formalismo por meio do qual o New Criticism pensou esta articulação, segundo a qual a produção de significado decorre de uma relação direta entre o leitor e a obra. Daí decorre a estética da recepção de Jauss e a fenomenologia de Iser. Para Chartier, a singularidade de uma nova história cultural pode ser pensada a partir do modo como ela se inseriu neste contexto. Contra o estruturalismo e a semiologia, ela insistiu na materialidade das formas em que os textos estão inscritos e no papel que elas desempenham na construção do seu sentido. Contra a idéia de um leitor universal e contra a noção de recepção, ela insistiu nas circunstâncias e modalidades concretas do ato de ler. Donde a importância em recordar que escritores não escrevem livros, mas sim textos; quer dizer, as estratégias de edição, de impressão e de produção material das obras atuam na relação entre o leitor e texto; daí a importância na análise “das modalidades de publicação, disseminação e apropriação dos textos” inspirada na sociologia de D. F. Mckenzie4 , na consideração da historicidade dos leitores e na materialidade dos textos (“nenhum texto existe fora das materialidades que lhe dão para ler e escutar” [p. 41]).
Os limites de “uma nova história cultural” estariam, assim, relacionados a um desafio: “compreender como as apropriações concretas e as invenções dos leitores (ou dos espectadores) dependem, em seu conjunto, dos efeitos de sentido para os quais apontam as próprias obras, dos usos e significados impostos pelas formas de sua publicação e circulação e das concorrências e expectativas que regem a relação que cada comunidade mantém com a cultura escrita” (p. 43). Esta definição não apenas rechaça a rígida e tradicional clivagem entre cultura erudita e cultura popular, como coloca no centro de sua reflexão o problema da “articulação entre os discursos e as práticas” (p. 47). Essa relação, em função do linguistic turn, tornou-se extremamente problemática nos últimos anos. A distinção foucaultiana entre práticas discursivas e práticas não-discursivas (ou aquela entre sentido prático e razão escolástica de Bourdieu) permite distinguir os discursos e as práticas, diferenciar a lógica das práticas das estratégias que governam a produção de enunciados e neutralizar a asserção de que tudo é texto. É justamente aqui que, para Chartier, revela-se a importância da noção de representação para uma nova história cultural.
Para uma história dos conceitos, seria um prato cheio interrogar a história do conceito de representação. Nunca talvez um conceito tenha se difundido e sido empregado tão larga e rapidamente como o conceito de representação na historiografia contemporânea – e não apenas no Brasil. Seria interessante compreender como ele foi injetado de um novo vigor no interior da nova história cultural depois de ter sido objeto de uma crítica radical, nos 60, por parte de filósofos como Michel Foucault e Gilles Deleuze. Vemos que em Chartier, esta noção não deve maisser pensada no interior da velha oposição entre real e imaginário. Para Chartier, é na força de seus efeitos sociais, de como elas, as representações, atuam socialmente inscrevendo-se nas estruturas cognitivas e objetivas do campo social (não é preciso insistir na inspiração na sociologia de Bourdieu desta noção de representação), que ela deve ser pensada5.
Nas últimas três partes do ensaio, Chartier se volta a questões historiográficas de nossa atualidade. Primeiramente, a um questionamento crítico sobre a exortação recente ao que se chamou de global history. Concretamente, o que viria a ser uma tal história global? Sabe-se o que ela rejeita, mas muito pouco sobre o que ela afirma. “A volta de uma história global não pode ser separada da reflexão, afirma Chartier, sobre as variações de escala em história” (p. 54), no sentido que lhe dá Ricoeur.
Depois, a uma reflexão sobre os efeitos da revolução digital na produção e na recepção do discurso histórico (as quais suscitaram as linhas que abrem este texto). A textualidade eletrônica transforma direta, mas sub-repticiamente, aquilo que se compreende por escrever a história. Se concordarmos com Jacques Rancière, podemos até mesmo levar mais adiante o problema aqui esboçado por Chartier. Para Rancière, a escrita da história, ao contrário da escrita das ciências, é constituinte do processo de produção do saber. A escrita da história não diz respeito à simples comunicação dos resultados da ciência: ela faz parte e é indissociável da própria produção do saber(eis porque ela, a história, não se reduz a um problema de metodologia ou de epistemologia). Daí a importância de se considerar a emergência da textualidade eletrônica na atualidade da ciência histórica. Para Chartier, de imediato, a textualidade eletrônica abre um campo ainda pouco explorado pela escrita da história. O texto de Robert Darnton sobre as canções subversivas em Paris no século XVIII, publicado no formato impresso e eletrônico (no qual o leitor tem acesso aos relatórios dos inspetores de polícia, aos textos das canções, a uma cartografia dinâmica dos bares parisienses, ao registro sonoro das canções) dá provas disso. A história se torna mais crítica e mais engajada em relação ao passado.
Por outro lado, a textualidade eletrônica afeta diretamente a recepção do discurso histórico. Os três dispositivos clássicos de prova (citação, referência e nota) do discurso histórico se assentavam em um princípio: o leitor confiava no trabalho do historiador que fazia referência a um universo de textos impressos não acessíveis. A partir do momento em que o leitor pode consultar a bibliografia especializada, os acervos digitalizados e confrontar estes documentos com os argumentos do historiador, o princípio em que se assentava a recepção do discurso histórico, desde o século XIX, vê-se diretamente afetado. “Aqui, escreve Chartier, há uma mutação epistemológica fundamental que transforma profundamente as técnicas da prova e as modalidades de construção e validação dos discursos do saber” (p. 60-61).
Finalmente, no texto que fecha o ensaio, “Os tempos da história”, Chartier define sua maneira de compreender a singularidade da história em relação às outras ciências sociais, remetendo essa questão diretamente ao título do ensaio, A história ou a leitura do tempo. Ele o faz retomando uma idéia de Fernand Braudel exposta em seu artigo “História e Sociologia”: a singularidade da história em relação às ciências humanas reside em “sua capacidade de distinguir e articular os diferentes tempos que se acham superpostos em cada momento histórico” (p. 65). A história não corresponde à sucessão de épocas no tempo; cada época é constituída por inúmeros tempos – no plural e não no singular como se lê no título do ensaio de Chartier. É a idéia braudeliana da coexistência das três durações que aqui se observa: a estrutura, a conjuntura e o acontecimento. Contudo, à fidelidade à idéia braudeliana soma-se uma inversão importante: não se trata mais de conceber a história a partir da hierarquia de tempos encaixotados que pressupunha aquela do autor de O Mediterrâneo. A singularidade da história reside nessa capacidade de distinguir e articular as diferentes temporalidades que se imbricam em cada momento histórico, mas estas temporalidades não são centradas ou decorrentes de uma temporalidade determinante. Essa inversão introduzida por Chartier na concepção braudeliana introduz duas questões importantes para historiografia contemporânea: de um lado, problematiza a concepção segundo a qual as temporalidades são simples “medidas do mundo e dos homens”, “externas aos indivíduos” – tal como até hoje se ensina as escolas brasileiras; de outro, repensa a noção desacontecimentalizada de tempo e de história dos Annales, reintroduzindo no cerne dessa concepção de história o conceito de acontecimento (não mais entendido como os fatos ou as decisões políticas conscientes, mas como as descontinuidades e rupturas).
Não se trata de um retorno a uma história factual dos acontecimentos – tal como se ouve por aí -, porque não se trata da mesma noção de acontecimento. Trata-se, ao mesmo tempo, de algo mais simples e menos evidente. De uma nova relação com a filosofia: eis o que aqui está em jogo. O desenvolvimento da escola dos Annales, na França, foi ao mesmo tempo contemporânea e paralela ao desenvolvimento de uma filosofia histórica e de uma história filosófica das ciências. Poderíamos colocar lado-a-lado Bloch e Bachelard, Febvre e Koyré, Braudel e Canguilhem. De um lado, uma história desacontecimentalizada dos fenômenos de mentalidade e dos fatos de civilização material; de outro, uma história acontecimentalizada da descontinuidade do saber e das revoluções científicas. A partir da década de 1960, se observarmos ainda do lado da filosofia, reconheceremos uma profunda preocupação com o conceito de acontecimento em Foucault e Deleuze e, mais recentemente, em Rancière e Delaporte6. O conceito de acontecimento foi, no interior de certa linhagem da filosofia francesa, de fundamental importância ao longo do século XX. A preocupação que encontramos em Chartier com as rupturas e as descontinuidades pode ser vista a partir de uma nova relação entre a história e a filosofia. Mas não apenas: o diálogo estreito de Chartier com o trabalho de Foucault (mas também com o de Ricoeur, malgrado o afastamento do fenomenólogo francês de uma afirmação da descontinuidade do saber), em particular, e com a filosofia, em geral, insere-se justamente aqui: é aí que se encontra uma nova maneira de conceber as temporalidades históricas7.
Não há dúvidas de que foi a história serial que abriu concretamente a possibilidade de uma múltipla temporalização da história – pelo menos a história serial tal como ela foi filosoficamente concebida na “Introdução” d’Arqueologia do saber. Encontra-se aí a proveniência da idéia chartieriana de que a história é a leitura dos tempos ou de que a singularidade da história reside na sua capacidade de distinguir e articular as diferentes temporalidades que se sobrepõem em cada momento histórico. Quando Chartier escreve na conclusão de seu ensaio: a “arquitetura braudeliana das durações encaixotadas seguramente merece ser repensada. O fato é que a leitura das diferentes temporalidades que fazem que o presente seja o que é, herança e ruptura, invenção e inércia ao mesmo tempo, continua sendo a tarefa singular dos historiadores e sua responsabilidade principal para com seus contemporâneos” (p. 68), é difícil não ouvir o eco daquela “Introdução”. O problema da leitura ou das relações entre as diferentes séries ou temporalidades era justamente o que Foucault descrevia como a nova questão daquilo que então propunha chamar de uma história geral – a qual apagava o tema e a possibilidade de uma história global, quer dizer, de um encaixotamento das durações a partir de um princípio de coesão (a civilização material, por exemplo). Se concordarmos com Chartier, deveremos entrever aí a atualidade da ciência.
Não acreditamos que a importância da atualidade em Chartier tenha sido até hoje sublinhada. À título de conclusão, gostaríamos de indicá-la. A preocupação com a atualidade da ciência é chave em Gaston Bachelard e no procedimento metodológico que ele denomina de recorrência. O historiador deve conhecer profundamente a atualidade da ciência cuja história escreve. Vemos claramente essa preocupação em Chartier quando ele relaciona a revolução digital e os seus efeitos na produção e na recepção atual do discurso histórico. Essa preocupação vemos também no Chartier historiador das trajetórias do escrito. A diferença, nesse caso, é que não se trata de uma história da ciência ou do saber, mas das práticas de escrita e leitura. A importância de nossa atualidade para a história destas práticas deve-se ao fato de que ela se caracteriza por um período de revolução. A noção bachelardiana de atualidade instrui o historiador destas práticas; e a noção koyreniana de revolução serve para conceituar essa atualidade. Chartier se instrui nessa atualidade para pensar aquelas trajetórias, mas se vale da recorrência tal como ela foi utilizada e redefinida por Koyré e Foucault. O espaço de uma recensão não nos permite desenvolver o argumento de como a recorrência é importante nas análises históricas de Chartier. Destaquemos apenas que a presença da atualidade no traço de sua escrita é aquela de um pensamento histórico atravessado pela novidade do atual, instruído pela juventude daquilo que é intempestivo nas novas práticas; alimentado pela vivacidade e pela instrutiva leveza da novidade das práticas atuais. Para retomar em outro contexto a feliz expressão cunhada por meu amigo Fábio Ferreira de Almeida, trata-se de um pensamento histórico que se distingue por uma Wille zur Gegenwart 8. Em Chartier, o pensamento crítico não se transformou em pensamento de luto, na terrível nênia que atravessa parte da historiografia contemporânea; nossa atualidade é diferença em relação ao passado e não a imagem desfigurada de uma história a ser saudosamente rememorada. É aí que reside a importância de Roger Chartier para a historiografia contemporânea.
Notas
1 A arte da tradução é talvez o ofício mais difícil do mundo escrito das humanidades. No mundo dos conceitos nem sempre o socorro à revisão gramatical é suficiente e quase sempre a tradução da tradução leva a becos sem saída e a armadilhas. Embora não haja o que objetar à tradução desse livro, cabem algumas considerações. No original, em francês, Chartier se refere ao linguistic turn em inglês. No Brasil, quando não se mantém o original em inglês, traduz-se essa sentença pela expressão, cujo emprego já se tornou usual, “virada lingüística”. O uso do espanholismo “giro lingüístico” (p. 13; 47) soa bastante heteróclito. Nos últimos anos, no Brasil, vem se tornando comum traduzir o substantivo écriture (em francês) e escritura (em espanhol) por escritura e não mais por escrita (sobretudo no caso da tradução do francês). O que é compreensível quando se trata de traduzir não a palavra, mas o conceito derridiano de escritura. Agora, justifica-se essa tradução para o caso de “escrita da história”? Teria a palavra escrita se tornado fora de moda no mundo erudito das ciências humanas? Creio que não, embora essa também tenha sido em muitas passagens a escolha da tradutora d’ A ordem dos livros. Se o neogalicismo escritura vier a se impor será preciso, em breve, rever a tradução do livro de Michel de Certeau (tão caro a Chartier) para a “A escritura da história”; p. 14: “[…] a historiografia (ou seja, ‘história’ e ‘escritura’)”. Depois, creio que “appartenance” seria melhor traduzido por “pertencimento” e não “pertinência” (p. 19; 51), até porque em um dos casos remete diretamente a uma noção de Bourdieu. Finalmente, não cabe traduzir a noção braudeliana de “longa duração” por “longo termo”.
2 Sobre a invenção dessa nova forma de escrita, ver a terceira parte do incontornável tratado de Clarisse Herrenschmidt, “L’écriture informatique et réticulaire”. In: Les trois écritures: langue, nombre, code. Paris: Gallimard, 2007. pp. 387-498.
3 Chartier concorda com Michel de Certeau: ao trabalho do historiador é inerente o paradoxo inscrito no nome historiografia: história e escrita, conhecimento e relato, real e discurso. É interessante que de todos estes debates esteja sempre ausente o nome de Jacques Rancière, cujo trabalho publicado em 1992 pretendia justamente fazer uma arqueologia da nova história e deste paradoxo: um saber que soube evitar o canto de sereia da matematização e que, ao mesmo tempo, precisou se transformar em relato (Poética) subtraindo-se, no entanto, da literatura (Rancière evidencia ainda outra questão: a história nasce na mesma época que a literatura, são duas figuras contemporâneas, pertencem à mesma época e têm a mesma idade; essa descrição arqueológica expõe a singularidade de um problema que a ilusão retrospectiva que sustenta as análises de um Ginzburg, por exemplo, não pode colocar). Isto se deve ao fato de Rancière colocar o problema que historiador (sobretudo, na tradição dos Annales) busca evitar: não se trata apenas da relação da história com a literatura, mas com qual literatura. E o que decorre desta relação, quer dizer, do modelo de relato histórico: qual o modelo de relato apropriado ao saber da era das massas ou da democracia? Sem dúvida, as discussões epistemológicas nas duas últimas décadas avançaram sensivelmente, mas evitando amiúde o problema político que reside nesta questão. Rancière, J. Les noms de l’histoire. Essai de poétique du savoir. Paris: Seuil, 1992. Infelizmente, meu amigo Carlos Oiti ainda não publicou sua tese de doutorado dedicada a um exame minucioso da história dessa “crise”. Berbert Jr., Carlos Oiti. A história, a retórica e a crise dos paradigmas. Tese (Doutorado em História), Universidade de Brasília, 2005.
4 Cujo Bibliography and the sociology of texts permanece até hoje inédito em português.
5 Em meados dos anos 90, meu amigo Henrique Luiz Pereira Oliveira publicou um instigante artigo pouco conhecido sobre a questão da verdade e da realidade na pintura renascentista. Em uma camuflada nota de rodapé daquele artigo, ele sublinhava com certa surpresa o fato de que, naquele período, seus colegas historiadores haviam rápida e quase que automaticamente substituído, em seu vocabulário, a noção de ideologia pela de representação.
6 Cujo livro recente possui um título, a esse respeito, bastante significativo: Filosofía de los acontecimientos. Medelin, 2002.
7 De minha parte, situaria aqui a possibilidade de compreender a démarche chartieriana, na sua releitura, durante os anos 80, das relações entre a história e a filosofia. Na análise dessas questões, sobretudo em relação à noção de tempo, os historiadores dão muita importância ao que há de mais tradicional na história intelectual e dos saberes: a uma história das polêmicas e controvérsias intelectuais (o debate entre Braudel e Lévi-Strauss, sobre história e estrutura, etc.). Concluída a polêmica em questão, o historiador explicita sua dificuldade em compreender o que se passa a partir do dia seguinte. Uma história dos problemas pode ser muito mais instrutiva do que uma história tradicional das polêmicas e controvérsias científicas e intelectuais.
8 Almeida, Fábio Ferreira de. A poética como ontologia da diferença. Ensaio sobre a filosofia de Gaston Bachelard. Tese (Doutorado em Filosofia), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2007. p. 136.
Resenhista
Marlon Jeison Salomon – E-mail: marlonsalomon@gmail.com
Referências desta Resenha
CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Trad. Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2009 1. Resenha de: SALOMON, Marlon Jeison. Roger Chartier e a Atualidade da Ciência. História Revista. Goiânia, v.14, n.2, jul./dez.2009. Acessar publicação original [DR]
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