A História deve ser dividida em pedaços? – LE GOFF (FH)

LE GOFF, Jacques. A História deve ser dividida em pedaços? São Paulo: Editora UNESP, 2015. Resenha de: COPPES JÚNIOR, Gerson Ribeiro. Forjando o historiador: periodização e longa Idade Média. Faces da História, Assis, v.2, n.2, p.202-206, jun./dez., 2015.

O falecimento de Jacques Le Goff, em abril de 2014, foi tão impactante quanto a morte de Eric Hobsbawm dois anos antes. Com a partida de Le Goff, abria-se uma lacuna, um vazio nos estudos medievais daquele que foi um dos seus escudeiros mais fiéis na luta contra as sombras que insistiam em ser colocadas sobre esse período; assim como no campo metodológico, onde a perda não fora menor para os fundamentos da teorização da chamada História Nova.

O último livro de Le Goff – A História deve ser dividida em pedaços?2 – mostra, nas palavras do autor, um “livro-percurso” que atravessa sua trajetória como historiador. As indagações as quais Le Goff se propôs a investigar seriam como a emergência de uma mundialização, implicando nos questionamentos da noção de periodização ou da ação do homem sobre o tempo.

Se o recorte do tempo em períodos é importante para a História, deve-se levar em consideração que esses recortes não são neutros e, além disso, são objetos de disputa. Desta forma, para compreender as vicissitudes da periodização – sua necessidade ou não, remetendo à pergunta-título – Le Goff examinou as motivações que estiveram presentes na formação de dois períodos, a Idade Média e o Renascimento.

Apesar das diferentes tentativas de periodização que se seguiram até o século XV, a noção de Idade Média como período singular só surgiria entre os séculos XIV e XV, quando certos grupos de escritores e poetas, principalmente na Itália, pressupunham viver em um período distinto e novo e precisavam definir um nome para o período do qual apontavam estar saindo.

Mesmo que o primeiro autor a utilizar o termo “Idade Média” tenha sido Petrarca no século XIV, seu uso não seria corrente até o século XVII e, assim, iniciou-se também sua associação a um tempo sombrio, visto claramente como exemplo na tradução da expressão para o inglês britânico – Dark Ages.

Seria necessário percorrer até o século XIX para que tal conotação negativa fosse desvinculada e se tornasse possível vislumbrar um período brilhante. No século XX, Marc Bloch e os Annales perseguiram de forma semelhante uma época com seus brilhos e sombras. No entanto, o aspecto negativo resistiu a essas tentativas de rever esse período sob uma perspectiva diferente.

A construção de uma visão negativa da Idade Média, para Le Goff, expõe como a periodização da História não era e não é um processo neutro e passível de modificações conforme o decorrer do tempo. A própria noção de Renascimento seria um exemplo desses aspectos de construção/reconstrução, visto que o termo não existia antes do século XIX e demorou a ser imposto sobre a Idade Média.

Da mesma forma, a noção de Antiguidade que, na Idade Média, referia-se somente à Grécia e a Roma, se transforma, posteriormente, nesse processo que emerge no período medieval conveniando, atualmente, em chamar de Antiguidade Tardia o período datado do século III ao VII, marcando nessa transição para a Idade Média uma transformação longa e dinâmica.

A necessidade de fracionar a História surgia em função de sua própria evolução como saber particular e matéria de ensino. Se os monges e cronistas prefiguravam um saber histórico, os progressos da erudição na análise das fontes no século XVII indicavam uma “revolução” do método. O amor pela verdade passava pela análise da prova, pois a construção de periodizações baseava-se em estabelecer uma verdade histórica.

A História como matéria de ensino, no entanto, só surgiria como tal no século XVIII e XIX e ainda presa a exemplos morais ligados a noção de historia magistra vitae. A evolução do ensino de História durante o século XIX refletia duas preocupações: manter a religião e tomar consciência da nação. A transformação da História em matéria de ensino levou à sistematização em períodos que tornasse capaz captar seus pontos de alternância. E nesse aspecto, durante o século XIX, ressurge a oposição entre Idade Média Obscura e Renascimento das Luzes.

Nos capítulos Nascimento do Renascimento e O Renascimento Atualmente, Le Goff continua sua análise agora buscando a invenção dessa expressão para denotar um período singular, o Renascimento, e como o período foi abordado pelos seus teóricos durante o século XX.

Se a expressão Idade Média surge com Petrarca, no século XIV, também surge com ele a noção de um novo período em oposição a um anterior, para a qual seria designada uma expressão própria somente no século XIX.

Na História da França de 1833, Jules Michelet apresentava uma visão positiva de Idade Média como período de luz, criação. No entanto, no decorrer de sua trajetória a Idade Média, que atuava como um “espírito materno” se tornava longínqua, distante, uma inimiga. Se até aquele momento não havia o hábito de se dividir a História em períodos, com exceção da divisão entre “antigo” e “moderno”, e a adição do tempo mediano, “medieval”, criado por Petrarca, Michelet cunhou o Renascimento com maiúsculo como um movimento distinto na História oposto ao obscurantismo do período medieval.

No século XX, Le Goff aponta que o discurso enaltecedor do Renascimento, que atravessou o século XIX, continuou com nomes como Eugenio Garin, Erwin Panofsky e Jean Delumeau. Eugenio Garin apontava que a maioria dos historiadores do século XX havia reavaliado a Idade Média e rebaixado o Renascimento. Portanto, ele buscava em seus trabalhos destruir essas “catedrais de ideias” sobre o período medieval. Garin enunciava duas ideias centrais na análise da relação entre Idade Média e Renascimento: a Itália como centro e coração do Renascimento; e o novo homem que ela forma reunindo nesse território todos os conflitos dessa época. Erwin Panofsky apontava ainda para uma pluralidade de renascimentos precursores e Jean Delumeau apontava que dois aspectos que faziam do renascimento um período completo eram a descoberta da América e a circum-navegação mundial.

Nos capítulos A Idade Média se torna “os tempos obscuros” e A longa Idade Média, as visões sobre o Renascimento são confrontadas com a construção em torno de uma Idade Média como período de trevas. Le Goff busca a construção uma nova visão sobre esse período. Se a necessidade de acessar a Antiguidade levou ao desprezo dos humanistas de um dito Renascimento pela Idade Média, que teriam ignorado esse período, Le Goff se põe a apontar o inverso, como a Idade Média se apropriou e deu continuidade a certos aspectos da Antiguidade.

Entre o século XV e XVIII a ideia de uma Idade Média ligada às trevas era associada a um recuo da racionalidade dando lugar ao sobrenatural. Porém, a racionalidade se entremeou de certa forma na teologia chegando a transformá-la em ciência no século XIII. Apesar da periodização de Santo Agostinho – os seis períodos na História como metáfora para as seis idades do homem – ter prevalecido, existiam clérigos que discordavam da ideia de que o “mundo envelhece” e se reconheciam como “modernos”.

Le Goff frisava, contudo, a dificuldade do uso do termo moderno durante a Idade Média, pois poderia ter um sentido tanto laudatório quanto pejorativo por essa concordância/discordância com o envelhecimento do mundo. A noção de moderno era incompatível com a finitude das seis idades.

Para Le Goff, o renascimento intelectual do século XII, cujas mudanças levaram esses clérigos a flertarem com a concepção de moderno, foi conservado sob uma zona cinzenta. A escolástica continuou como objeto principal da crítica e rejeição dos letrados entre os séculos XVI e XVIII, como Voltaire, que apontava que a teologia escolástica era uma filha bastarda de Aristóteles.

Apesar da reabilitação da Idade Média no século XIX, Ernest Renan ainda apontava a escolástica como barreira para o delicado; os homens e mulheres medievais ainda eram bárbaros. Desta forma, Le Goff delineava uma Idade Média multifacetada e também apontava, como contraposição, que certos aspectos atribuídos a esse período estavam localizados, temporalmente, no Renascimento, como os pogroms, a inquisição e os movimentos milenaristas.

No capítulo A Longa Idade Média, Le Goff retoma sua tese e intenta provar que não haveria mudança fundamental durante o século XVI e XVIII que justificasse a separação entre Idade Média e Renascimento, um período novo. O historiador visa a apontar as continuidades do período medieval no mundo “moderno” e, assim, apesar da descoberta da América, em 1492, ser apontada por Delumeau como ponto característico da singularidade do Renascimento, Le Goff expõe que a América só se tornaria interlocutor da Europa após as Independências entre o fim do século XVIII e XIX. Não existia um mundo unificado, mas territórios do mundo.

As carestias na área agrícola foram frequentes desde o século X até o século XVIII e a alimentação europeia foi primordialmente vegetal até o século XVIII. O século XVI foi um período marcado pelas guerras de religião e o cristianismo é majoritário até o século XVIII. Apesar do assassinato de Carlos I, em 1649, na Inglaterra, a monarquia francesa conservou-se até o século XVIII.

Se Cristóvão Colombo descobre a América em 1492, ele ainda era um homem da Idade Média, pois sua preocupação consistia em trazer aos pagãos/indígenas todos os preceitos e fundamentos condizentes à doutrina e à fé cristã. Nisso, Le Goff indaga se no prolongamento do período medieval o que é mais importante: as continuidades ou as rupturas? Desta forma, para Le Goff, a Idade Média só se encerraria com o advento da indústria moderna e das enciclopédias. O Renascimento do século XV e XVI é, portanto, encarado como o último renascimento dessa longa Idade Média prenunciando os tempos modernos.

No último ensaio, Periodização e Mundialização, Le Goff tenta voltar à ideia inicial do texto, de entender como a mundialização implicava no questionamento da noção de periodização. Para o autor, a periodização se torna indispensável para o historiador compreender o tempo tendo em vista que a própria periodização seria a necessidade do homem de agir sobre o mesmo. A mundialização causaria essas questões em torno do tempo, das continuidades, rupturas, dos modos de pensar a História. A periodização seria deste modo, o meio encontrado por Le Goff de problematizar essas questões, esclarecendo como a humanidade se organiza e evolui no tempo. Desta forma, a História deveria sim ser dividida em partes.

Le Goff, em A História deve ser dividida em pedaços?, retoma problemas que já haviam sido expostos no livro Uma Longa Idade Média (2008) evidenciando como o conceito de longa Idade Média se desenvolveu nos trabalhos do autor a partir da década de 1980. Os problemas levantados por Le Goff durante sua pesquisa em torno da extensão temporal da Idade Média encontraram certa continuidade em alguns historiadores.

Jerome Baschet, no livro A civilização feudal (2006), prefaciada por Le Goff, ampliava o conceito de longa Idade Média, utilizando-a para analisar uma “herança medieval” no México durante a colonização. No tópico intitulado “Periodização e longa Idade Média”, Baschet defende que a Idade Média seria um antimundo, um mundo de tradição oposto ao moderno, e essa imagem oposta só seria possível pela ruptura representada pela Revolução Industrial, e não pelo Renascimento. O estudo da Idade Média seria, então, um exercício de alteridade.

A obra A História deve ser dividida em pedaços? poderia ser vista, como questiona Virginie Tournay, como um testamento intelectual? (2014). O esforço de Le Goff para situar suas obras na historiografia já estava presente desde os anos 2000, como em Uma Longa Idade Média. Este livro poderia ser visto como a última peça dessa construção de sua trajetória, durante a qual, Le Goff, de próprio punho, visava à agregação de todas essas discussões que manteve, reforçando os caminhos tomados durante sua carreira e um esforço próprio do autor de se autoperiodizar.

Notas

2 Livro originalmente lançado em fevereiro de 2014, na França, sob o título Fault-il vraiment découper l’historie em tranches?, publicado no Brasil pela Editora UNESP, em 2015.

Referências

BASCHET, Jerome. A Civilização Feudal: do Ano Mil à Colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006.

LE GOFF, Jacques. A História deve ser dividida em pedaços? São Paulo: Editora UNESP, 2015.

________. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

TOURNAY, Virginie. Faut-il vraiment découper l’histoire en tranches?Lectures [online], Lescomptesrendus, 2014. Disponível em: <http://lectures.revues.org/15220>acesso em: 09 de novembro 2015.

Gerson Ribeiro Coppes Júnior – Mestrando em História – Programa de Pós-graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. Bolsista CNPq. Este trabalho é resultado de pesquisa desenvolvida no âmbito do Projeto Temático “Escritos sobre os Novos Mundos”, financiado pela FAPESP. E-mail: gersoncoppes@ hotmail.com.

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Itamar Freitas

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