A História (in)Disciplinada: teoria, ensino e difusão do conhecimento histórico. | Arthur Lima de Avila, Fernando Nicolazzi e Rodrigo Turin

Fernando Nicolazzi História
Fernando Nicolazzi | Foto: Canal História da Ditadura

No dia 27 de abril de 2020, Jair Bolsonaro vetou integralmente o projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional que previa a regulamentação da profissão de historiador. Entre muitos aspectos que podem ser explorados a partir da análise dessa ação controversa, um deles se refere ao concorrido campo da história. Longe de ser uma “ciência dedicada aos mortos”, a história – e o direito de enunciá-la ou de interditá-la – é ponto de embate ideológico, além de um importante instrumento político, intrinsecamente vinculado a questões do nosso presente.

O veto levado a cabo pelo Presidente da República demonstra que o campo é alvo de disputas que estão muito além da atividade de ensino-aprendizagem característica do processo educativo em sala de aula. O que temos observado nos últimos anos é a perseguição aos profissionais da área e a emergência de narrativas históricas revisionistas, negacionistas e equivocadas, apresentadas ao grande público por meio de publicações, de vídeos do YouTube, de comentários históricos superficiais realizados por autoridades públicas e por influenciadores digitais.

Em meio a esse contexto de intensas disputas, do qual faz parte a desvalorização da atividade docente, das humanidades e da universidade pública de forma geral, vem a público a coletânea A história (in)Disciplinada. Voltada ao público acadêmico, especialmente os profissionais, os estudantes da área de história e os pesquisadores interessados em estabelecer um diálogo com a teoria da história, a obra é apresentada pelos autores como fruto de uma série de encontros realizados entre 2015 e 2018.[1]

Os artigos propõem debater as “muitas facetas que definem o estatuto contemporâneo da disciplina histórica” (Avila, 2019, p. 14). Reiterando a assertiva de Michael de Certeau (2000, p. 66) – autor referenciado em vários textos da coletânea – sobre o lugar social ocupado pelo historiador, a obra aponta para os limites da autonomia do trabalho realizado pelos pesquisadores de história nas universidades, uma vez que a área se encontra em um panorama atual no qual prevalecem os vínculos com projetos globais que cobram alta produtividade e competitividade, muitas vezes em detrimento da qualidade e da criatividade da produção.

Os autores sugerem a necessidade de politização da área e propõem que tal percurso seja realizado por meio da perspectiva da (in)disciplina. Mas, em que consiste essa ideia de (in)disciplinar a história e de politizar o saber?

O livro é composto por oito artigos diferentes em suas propostas e encaminhamentos teóricos e metodológicos, embora a perspectiva de refletir acerca da historiografia e da teoria, e de sua relação com os parâmetros disciplinares, se mantenha como fio condutor. Em que pese à distinção entre as reflexões e os seus objetos de estudo, alguns autores são citados em vários artigos como Dipesh Chakrabarty, François Hartog, Gayatri Spivak, Hayden White, Joan Scott, Michel de Certeau, Pierre Bourdieu, Temistocles Cezar e Sanjay Seth, denotando uma sinergia entre as propostas. Também é notória a utilização de citações recíprocas entre os autores da obra, especialmente no que diz respeito aos organizadores, que aparecem referenciados em diversos artigos da coletânea.

Pautados por reflexões de pesquisadores pós-coloniais, especialmente vinculados ao Subaltern Studies, como ponto central dos debates os autores enfatizam o quanto a historiografia acadêmica ainda se encontra presa aos modelos disciplinares eurocêntricos consolidados no século XIX. Também apresentam críticas à adoção de noções de tempo universalizantes e evidenciam a importância das múltiplas formas de experiência temporal.

Outra questão apontada em parte dos artigos diz respeito aos modelos historiográficos ou às posturas profissionais que optam pela valorização de um real ontológico assumido como elemento central, em detrimento das estruturas linguísticas que conferem sentido ao real. Essa percepção foi anotada também, embora em outros termos, pela historiadora indígena Linda Smith. Ela chama atenção para o fato de que a escrita foi e ainda tem sido utilizada para marcar as sociedades que estariam ou não aptas a pensar criticamente e objetivamente, de acordo com a manipulação adequada do código escrito. O uso da escrita, associado à crença no controle das emoções e das ideias, dita os pressupostos básicos do método disciplinar da área e exclui perspectivas outras, consideradas por vezes primitivas ou incorretas (Smith, 2018, p. 43). Essas formas outras de pensar a história e a teoria representam possibilidades para uma história (in)disciplinada ou, usando a expressão de Smith, para uma “história contestada” que desafia o projeto do colonialismo (Smith, 2018, p. 47).

Diversas perspectivas de uma epistemologia crítica aos cânones e às concepções dominantes ocidentais ganharam força nas últimas décadas, sobretudo a partir das publicações do grupo de escritores indianos do Subaltern Studies. Na América Latina, esse movimento tem sido difundido principalmente pelos debates e publicações do Grupo Modernidade/Colonialidade, representado por pesquisadores de vários países da América Latina e dos Estados Unidos, como Catherine Walsh, Walter Mignolo, Edgardo Lander e Enrique Dussel, entre muitos outros. Walter Mignolo (2008), por exemplo, propõe a desobediência epistêmica, ato que consiste no rompimento com os paradigmas conceituais europeus, pensando-se a partir de uma posição consciente de subalternidade no campo do conhecimento ocidental e em contraposição à hegemonia epistêmica construída pela razão imperial/colonial – a qual é responsável por erigir concepções de inferioridade raciais, de gênero, nacionais, religiosas e sexuais.

O primeiro artigo do livro, denominado “O que significa indisciplinar a história?”, é de autoria de Arthur Lima de Avila e apresenta como proposta uma discussão sobre a ideia que dá título e desenrola o fio condutor da obra. A (in)disciplina não pressupõe, como explica Avila, mentir ou se posicionar de forma opinativa sobre o passado ou ainda ser licencioso quanto à pesquisa empírica ou teórica. (In)disciplinar é pensar para além dos fetiches disciplinares, voltar a atenção para as possibilidades de construção das concepções históricas e dos cânones historiográficos e refletir sobre as incertezas epistemológicas, bem como sobre as diversas concepções de história e de tempo histórico.

Avila aponta para os limites de uma atividade historiográfica demasiadamente irrefletida e limitadora quanto ao “potencial político, crítico e poético da história” (Avila, 2019, p. 20). Sua reflexão sinaliza para um conjunto de proscrições discursivas e para diversas posturas defensivas e preocupadas com a manutenção da tradição disciplinar, chacoalhada a partir da década de 1970 e reiterada com a recorrente ideia de crise da história. O discurso sobre o caráter de cientificidade da história, a valorização das fontes como condição de trabalho e como pilar qualitativo das pesquisas, a separação entre fato e ficção demonstrariam o quanto a disciplina ainda se encontra enraizada nos seus pressupostos do século XIX.

Já em “Culturas do passado e eurocentrismo”, Fernando Nicolazzi sinaliza a relevância de existirem diferentes concepções de culturas de passado e a importância de se considerar a dimensão performativa que confere sentidos distintos a cada cultura histórica. Sob o subtítulo de “Périplo de Tláloc”, Nicolazzi apresenta um estudo de caso sobre diferentes representações em torno de um monólito de 170 toneladas localizado a 60 km da Cidade do México, e do amplo uso deste artefato feito por arqueólogos, políticos e pela população local ao longo do século XX, resultando em diferentes interpretações do mesmo, muitas vezes conflitivas.

Como único texto do livro que propõe uma análise sobre o oitocentos no Brasil, o artigo de Valdei Araújo, “Narrativas populares do Museu Universal”, discute concepções de culturas históricas não canônicas. Interessa ao autor evidenciar as produções textuais não especializadas, não disciplinadas pelas regras reinantes entre grupos que buscavam se especializar (como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, por exemplo), para a elaboração de narrativas históricas. A proposta de Araújo é identificar tradições de interpretação relacionadas a interesses voltados para a formação da nação brasileira no período pós-independência, pautadas no debate em torno das rupturas ou das continuidades entre Portugal e a América.

No artigo “A história disciplinada e seus outros”, Maria da Glória de Oliveira insere a categoria de gênero na ordem do dia e discute a forma como esse termo foi domesticado, inserido no debate historiográfico não com o objetivo de ser utilizado para questionamentos à ordem disciplinar ou para reflexões sobre os pressupostos epistêmicos universalizantes, mas como uma espécie de complemento, de tema acessório aos grandes temas da história. Esse tipo de uso faz com que a categoria se encontre desgastada em termos historiográficos. Na esteira desta crítica, a autora denuncia o fato da produção intelectual feminina ainda estar invisibilizada no campo, tanto no que se refere a autoras que discutem a teoria da história como também no que diz respeito a mulheres intelectuais tomadas como objeto de estudo. No campo das reflexões a respeito da teoria da história no Brasil – a partir de exemplos empíricos citados pela autora, como as produções da Revista História da Historiografia -, ocorre ainda o predomínio de produções escritas por homens brancos oriundos de instituições do Sudeste do país.

Esse é um ponto discutido por várias pesquisadoras e a reflexão proposta possibilita um debate para além da especificidade da ideia de “mulher” como ente universal. A filósofa argentina María Lugones, citada no artigo de Oliveira, identifica como um primeiro problema o fato da produção do conhecimento, de forma geral, estar sempre vinculada à atividade masculina, heterossexual, branca e europeia. Mesmo entre os estudos decoloniais, nos quais a perspectiva eurocêntrica tende a ser problematizada, observa-se que o rompimento com a hegemonia eurocentrista e masculina ainda mantém mulheres negras, indígenas e asiáticas fora da produção do conhecimento, marginais neste processo de valorização intelectual. Daí decorre a necessidade da intersecção entre classe, raça, gênero e sexualidade (Lugones, 2014).

Rafael Benthien, em “Qualis periódicos na área de história”, faz uma interessante análise sobre os critérios de avaliação da Comissão de área da CAPES para os periódicos de história do último quadriênio (2013-2016), com o objetivo de identificar os pressupostos que orientaram a Comissão em sua avaliação. Como resultado é possível se observar uma predominância de avaliações positivas para o Sul e o Sudeste e a evidência de que as revistas mais bem avaliadas estão vinculadas a programas de história também bem avaliados, geralmente concursos de pós-graduação mais antigos e, por este motivo, considerados “tradicionais”. O autor observa em sua reflexão que os critérios de avaliação ocorrem muito mais a partir da valorização das redes de conexão em detrimento da qualidade dos trabalhos. Benthien aponta ainda a ausência de liberdade editorial e personalidade nas publicações, uma vez que editores e escritores procuram se adequar às demandas da Comissão de área, visando um parecer favorável. Coadunando com os debates desenvolvidos em outros artigos da obra, Benthien levanta questões relacionadas às dificuldades da área em fazer frente a um grande conjunto de narrativas equivocadas que circulam pelo país nos últimos anos. Os periódicos especializados, por sua vez, são pouco acessíveis, já que priorizam as redes de interdependência, ocasionando o encastelamento dos debates e dos avanços teóricos e historiográficos, preocupação recorrente em reflexões presentes nesta obra.

No artigo denominado “Presentismo, neoliberalismo e fim da história”, Rodrigo Turin analisa as categorias de regime de historicidade e regime de temporalidade. O autor tenta demonstrar as implicações do que define como regime de historicidade neoliberal para a universidade e para as humanidades, refletindo sobre como esse modelo estende a razão de mercado para todas as instâncias sociais, incluindo instituições acadêmicas, razão essa que conduz à despolitização e à desmobilização.

Os artigos de Lidiane Soares Rodrigues e Mara Cristina de Matos Rodrigues consistem em reflexões cujo empirismo está pautado em experiências pessoais. No artigo “Ensino de teorias e metodologias nos cursos de graduação em história”, de Mara Cristina de Matos Rodrigues, apresentado como ensaio, a autora analisa os caminhos adotados em sala de aula, em sua disciplina de teoria da história, tendo como arcabouço empírico sua própria experiência como professora de teoria e metodologia da história no curso de história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As reflexões da autora conduzem à conclusão de que as disciplinas de teoria da história, a exemplo daquela ministrada por ela própria, reproduzem uma concepção eurocêntrica, sexista e classista, ao utilizar como base do conhecimento teórico da área autores homens, brancos, europeus e estadunidenses em sua grande maioria. A autora também propõe algumas questões sobre as relações hierárquicas estabelecidas entre docentes e estudantes no que concerne ao distanciamento construído nesta interação, chamando a atenção para a necessidade de reflexão e investimento nas relações de comunicação e aprendizagem entre alunos e professores.

O artigo de Lidiane Soares Rodrigues, “A doxa da heterodoxia”, consiste em uma crítica ao discurso de interdisciplinaridade no campo da história. A autora levanta questionamentos pertinentes à noção de interdisciplinaridade presente no documento que trata da concepção da área de história, elaborado pela CAPES em 2016, durante a gestão de Carlos Fico. Na análise empírica, a autora se volta para um parecer negativo de uma revista acadêmica recebido por ela em 2018, em relação a um artigo submetido e recusado. O objetivo é demonstrar o quanto o campo é capaz de interditar um discurso que não atende às expectativas apoiadas no rigor disciplinar e as dificuldades, decorrentes desse rigor, de se aceitar a interdisciplinaridade (neste caso, defendida no texto escrito pela própria autora, que é socióloga).

Os autores da coletânea, de forma geral, tecem importantes críticas ao encastelamento do conhecimento e da atividade universitária, fator também responsável pelas perseguições sofridas pela universidade e pelos professores nos últimos anos. A ausência de diálogo entre a universidade e as camadas mais amplas da sociedade denota a existência de um código identitário próprio, decifrável somente por aqueles que vivenciam a instituição cotidianamente, e que se retroalimenta tão somente dos seus pares, já que outros segmentos sociais não se reconhecem no discurso institucional universitário e não vislumbram o alcance social de suas intenções e práticas.

Em um contexto de enxugamento de bolsas e verbas para as universidades, de austeridade nos projetos políticos para a educação (quando estes existem), na existência (quase inacreditável!) de programas de história em universidade federais que chegam ao ponto de propor concurso de substituto para trabalho voluntário no ensino superior, uma obra que se propõe a politizar a história de forma explícita, como é o caso de A história (in)discipinada, traz um alento, pois se faz urgente, cada vez mais, a clareza nas intenções, nas posições e nas escolhas quanto à escrita e ao ensino de história. No conjunto dos artigos apresentados persiste uma ênfase no caráter emergencial da reflexão sobre a identidade disciplinar da historiografia atual e na necessidade de se atenderem às demandas do presente, entrevendo-se possibilidades de intervenção social.

Talvez essa tenha sido uma das grandes contribuições da coletânea; a grande preocupação com as questões do presente, sobretudo no que se refere à construção das memórias e das culturas históricas dos últimos anos em nosso país. Conforme os organizadores defendem na “Apresentação”, interessa pensar “de que forma uma certa indisciplinarização da história pode responder aos desafios políticos do presente” (Avila; Nicolazzi; Turin, 2019, p. 14). A proposta de (in)disciplinar a história e de politizar o saber está atrelada à atitude do historiador de tomar as rédeas das reflexões que produz e, sobretudo, de analisar criticamente as possibilidades e condições de produção do saber. Conforme Sanjay Seth (2013, p. 185-186), a história se dá por meio de códigos e práticas representacionais e, em nosso caso, esses códigos estão estritamente vinculados ao contexto de expansão imperial e humanista que concebeu uma maneira específica de se relacionar com o tempo. Compreender como esse código se solidificou e reconhecer a existência de inúmeros outros, alimentados por concepções de tempo e história diversos, é um passo importante na direção a uma reflexão mais crítica e na superação de “qualquer presunção de privilégio epistêmico.” (Seth, 2013, p. 187).

Nota

1. Os eventos denominados “Encontro de História In(disciplinada)” ocorreram nos anos de 2015, 2016 e 2018.

Referências

AVILA, Arthur Lima de; NICOLAZZI, Fernando; TURIN, Rodrigo (Orgs). A História (in)Disciplinada: teoria, ensino e difusão do conhecimento histórico. Vitória: Editora Milfontes, 2019. 278 p.

CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Santa Catarina: UFSC, v. 22, n. 3, 2014, p. 935-952.

MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Traduzido por Ângela Lopes Norte. Cadernos de Letras da UFF, Rio de Janeiro: UFF, n. 34, 2008, p. 287-324.

SETH, Sanjay. Razão ou Raciocínio? Clio ou Shiva? In: História da Historiografia, Ouro Preto, n. 11, abril 2013, p. 173-189.

SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Curitiba: Editora da UFPR, 2018. 239 p.


Resenhista

Liz Andréa Dalfré – Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), Curitiba, PR, Brasil. E-mail: liz.dalfre@gmail.com


Referências desta resenha

AVILA, Arthur Lima de; NICOLAZZI, Fernando; TURIN, Rodrigo (Orgs). A História (in)Disciplinada: teoria, ensino e difusão do conhecimento histórico. Vitória: Editora Milfontes, 2019. Resenha de: DALFRÉ, Liz Andréa. Por uma história (in)disciplinada: historiografia, teoria da história e politização do saber. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.41, n.86, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [DR].

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