Com o fim dos processos ditatoriais na região do Prata durante a década de 1980, a historiografia local passou por uma renovação que acompanhou os próprios processos políticos de fins do século XX e início do XXI. Isso se traduziu na formulação de novas perspectivas de análises, na organização de novos arquivos, bem como na formação acadêmica de pesquisadores que procuram desvendar o passado da região. A história do Paraguai vem sendo reconstruída nesse contexto de novos aportes metodológicos e de abertura de repositórios documentais após a queda de Alfredo Stroessner em 1989, que convocam a pesquisadores do país e do exterior.
Durante o século XX, a escrita da história nacional paraguaia foi o eixo tanto de disputas políticas internas como de relações internacionais com as nações vizinhas. Os vínculos do país mediterrâneo com toda a região rio-platense remontam a épocas distantes, inclusive anteriores à chegada dos europeus no século XVI. Porém, foi a partir do conflito militar do século XIX conhecido como a Guerra do Paraguai, Guerra da Tríplice Aliança ou Guerra Guasu que intelectuais paraguaios se voltaram a explicar a história nacional a partir do prisma bélico que o país enfrentou com seus vizinhos Argentina, Brasil e Uruguai.
Paulatinamente, com o decorrer da centúria passada, uma leitura que revisava a interpretação liberal foi-se impondo. Esta interpretação argumentava que, apesar da derrota paraguaia, a Guerra Guasu (grande em guarani) tinha demonstrado o heroísmo do povo e de seu grande líder, o marechal Francisco Solano López, devido a que ambos lutaram até a última gota de sangue para defender a pátria. Os fundamentos desse heroísmo ímpar foram procurados na história indígena, na colonial e na oitocentista. A bravura e a coragem dos paraguaios tinham raízes profundas na história do Paraguai, segundo a interpretação de revisionistas como Juan O’Leary, Manuel Domínguez e Juan Natalicio González.
Com a chegada dos governos militares em 1936 (com Rafael Franco), em 1940 (com Higinio Morínigo) e em 1954 (com Alfredo Stroessner), esta história revisitada adquiriu progressivamente o status de história oficial. Uma série de governos interrompidos por uma violência política que caracterizou a história paraguaia do século XX com uma sequência de guerras civis e golpes de Estado – genericamente denominados de “revoluções” – não mudou esse cenário de autoritarismo que acabou definindo a segunda metade do século passado.
O revisionismo histórico paraguaio impôs a leitura de um passado sem conflitos e de uma sociedade harmônica, o que se converteu em ferramenta de legitimação do regime stronista (1954-1989) que negava as lutas sociais e impunha a figura do próprio Alfredo Stroessner como continuador dos heróis nacionais, entre eles, Solano López. O uso político da história para convalidar o stronismo contribuiu, e muito, para a longevidade do regime. Além do ensino dessa história nas escolas, as restrições impostas à pesquisa acadêmica inibiram a divulgação de outras produções, à exceção de honradas exceções. Cabe lembrar que tais restrições não se limitaram apenas à escrita da história do século XX. Elas monitoravam também a história indígena, a colonial e a oitocentista com o mesmo fervor, ou melhor, com o mesmo controle ideológico que censurava aquelas interpretações que questionassem o revisionismo inaugurado no início do século XX por intelectuais que não tinham maior preocupação com a pesquisa historiográfica, mas tinham, isto sim, vínculos com o Partido Colorado, agremiação que se manteve no poder desde 1946 até os dias atuais, à exceção da presidência de Fernando Lugo (2008-2012).
Daí a importância de diversas produções surgidas principalmente nas últimas duas décadas que, apoiadas na formação acadêmica de seus autores e na análise séria das fontes, permitem desmitificar e desconstruir diversos conceitos do revisionismo histórico paraguaio, consolidados não apenas no Paraguai, mas amplamente difundidos também nos países vizinhos.
Os artigos que integram este dossiê deixam em evidência a renovação historiográfica, no que se refere a metodologias, objetos e perspectivas de análise. Mas também revelam a transnacionalidade tanto dos processos históricos como das pesquisas. A pesquisadora Jéssica de Freitas e Gonzaga da Silva analisa, em “A guerra como instrumento da política imperial brasileira na Bacia do Prata (1852-1858)”, as manifestações de diplomatas brasileiros do século XIX para identificar de que modo e em que momentos foi construído um discurso a favor da guerra como instrumento para a preservação e expansão da dita “civilização” brasileira, em oposição a seus vizinhos do Rio da Prata.
Os historiadores André Mendes Salles, Ana Beatriz Ramos de Souza e Hevelly Ferreira Acruche tomam em consideração elementos vinculados com a Guerra Guasu. O primeiro autor, em “A Guerra da Tríplice Aliança como conhecimento escolar no Paraguai”, escolheu como fonte os livros didáticos utilizados no ensino fundamental no Paraguai para indagar de que modo é apresentado o conflito bélico a partir de seus personagens e das narrativas, contribuindo para a construção da identidade nacional. Ramos de Souza e Acruche, também preocupadas pela construção da memória e da identidade nacional, no texto “O Panteón Nacional de los Héroes e a construção do mito de Solano López”, optaram pelo estudo do processo que levou à transformação do Oratório para a Virgem Maria em Panteão Nacional dos Heróis. Um dos objetivos é observar o momento da consagração de Solano López como herói nacional.
Jiani Fernando Langaro, no texto “Entre viagens e narrativas de desnacionalização”, se debruça sobre relatos de viajantes brasileiros que, entre 1920 e 1940, comentam a suposta situação de desnacionalização da fronteira do Paraná com a Argentina e o Paraguai devido à marcante presença de imigrantes argentinos e paraguaios, bem como ao predomínio das línguas espanhola e guarani.
Por fim, Lorena Zomer, em “Contos de Guido Rodríguez Alcalá: sentidos e representações da ditadura militar do Paraguai (1954-1989)”, reflexiona sobre as representações elaboradas pelo escritor paraguaio Guido Rodríguez Alcalá em torno do stronismo. Partindo de uma análise que vincula história e literatura, a investigadora se centrou nos contos para identificar sua posição crítica da ditadura stronista e dos mitos elaborados pelo revisionismo histórico paraguaio.
Acreditamos que os textos apresentados neste dossiê contribuirão para divulgar os avanços na pesquisa sobre a história do Paraguai e do Rio da Prata, bem como fomentarão a publicação de outros trabalhos em desenvolvimento, principalmente por parte de mestrandos e doutorandos que vêm apresentando importantes investigações sobre o tema e que integram a Rede de Pesquisadoras e Pesquisadores sobre o Paraguay Ñande.
Marcela Cristina Quinteros – Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), MS
Ana Paula Squinelo – Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), MS
QUINTEROS, Marcela Cristina; SQUINELO, Ana Paula. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.23, n.3., setembro / dezembro, 2019. Acessar publicação original [DR]
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