FERES JR., João. A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos. Bauru: Edusc, 2005, 317 p. Resenha de: BOVO, Cláudia Regina. Anos 90, Porto Alegre, v. 16, n. 29, p. 351-355, jul. 2009.
Nos últimos dois séculos, os debates em torno do significado de ser americano não possibilitaram a edificação de uma definição comum que fosse aceita e partilhada pelas três partes do continente Americano. A partir de uma mesma origem cultural ibérica, as porções centro e sul desenvolveram uma complexa relação de aproximação que, ao cabo, legou-lhes a designação integradora e, às vezes, generalizante de latino-americanos. Enquanto isso, devido a uma maior aproximação com os referenciais do velho mundo, a porção norte construiu sua autodefinição, tolhendo-se de qualquer vinculação identificadora com o centro-sul americano.
Diante deste quadro, a obra A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos, do cientista político João Feres Jr., traz à cena um exercício laborioso de reflexão sobre a construção histórica do conceito de Latin America. A partir da tentativa de entender os contornos apreciativos e pejorativos que Latin America adquire nos Estados Unidos, o autor dedica-se à pesquisa dos contornos semânticos que o conceito adquiriu tanto entre os textos acadêmicos, quanto no uso da linguagem cotidiana. Feres parte do princípio que a expressão
Latin America empregada pelos norte-americanos foi, e continua sendo, definida como uma imagem antagônica da America do Norte gloriosa.
Neste exercício histórico e também filosófico, Feres Jr. retoma ícones da Teoria do Reconhecimento, como Hegel, Charles Taylor e Axel Honneth, na tentativa de encontrar respaldo entre as ideias de constituição reflexiva da identidade e a negação radical do reconhecimento, promovida pelos norte-americanos, quando se comparam aos americanos do centro-sul. De acordo com as palavras do próprio Feres Jr., sua obra define-se por um “paradigma hegeliano de etnicidade em direção a uma moral negativa, quase kantiana”.
A divergência entre Feres Jr. e os teóricos do Reconhecimento reside no seu interesse pelo estudo das expressões linguísticas e, substancialmente, por conceber que a construção conceitual da expressão Latin America nega qualquer possibilidade de reconhecimento entre o “Eu” americano e o “Outro” latino-americano.
Atento à questão metodológica, Feres Jr. dialoga com outras referências a fim de evitar a sobreposição pura e simples de teorias.
Neste sentido, a partir da crítica à tipologia das formas de desrespeito de Axel Honneth e, com o auxílio da teoria semântica dos contraconceitos assimétricos de Reinhart Koselleck, Feres Jr. desenvolve uma nova categoria de análise que tipifica as formas de desrespeito praticadas pelos usos linguísticos norte-americanos.
Posto isso, torna-se possível a identificação de uma mesma expressão linguística, como Latin America, com os vários tipos de oposições assimétricas usadas no cotidiano. “O termo rural, ou mesmo o termo católico, dependendo do contexto onde é usado pode sugerir atraso” (oposição assimétrica temporal) “e inferioridade” (oposição assimétrica cultural ou até racial). Como a intenção de Feres Jr. é verificar as consequências ético-morais da linguagem de identificação praticada pelos americanos no ato de designar os latino-americanos, ele precisa resguardar a pluralidade de formas de denegrir a imagem do outro, as quais se encontram presentes nesses usos linguísticos.
Ao longo do capítulo dois, Feres demonstra que as referências pejorativas destinadas à identificação dos americanos das porções centro-sul aparecem em dicionários, jornais e até em discursos presidenciais desde o final do século XIX. Tais menções apresentam a expressão Latin America como herdeira de um conjunto de características que os norte-americanos julgavam negativas, como a religião católica, a mestiçagem étnica, o tradicionalismo das instituições político-sociais, o machismo, a acomodação em relação ao trabalho, entre outras. Latin America sedimenta-se como um território sem organização e ordem, seja esta cultural, política ou mesmo econômica.
A produção acadêmica do Latin American Studies também não se eximiu de colaborar com a extensão e a divulgação de visões pré-concebidas sobre a Latin America. Dialogando com as obras de Samuel Huntington, Lyle Maclister e Teodore Wyckoff, Feres apresenta no terceiro e quarto capítulos as análises acadêmicas sobre a modernização da Latin America e a literatura da estabilidade política latino-americana, reconhecendo-a como promotora dos interesses da política externa norte-americana durante os anos 60.
De acordo com Feres, estes cientistas sociais colaboraram para justificar, junto à opinião pública dos EUA, a intervenção e o treinamento militares em projetos de coibição do desenvolvimento do comunismo no continente. Atrás do discurso da estabilidade política e da modernização latino-americana, eles sustentaram a fraqueza política, militar e econômica da região. Segundo o argumento de Feres, “salvar a Latin America do comunismo representava também um meio de garantir a continuação da influência e rentabilidade do capitalismo na região”. É importante destacar que, muitas vezes, devido a interesses econômicos e territoriais na região centrosul americana, os norte-americanos supervalorizavam as depreciações como forma de justificar o seu domínio natural na condução do progresso continental.
Até mesmo a produção de livros-textos para a introdução ao estudo de Latin America nas universidades dos EUA, ainda hoje, contribuem com a reprodução de estereótipos negativos sobre a cultura latino-americana. Feres finaliza sua construção argumentativa, apresentando alguns best-sellers utilizados nas graduações americanas: dentre os principais estão Modern Latin America, History of Latin America, Latin America: a concise interpretative history e Latin American politics and development. O que se percebe, ao longo da leitura do sétimo capítulo, é a preocupação de Feres em destacar, por meio das capas das referidas obras, a questão da depreciação racial que aparece velada no texto escrito. Em tais capas, obras de artistas sul-americanos são apresentadas fora do seu contexto de produção, sendo utilizadas para corroborar duas visões bem preocupantes sobre a Latin America: “um objeto a ser apropriado ou usado, ou um perigo a ser gerenciado ou evitado”.
Ao longo de mais de trezentas páginas, Feres Jr. nos conduz a um universo de hostilidade justificada, que nos choca num primeiro momento, enfurece-nos em seguida e, finalmente, sensibiliza- nos. Choca-nos, pois, diante da construção conceitual de mais de um século, fomos diminuídos e identificados, sob os mais diversos aspectos, como homens fora do tempo da prosperidade do Novo Mundo. Enfurece-nos, porque, através da medida de valor norte-americana, incorporamos uma incapacidade natural de superar nossos próprios desafios, deixando aparentar que nascemos e crescemos tortos por nos desviarmos da ajuda e, principalmente por invejarmos o estilo de vida americano (American way of life). E, finalmente, sensibiliza-nos, pois não queremos ter para com eles a mesma atitude de desprezo, receio ou preconceito.
Porém, o trabalho de Feres merece duas ressalvas. A primeira diz respeito à ideia de que os Estados Unidos manipularam o continente Americano livremente, como se agissem isoladamente, sem o apoio e mesmo a cumplicidade das autoridades políticas latinoamericanas.
Na realidade, muitos eventos se desenrolaram seguindo interesses de grupos políticos e financeiros pertencentes aos próprios países latino-americanos.
A segunda ressalva refere-se ao perigo do leitor, munido das análises oferecidas por Feres Jr., tornar os Estados Unidos o algoz latino-americano, como o Caliban de Rodó, culpando-o por nossos próprios tropeços.
Apesar dessas observações, não podemos deixar de salientar o cuidado de João Feres Jr. em situar claramente suas referências teóricas, desenvolvendo seus argumentos de modo a não tornar absoluto o discurso da alteridade, justificando o enaltecimento do “outro” americano (latino-americanos). Além disso, A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos nos permite mais uma indagação a respeito de como concebemos nossa própria identidade e o pertencimento ao continente Americano.
Em certa medida, o norte construiu sua identificação como americanos, enquanto ao centro-sul coube, ora de forma imposta, ora de maneira endógena, a designação de latino-americanos. Fica difícil não reconhecer que o norte soube construir sua herança derivada diretamente do nome continental; ao passo que o centro-sul recebeu um nome adjetivado a partir do designativo étnico “latino”, cuja procedência é externa ao continente Americano. Dentro dessa perspectiva, eles seriam os americanos, “filhos legítimos” do Novo Mundo, enquanto os outros povos que vivem no continente se transformariam em “filhos bastardos”, frutos de uma mistura mal identificada e, portanto, mal resolvida.
Assim, enquanto a América Latina não conseguir estabelecer sua identidade a partir do que ela realmente quer ser, continuará sendo alvo de estereótipos e definições generalizantes como aqueles apresentados pela obra de João Feres Jr.
Cláudia Regina Bovo – Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Mato Grosso, doutoranda em História/Unicamp. Endereço Eletrônico: claubovo@yahoo.com.
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