Situar-se no terreno movediço de demanda por decisões efetivas frente às urgências do presente constitui um fenômeno concreto e contínuo das reflexões disciplinadas da história. Enquanto é possível identificar o genoma de um vírus e rastrear sua dispersão, é difícil demarcar a origem dessa nova emergência que acomete a historiografia, mas a exceção desses primeiros meses de 2020 é antecipada por um clima crítico para a história e as humanidades. A sensação de deslocamento do saber histórico, visível, por exemplo, nas dificuldades em comunicar-se com um público amplo partindo dos rigores da academia para enfrentar os negacionismos presentes nas mídias digitais, é desalentadora para docentes e discentes em formação. Para além dessa paisagem sui generis que submeteu o mundo globalizado de proliferação de vozes, hoje em isolamento, há uma singularidade fugidia nesses instantes de difícil demarcação, escapando definitivamente às inteligibilidades das virtudes epistêmicas da disciplina histórica. Ao rés do chão, Benjamin M. Schmidt (2018) apontou para uma profunda crise na procura por graduações em história nas universidades estadunidenses. Compilando os dados de inscrições de alunos desde a década de 1950, concluiu que 2017 foi o ponto mais baixo de uma curva decrescente. Esses dados permanecem em atualização e confirmam o prognóstico negativo compartilhado também por Eric Alterman (2019) na revista The New Yorker, colunista que ampliou o debate destacando o dilema da “inequidade intelectual” na situação da disciplina histórica nas universidades estadunidenses.
De pronto, as páginas iniciais de A História (in)Disciplinada: Teoria, ensino e difusão de conhecimento histórico (2019) recorreram às inquietantes conclusões de Benjamin M. Schmidt e Eric Alterman. Arthur Lima de Avila, Fernando Nicolazzi e Rodrigo Turin exploraram esse problema para apresentar ao leitor um novo conjunto de fenômenos com profundas implicações no cotidiano de pesquisa e ensino de história. Comparando a situação de nosso país com os EUA, Japão e Chile, demonstraram o quadro preocupante das recentes reformas da Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Um processo que deveria resultar de um amplo debate, acabou por restringir ainda mais a presença das humanidades na composição dos currículos básicos. Para os autores, ao mesmo tempo em que as novas dinâmicas do tempo presente não encontraram ressonância no texto final da reforma, a “intensificação da produção especializada” das universidades: “[…] cada vez mais sincronizadas globalmente em função de processos avaliativos e pela incorporação de novos conceitos e princípios organizacionais” (AVILA; NICOLAZZI; TURIN, 2019, p. 12), distanciou ainda mais o historiador das novas demandas sociais. De acordo com esse preâmbulo, o contexto atual se situa entre as novas demandas e a força do estrangulamento institucional, perfazendo um horizonte de dificuldades para posicionar uma força de trabalho em plena ascensão (AVILA; NICOLAZZI; TURIN, 2019, p. 9). Seria a dureza desse diagnóstico um imperativo? Para Arthur Lima de Avila, Fernando Nicolazzi e Rodrigo Turin, a indisciplinarização da história
[…] diz respeito, antes, a uma dimensão ativa, no sentido de tomar posição e de ser ator nesse processo de profundas transformações na relação entre passado, conhecimento, ensino e sociedade. A (in)disciplina implica, assim uma politização do saber (AVILA; NICOLAZZI; TURIN, 2019, p. 9).A História (in)Disciplinada somou-se a um corpus de outras recentes publicações coletivas que atentam para esse momento crítico afetando os historiadores. Pode-se tomar como exemplo o dossiê Crise na e da História: desafio à escrita e à reflexão crítica (VIEIRA, B.; FELIPPE, E. F.; NICODEMO, T. L., 2018) da Revista Maracanan. Publicado em um periódico pertencente ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o dossiê convidou os leitores a compreender a emergência da proposta em um contexto de graves cortes orçamentários na educação estatal. A proposta de utilizar uma revista acadêmica como lugar de manifestação a respeito do flagelo dos docentes e discentes consistiu talvez uma empreitada indisciplinadora, tendo em vista que as angústias sofridas por aquela instituição se apresentavam como a metonímia de uma ampla crise da universidade pública e, em extensão, das ciências humanas.
De certa forma, essa sensibilidade foi partilhada pelos problemas postos à disciplina história e repercutiu nas páginas de A História (in)Disciplinada. Essa obra resultou de uma proposta de trabalhos coletivos que ganhou corpo no Encontro de História (In)Disciplinada realizado na UFRGS em 2015. Os capítulos foram escritos por Maria da Glória de Oliveira, Lidiane Soares Rodrigues, Rafael Faraco Benthien, Mara Cristina de Matos Rodrigues e Valdei Araujo acompanhados pelos textos dos organizadores Arthur Lima de Avila, Fernando Nicolazzi e Rodrigo Turin.
Abrindo a coletânea de reflexões, Arthur Lima de Avila propôs entender O que significa indisciplinar a história?. Nesse esforço, amplificou os problemas postos na apresentação do livro, reforçando os desafios políticos do contemporâneo para a produção de conhecimento a respeito do passado. Se a crise da história se transformou em um “clichê historiográfico” (AVILA, 2019, p. 21), bastaria ajustar as condutas ou seria necessário a recuperação da historicidade dessas disposições disciplinares? Para dar conta dessa incerteza, o autor buscou historiar o conceito de indisciplinaridade e chamou atenção para a necessidade de uma “[…] postura autorreflexiva e autocrítica sobre as políticas do tempo historiográficas” (AVILA, 2019, p. 37). Em um exercício comum aos textos que compõem essa coletânea, Arthur Lima de Avila esclareceu o seu posicionamento em relação ao modo (in) disciplinar. Para ele, a versão indisciplinada da história não se trata do abandono da razão e de princípios de universalidade, muito menos de cessão às “imaginações poéticas” sem nenhum lastro empírico, mas de uma tentativa de abrir-se aos novos problemas das gerações futuras (AVILA, 2019, p. 46).
As relações do contemporâneo com o passado e com o futuro apresentaram-se como o esteio dos esforços de entendimento dos percalços da disciplina história. No texto seguinte, A história disciplinada e seus outros: reflexões sobre as (in) utilidades de uma categoria, Maria da Glória de Oliveira provocou o leitor com uma revisão do conceito de gênero, proposta em meados da década de 1980 por Joan Scott. Para a autora, a proliferação do uso dessa categoria evidentemente incluiu as mulheres como objeto das ciências humanas, mas também conduziu a duros investimentos reacionários dos extratos mais conservadores da sociedade. Partindo desse problema, Maria da Glória de Oliveira lembrou que as práticas disciplinares podem potencializar conceitos, mas ao mesmo tempo são responsáveis pelo esvaziamento de seus sentidos mais vigorosos. Assim, os debates circunscritos à inclusão liberal dos sujeitos perdem força de enfrentamento contra os duros conservadorismos. Uma polêmica que se faz necessária e deve desafiar os constructos disciplinares:
[…] a crescente inclusão das mulheres como objetos de estudo nas ciências humanas é acompanhada de uma resistência que, embora difícil de ser identificada […] se manifesta como falta do uso mais radical da categoria de gênero para se repensar a validade pretensamente universal dos pressupostos epistêmicos das disciplinas.” (OLIVEIRA, 2019, p.58).O capítulo seguinte, A doxa da heterodoxia: a avaliação dos pares e as condições de transgressão disciplinar, explorou como os discursos afirmativos da interdisciplinaridade, provenientes das organizações transnacionais como a OCDE e amplamente difundidos nos contextos de pesquisa e ensino, encontram seu limite na persistência das práticas disciplinares. Nele, Lidiane Soares Rodrigues sustentou que “[…] as práticas e a defesa da interdisciplinaridade não eliminam os enquadramentos disciplinares, elas pressupõem estes últimos” (RODRIGUES, 2019, p. 77). Para corroborar essa hipótese, ela analisou os pareceres negativos em resposta a um artigo de sua autoria submetido para a apreciação de um periódico da área de história. Esse capítulo deu visibilidade aos questionários para “avaliação cega”, objetando as estruturas de um processo do cotidiano acadêmico. Tal reflexão entrou em sintonia com um dos problemas postos no texto de apresentação de A História (in)Disciplinada, pois tencionou as práticas concorrenciais, a disciplinarização e a interdisciplinaridade como estruturantes dos enquadramentos científicos (RODRIGUES, 2019, p. 77).
Em “Qualis periódicos na área de história: alguns apontamentos sobre os pressupostos, os resultados e os possíveis efeitos de uma avaliação”, Rafael Faraco Benthien partiu do pressuposto que “[…] publicação em periódicos é, nos modernos sistemas de ensino de pesquisa, condição indispensável para a viabilização de uma carreira científica” (BENTHIEN, 2019, p. 119). Aproximando-se da temática do texto de Lidiane Soares Rodrigues, chamou atenção para as formas de controle de produtividade no cotidiano do universo acadêmico. Para tal, abriu uma reflexão importante a respeito do sistema Qualis Periódicos da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). De acordo com Rafael Faraco Benthien, as revistas não se apresentam como meros reflexos da paisagem intelectual, mas são os elementos constituintes dessa imagem. Esmiuçando as lógicas obtusas dos processos quantitativos e qualitativos que regem os sistemas de classificação dos periódicos, esse capítulo colaborou para entender a contradição da doxa da ciência transformando-se em um commodity:
Nunca fomos tantos historiadores, como pesquisas de ponta em inúmeros ramos da disciplina. E, ainda assim, nunca estivemos tão isolados. O primeiro passo para reagirmos talvez passe pelo reconhecimento de que temos trabalhado arduamente por esse isolamento. (BENTHIEN, 2019, p. 146).
Talvez seja um dever do contemporâneo questionar em qual medida as práticas disciplinares de pesquisa, hoje economicizadas e metrificadas, não estejam implicadas também nos contextos de ensino. De certa forma, esse é o tema do capítulo Ensino de teorias e metodologias nos cursos de graduação em história: sobre silêncio, poder e presença escrito por Mara Cristina de Matos Rodrigues. Essa reflexão levou em consideração as dimensões sociais do conhecimento em um momento de intensificação de atores plurais nos espaços universitários do país. Mobilizando as relações de poder emergentes da mediação entre linguagem e lugar, a autora reforçou a necessidade de se efetivar a presença desse novo conjunto de realidades, nas teorias e práticas de ensino:
É preciso confiar e investir não somente na capacidade de diálogo entre todos os agentes implicados no espaço escolar, como também na ampliação do debate democrático e na valorização da carreira docente, que nos últimos anos vinha se tornando cada vez mais especializada tanto na reflexão e avaliação, quando na proposição de ações educativas voltadas para o respeito à diversidade. (RODRIGUES, 2019, p. 165).
Em termos gerais, os cinco primeiros capítulos de A História (in)Disciplinada problematizaram os limites entre o “passado prático” e o “passado disciplinado”, dando relevância a um ethos capaz restaurar as potências políticas da escrita de história. Tal perspectiva foi muito clara no texto de Arthur Lima de Avila, tendo latitude também nos textos de Maria da Glória de Oliveira e Mara Rodrigues. Não obstante, os capítulos de Lidiane Soares Rodrigues e Rafael Faraco Benthiem contribuíram, por meio de uma mobilização sociológica, ao necessário entendimento das políticas de avaliação dos atores e grupos que constituem o campo de profissionais da história. Tomando esse espaço de trânsito de ideias entre discentes, docentes, departamentos e programas de pós-graduação, como estruturantes do modo de apreensão do passado no campo científico. Já os textos que dão prosseguimento ao livro romperam com a condução desses cinco anteriores, retomando outros importantes pontos de debate em torno da história (in) disciplinada.
De autoria de Valdei Araujo, Narrativas populares no Museu Universal: a experiência do tempo para além da história disciplinar apresentou parte de um programa de pesquisa que se ocupou do mapeamento das tecnologias de mobilização historiográfica do tempo (ARAUJO, 2019, P. 173). A partir dessa ampla proposta de pesquisa do autor, o capítulo objetivou o ainda desconhecido campo de uma historiografia não especializada produzida nos momentos posteriores à abdicação de D. Pedro I. O texto deteve-se em analisar pontualmente o periódico Museu Universal, que circulou no Rio de Janeiro entre 1837 e 1844. Reconhecido como profundo conhecedor da historiografia novecentista, Valdei Araujo almejou deslocar seu olhar para uma nova ordem de fontes acerca do período:
O tema [das formas populares de historiografia] certamente envolve desafios e riscos, na medida em que a historiografia entendida enquanto disciplina é cada vez mais desafiada em sua legitimidade e relevância por essas outras ‘histórias’, o que pode significar a conformação da experiência às demandas do consumo, mas uma oportunidade de repensar a disciplina. (ARAUJO, 2019, p. 173).
Dando sequência às indagações quanto ao estatuto de nossas matrizes historiográficas, Fernando Nicolazzi apresentou o fenômeno da transposição de um grande artefato de pedra para o acervo do Museu Nacional de Antropologia da Cidade do México. Seu texto demonstrou que a retirada do monólito de seu sítio original buscou conferir ao objeto uma relação de pertencimento, alinhando-se a uma leitura específica do passado e um projeto de evidente reivindicação da identidade nacional mexicana. Culturas de passado e eurocentrismo: o périplo de Tláloc, enfrentou a hipótese de que a disciplina, orientada no século XX por predisposições eurocêntricas, constrangeu outras maneiras eficazes de se relacionar com as culturas históricas. Tal reflexão propicia ao leitor a tarefa de refletir acerca dessas práticas no tempo presente. Tendo em vista que fora um exercício constante no conjunto dessa obra coletiva, reforçando que a indisciplinarização da história não significa deslegitimar as formas atuais de saber, mas uma busca por “[…] outros fundamentos de legitimidade em um contexto onde disputas pelo passado e batalhas pela memória se tornam igualmente embates em torno da história.” (NICOLAZZI, 2019, p. 239).
Encerrando essa empreitada coletiva de questionar os horizontes disciplinares da historiografia contemporânea, Rodrigo Turin deu continuidade a seus trabalhos a respeito dos desdobramentos da racionalidade neoliberal. Presentismo, neoliberalismo e fins da história convidou o leitor a compreender a hipótese da formação de um “regime de historicidade neoliberal” (TURIN, 2019, p. 253). Esse capítulo final mobilizou as teses de tempo histórico de Reinhart Koselleck e regimes de historicidade de François Hartog, somando-as aos recentes estudos a respeito do fenômeno neoliberal (Pierre Dardot, Christian Laval, Wendy Brown, Maurizio Lazzarato). Nele, Rodrigo Turin defendeu que a incorporação das lógicas das métricas e da cultura das auditorias ensejam a financeirização da educação. Tal movimento emergente na década de 1980, não afetou apenas as estruturas escolares, mas principalmente os agentes do processo educacional. Esse lento processo de mais de quarenta anos também contribuiu para o fenômeno da despolitização da atividade intelectual e acadêmica. Em referência aos estudos de Wendy Brown, o ethos sacrificial ganhou corpo nas estruturas disciplinares: “[…] sacrifício sem crença ou promessa. Sem crença, pois não se vincula mais aos valores próprios das atividades […] sem promessa, pois não há propriamente uma expectativa de futuro para além das metas a serem alcançadas, de curto prazo” (TURIN, 2019, p. 261).
O capítulo de Rodrigo Turin apresentou um propício fechamento para essa obra coletiva. Afinal, A História (in)Disciplinada: Teoria, ensino e difusão de conhecimento histórico, conduziu o leitor a repensar as matrizes disciplinares e as implicações desses estamentos no desenvolvimento de novos saberes a respeito do passado. As virtudes epistêmicas decorrentes de mais de 200 anos de desenvolvimento disciplinar e, hoje, alinhando-se às formas neoliberais de vida, estariam em seu momento limite? Seria a publicação A História (in)Disciplinada sintomática da identificação do fechamento do saber historiográfico em relação às urgências do contemporâneo? Para o filósofo da ciência Thomas Kuhn (2013), o desenvolvimento das estruturas científicas paradoxalmente conduzia à clausura dos paradigmas. Só a retomada de consciência dos fenômenos sociais reativaria as relações da ciência com a sociedade e ensejaria a emergência de novos paradigmas.
Nesse sentido, A História (in)Disciplinada: Teoria, ensino e difusão de conhecimento histórico abriu um necessário debate para a situação contemporânea da ciência histórica. Ainda é cedo para declarar uma revolução nas estruturas científicas da historiografia, mas essa consciência de uma anomalia, pressionando as formas disciplinares estabelecidas, é indicativa da iminência de algo significativo do campo e faz dessa empreitada coletiva uma leitura importante. Certamente nas angústias do tempo presente, aprofundando-se com recentes acontecimentos, a hipótese de (in) disciplinar e voltar-se às virtudes epistêmicas, pode se conferir como uma linha de fuga dos atuais dilemas da fazer história no tempo presente.
Resenhista
Luiz Alexandre Pinheiro Kosteczka – Doutorando em História Universidade Federal do Paraná. E-mail: alexkosteczka@gmail.com.
Referências desta resenha
TURIN, R.; AVILA, A.; NICOLAZZI, F. F. (Orgs.). A História (in)Disciplinada: Teoria, ensino e difusão de conhecimento histórico. 1. ed. Vitória: Milfontes, 2019. Resenha de: KOTECZKA, Pinheiro. História (In)disciplinada nos dilemas do presente. Revista de Teoria da História v. 23, n. 01, Jul. de 2020.
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