A História no Brasil (1980-1989) | Carlos Fico e Ronald Polito

Com o segundo volume de A história no Brasil, dos Profs. Carlos Fico e Ronald Polito, da Universidade Federal de Ouro Preto, completa-se a publicação de um ousado empreendimento de pesquisa e análise historiográfica no Brasil. Dando continuidade ao trabalho fundamental de sistematização de informações e crítica, operado até então por alguns poucos mas importantes nomes como Amaral Lapa, Francisco Iglésias e Carlos Guilherme Mota, Fico e Polito fundaram sua avaliação historiográfica brasileira da década de 1980 numa ampla pesquisa sobre os mais variados meios de sua produção/circulação/ consumo, assim como num renovado conceito de historiografia.

A falta de trabalhos de balanço dessa natureza era um mal crônico de que nos ressentíamos os historiadores brasileiros. As análises de maior fôlego, datadas da década de 1970 e início dos 80, tenderam a incidir quase sempre sobre recortes temáticos ou cronológicos da história brasileira, sem pretenderem ou conseguirem proporcionar uma visão mais ampla das principais tendências da produção do conhecimento histórico no Brasil. Certamente tais limitações decorriam da falta de eficazes instrumentos de pesquisa, já acusada por historiodadores como Varnhagen, Oliveira Lima, José Honório Rodrigues, Iglésias e Lapa.

A ampla base de dados que puderam compulsar os autores permitiu-lhes apurar com rigor e fineza o sentido que tomou a produção histórica recente no Brasil, desmontando entendimentos distorcidos sobre essa área de conhecimento, como algumas análises entorpecidas de subjetivismo – amparadas em pouca ou nenhuma base empírica – ou as imagens que se veicularam pela grande imprensa puderam fazer supor.

Superando o entendimento rasteiro de historiografia como mera catalogação de obras, ou como análise setorial temática ou cronológica, os autores procuram levar em conta “… não só a análise da produção do conhecimento histórico e das condições desta produção, mas, igualmente, o estudo de suas condições de reprodução, circulação, consumo e crítica” (v. 1, p. 19).

A opção por essa abordagem ampla do fenômeno historiográfico, desde a produção até a recepção da obra, implicou no emprego de uma metodologia de análise que lhes permitiu visualizar, por exemplo, inclusive por sub-áreas da história, os setores com maior vitalidade, onde se situam as zonas de carência, a influência de correntes teóricas estrangeiras.

A análise da esfera da produção do conhecimento histórico implicou na recuperação da memória da universidade brasileira nos últimos 20 anos, uma vez constatado que muito pouco dessa produção ocorreu fora dos meios acadêmicos. Toda a renovação da história no Brasil desde os anos 1970 foi pautada na consolidação dos cursos de pós-graduação, efetivada de fato a partir dos anos 80. Desde a criação dos oito primeiros cursos de pós-graduação – seis mestrados e dois doutorados -, houve um crescimento de 75% em relação aos anos 70, com 16 mestrados e 5 doutorados em funcionamento no final dos anos 80.

Nesse período os cursos experimentaram a definição de suas áreas de concentração, cuja ênfase recaiu na história econômica e social, predominando os recortes regionais nas linhas de pesquisa. Os arranjos e acomodações típicos dessa fase explicam as mudanças de enfoque de alguns cursos, e mesmo a desativação de algumas áreas e linhas de pesquisa. Problemas de ordem material, como o frágil aparelhamento, bibliotecas escassas de títulos de livros e periódicos e instrumentos de pesquisa em geral, marcam a implantação das pós-graduação no Brasil. Apesar disso, houve um considerável movimento de publicação, com a consolidação e a criação de várias revistas de diversos formatos e outros cadernos de divulgação científica.

Os autores chegaram a um detalhamento analítico rigoroso que os permitiu constatar alguns traços marcantes do processo de produção histórica nas universidades brasileiras. Sem entrar aqui em maiores detalhes, mapearam geográficamente onde se concentram os cursos, definindo seu nível pelos conceitos emitidos pelas agências de fomento. Situaram a história no conjunto das outras ciências sociais segundo o mesmo critérios. Rastrearam o montante de teses e dissertações defendidas, com o número de 665 dissertações de mestrado e 152 de doutorado, distinguidas por instituição e por área, ano a ano. Destacaram detalhes como o tempo médio dispendido na produção e a extensão das teses e dissertações em cada instituição; a percentagem de evasão; o gênero dos autores e orientadores; a relação orientador/orientando em termos de concentração numérica. Outro aspecto interessante que abordaram foi a divulgação de trabalhos acadêmicos até o grande público: a percentagem mínima de teses que conseguiram ser publicadas.

Não faltou um detalhamento do universo temático compreendido pelos trabalhos acadêmicos, segundo a periodizacão clássica da História do Brasil. Muito pouco foi produzido em termos de história não-brasileira, o que, segundo os autores, é um fator que dificulta a inserção nossa inserção no debate internacional.

Os enfoques metodológicos mais recorrentes são a história regional, a história social, econômica e política, nessa ordem. Dentro da história social predominam os trabalhos em torno dos movimentos sociais, do mundo do trabalho, particularmente do movimento operário e da escravidão negra. A incidência dos chamados “novos temas”, como sexualidade, bruxaria, corpo, loucura ou imaginário, embora tendendo a ampliar-se, não chega a representar 5% do número de trabalhos defendidos na década de 1980, sendo mais escassos ainda os estudos sobre teoria e metodologia da história, praticamente inexistentes.

O balanço geral a que chegam os autores é otimista: apesar de todos os problemas, desde os materiais até os da “dependência cultural”, a história no Brasil tendeu a uma efetiva profissionalização, o que ocorreu sobretudo dentro das universidades.

No âmbito da produção do conhecimento histórico, ainda, os autores rastrearam os principais periódicos e artigos em história, os instrumentos de pesquisa publicados, as instituições, associações, os congressos e outros tipos de eventos, além da produção do conhecimento histórico fora da academia.

Algumas constatações interessantes nesses âmbitos registram-se, por exemplo, quanto aos artigos publicados em revistas especializadas de história. Diferentemente de outros países, onde usam-se as revistas para divulgar resultados de pesquisa inédita ou outras em andamento, os maiores percentuais dos textos veiculados por periódicos especializados no Brasil são partes, capítulos de teses e dissertações que se publicam fragmentariamente. Isso talvez pela falta de perspectiva de os autores virem a publicar seus trabalhos na íntegra, fazendo-se observar apenas uma duplicação de informação que não significa necessariamente uma renovação do conhecimento, embora importante para a divulgação das pesquisas, tão problemática no Brasil.

Os congressos, seminários e outros tipos de eventos acusam um crescimento considerável em relação à década de 1970, embora com um caráter não muito estimulante. A maior parte desses eventos concentrou-se em torno de “efemérides”, como o centenário da Abolição da escravatura ou da Proclamação da República ou o cinquentenário da Revolução de 1930 ou o bicentenário da Revolução Francesa. Tais datas afetivas, se por um lado chamam a atenção do grande público em relação à história, que ganha espaço mesmo nos meios de comunicação de massa, por outro reforça o entendimento tradicional e equivocado do historiador como o “guardião” da memória e das datas nacionais.

No âmbito da circulação da história pelos meios editoriais, os autores constataram um crescimento vertiginoso da história dentre as grandes editoras, através da criação de inúmeras coleções específicas. Algumas delas com o caráter de coleções de divulgação, com formato de bolso, escritas por nomes de vanguarda da historiografia nacional, foram responsáveis pelo número elevado de títulos no período, inclusive com mais de uma dezena de reedições, em alguns casos. Mas ainda percebe-se um abismo entre a parte maciça da produção acadêmica e os poucos canais abertos pelas editoras comerciais. Proliferam, por outro lado, as editoras universitárias. Não deixam os autores de detalharem minuciosamente os temas e as abordagens predominantes nos livros publicados, ao mesmo tempo em que analisam seu padrão editorial.

Uma constatação muito significativa nesse terreno diz respeito à quase inexistência de publicação na área de teoria e metodologia da história e historiografia, afora alguns manuais didáticos e raras traduções. Não obstante esse dado, e a tirar pelo que se veiculou pelos periódicos de grande circulação, teria havido uma verdadeira revolução teórica na historiografia brasileira nos anos oitenta, crença alimentada sem dúvida pelo surgimento de temas inéditos de pesquisa no Brasil, como sexualidade, mentalidades, imaginário, cotidiano e pela diversidade dos trabalhos produzidos na pós-graduação.

A suposta renovação teria sido operada por jovens historiadores, sobretudo vinculados à UNICAMP, com base no desmantelamento das “velhas noções estabelecidas” nomeadamente pelo marxismo. Esse “imaginário” sobre a produção histórica no Brasil, segundo os autores, padece de alguns equívocos. Primeiramente, porque os profissionais via de regra ligados a tal renovação não constituem um grupo homogêneo do ponto de vista teórico. O que lhes atribuiria uma identidade é uma avaliação rasteira e superficial, fundada na observação de opções temáticas – e não propriamente teóricas.

Em segundo lugar, há uma discrepância fundamental entre a produção dos cursos de pós-graduação e o que se divulga como sendo marca daquela renovação. Os dados constituídos pelos autores de A história no Brasil indicam que a maioria absoluta dos trabalhos acadêmicos segue padrões do que se pode considerar uma história de feitio “tradicional”, predominando os temas da história política, econômica e mesmo demográfica. O que houve por aqui, nos anos 80, não foi muito mais que uma ampliação das possibilidades temáticas, assimiladas muitas vezes sem necessárias ponderações teóricas por certo círculo da historiografia brasileira. Uma verdadeira renovação ainda está por operar-se.

Em suma, o que se depreende da avaliação historiográfica feita no primeiro volume da obra resenhada é um saldo positivo, no sentido de uma crescente profissionalização da história no Brasil nos anos oitenta, não obstante os crônicos problemas que perduram. O principal deles, segundo Fico e Polito, reside no fato de formarmos uma comunidade científica ainda incipiente, com um número restrito de pesquisadores experientes que sustentam o grosso da produção, concentrada sobretudo nas pós-graduações. No Brasil ainda não conseguimos superar certo ranço provinciano da história local. Poucos são os pesquisadores que se debruçam sobre temas estrangeiros; os periódicos não são indexados; as fontes são pouco organizadas; as teses não são publicadas e mal divulgadas; não há instrumentos de controle sobre a produção nacional, não sendo raro a repetição de temas de teses.

Apesar de tudo isso, o balanço final aponta para uma tendência a superação paulatina de tais problemas. O segundo volume de A história no Brasil: série dados, trás a indicação da constituição do CENTRO NACIONAL DE REFERÊNCIA HISTORIOGRÁFICA, criado pelos autores com o fim de tornar-se o mais completo banco de dados sobre trabalhos na área de história no Brasil, com o fim de promover a divulgação de análises e indexadores sobre a produção histórica brasileira. Esse segundo volume constitui-se num primeiro desdobramento da atividade do CENTRO, reunindo em 345 páginas, em corpo reduzido, todas as informações coletadas pelos autores e utilizadas nas análises feitas no primeiro volume. Arrolam-se ali todas as teses e dissertações defendidas na década de 1980, com as respectivas indicações das instituições de origem, dos orientadores e das eventuais destinações editorias. Indicam-se os livros publicados; os artigos; os instrumentos de pesquisa e transcrições de documentos; as resenhas e ensaios bibliográficos; os congressos, seminários e outros eventos; seus anais; as entrevistas; os livros mais vendidos. O volume possui ainda três índices: de orientadores de teses, de autores resenhados e um índice geral.

Como diz o Prof. Carlos Guilherme Mota no “Prefácio” ao primeiro volume de A história no Brasil, “nasce aqui uma nova crítica historiográfica no Brasil, mais exigente, menos autocomplacente”.


Resenhista

Jurandir Malerba – Professor do Departamento de História – UEM.


Referências desta Resenha

FICO, Carlos; POLITO, Ronald. A História no Brasil (1980-1989). Elementos para uma avaliação historiográfica. Ouro Preto: UFOP, 1992. (V. 1). FICO, Carlos; POLITO, Ronald. A História no Brasil (1980-1989). Série Dados. Ouro Preto: UFOP, 1994. (V. 2). Resenha de: MALERBA, Jurandir. Diálogos. Maringá, v.1, n.1, 209 -214, 1997. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.