A história deve ser dividida em pedaços | Jacques Le Goff
Atualmente vivemos uma época que o papel da História tem sido questionado socialmente, principalmente como disciplina escolar. Ao ensinarmos o papel da História para a sociedade buscamos apresentar marcos cronológico para facilitar a aprendizagem didática de alunos e outros leigos, sendo um dos principais desafios para os historiadores à formulação desses cortes temporais. Partindo desses questionamentos e os efeitos da mundialização na sociedade, foi produzida a obra A história deve ser dividida em pedaços? escrita por Le Goff, publicada em 2014 pela Editora du Seuil e, no Brasil, em 2015 pela Editora UNESP.
Le Goff foi um dos principais representantes da terceira geração dos Annales e especialista no período Medieval. Seus escritos buscaram construir outra visão da Idade Média a partir da perspectiva de uma antropologia histórica do ocidente europeu. Em A história deve ser dividida em pedaços? o autor realizou sua última defesa sobre a importância da época Medieval e constrói uma argumentação em favor do conceito Longa Idade Média.
Didaticamente, tem se ensinado que a Idade Média se encerrou em 1453 com a tomada de Constantinopla pelos turcos Otomanos. Entretanto, ao se fazer uma defesa em favor do conceito de Longa Idade Média, Le Goff mostrou que a o período Medieval só terminou com as Revoluções do século XVIII, a Industrial e Francesa. Ao mesmo tempo, o autor rompeu com a ideia que o Renascimento acabou com a Idade Média, mas é postulado que a renascença foi uma renovação e prolongamento do medievo.
A história deve ser dividida em pedaços? está subdividida em oito capítulos, preâmbulo e prelúdio. No preâmbulo, Le Goff faz uma breve reflexão sobre as motivações que o levaram a falar sobre a história e suas periodizações. Ele assinalou que seu escrito começou em 2013, período que cada vez mais sentimos os efeitos cotidianos da mundialização nas nossas vidas. Nessa parte, o autor rememorou sua trajetória como historiador, especializado na Idade Média, e seu concurso para professor presidido por Fernand Braudel. Ao final, Le Goff dissertou que seu escrito mostrou uma nova percepção do medievo, a chamada Longa Idade Média.
No prelúdio, Le Goff afirmou sobre a necessidade que as sociedades humanas sempre tiveram para a realização da marcação do tempo, primeiramente com os calendários solar e lunar e posteriormente organizamos o passado através de épocas, ciclos, marcos, períodos e Idades. O autor chamou a atenção para o termo período que significava um caminho circular, podendo ser uma ideia de ruptura ou continuidade temporal.
Ao final, Le Goff fez uma breve relação histórica entre a Idade Média e o Renascimento, mostrando as dificuldades de datação para o início da Renascença. Além disso, é assinalado que a palavra século tem seu aparecimento ao longo de XVI, tendo um significado diferente do que estamos acostumados.
No primeiro capítulo Antigas periodizações, Le Goff apresentou as divisões da História por religiosos a partir da perspectiva da tradição judaico-cristã. Nessa concepção, apareceram à divisão proposta por duas figuras Daniel (Antigo Testamento) e do Santo Agostinho. Ambas as cronologias são inspiradas pelos ciclos da natureza: Daniel pelas quatros estações da natureza e Santo Agostinho pensando nos seis dias da criação.
Durante a Idade Média ocorreu o surgimento de outras concepções de tempo, uma delas é a de Jacopo de Varazze sendo uma continuidade da tradição religiosa, mas que propunha uma divisão sanctoral (através da vida dos santos) e a temporal (liturgia). Ao final do capítulo, Le Goff dissertou sobre a proposta de Voltaire em Setecentos que seria através de “século”. Entretanto, para Voltaire século significa uma era de apogeu e nessa perspectiva a História teria passado por quatro apogeus a Grécia Antiga, a administrações de Júlio Cesar e Augusto em Roma, a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos e a era de Luis XIV.
No capítulo Aparecimento tardio da Idade Média, Le Goff assinalou as transformações sofridas no Império Romano após a conversão de Constantino. Nesse capítulo apresentou que até o início da Idade Média é algo de difícil datação e a uma polêmica sobre seu começo.
O desejo de periodização da História se intensificou no século XIV. Na Idade Média houve o aparecimento dos conceitos de antigo e moderno buscou-se explicar o que seria cada um. A partir disso, associou-se que o período que estavam vivendo seria no meio desses. Os poetas e escritores no século XV acreditavam que o fim do Império Romano encarnava uma arte e cultura própria, diferente do que estavam vivendo. Assim, a Idade Média tornou-se um período intermediário entre uma “Antiguidade imaginária” e uma “Modernidade imaginada”.
O termo Idade Média foi cunhado por Petrarca no século XIV, mas o conceito não parece ter sido corrente até o fim do século XVII. Nesse período, pensadores ingleses começaram a associar o período Medieval com tempos sombrios e que moldou a mentalidade até hoje sobre essa época. No século XIX, o Romantismo tentou reabilitar o termo Idade Média tirando sua negatividade. Mas, apenas no século XX com a escola dos Annales buscou-se dissociar obscurantismo com a Idade Média, mostrando que foi um período de criatividade e florescimento de várias tendências. Ao tratar das conotações sobre a Idade Média, Le Goff mostrou que a periodização da história jamais é um ato inocente ou neutro, sendo uma divisão artificial e provisória.
No capítulo seguinte História, ensino, períodos, Le Goff assinalou o papel do Historiador para compreender a lógica do tempo a partir de um formato contínuo e global sobre o passado.
No século XVII ocorreu um primeiro desenvolvimento das pesquisas e tratamento de fontes históricas. A partir disso, a história começou a ganhar mais força socialmente. Em 1802, ela se tornou obrigatório na França com Napoleão Bonaparte. Com a Revolução Francesa, a História começou a ser moldada sobre novas concepções e houve a criação de cátedras em diversos países, mostrando o fortalecimento que a História estava ganhando nas Universidades.
No capítulo Nascimento do Renascimento, Le Goff assinalou que o termo Renascimento apareceu no século XIX e com as obras de Michelet começou a ocorrer uma distinção entre renascença e Renascença. O uso do “R” seria para intensificar a força transformadora que esse período teve para a História. Em 1841, em um curso elaborado por Michelet foi apresentado às bases do período renascentista que teve sua origem nas regiões da Itália.
Em Renascimento Atualmente Le Goff analisou as pesquisas mais recentes sobre o período, mostrando que todas elas são apresentadas uma relação da Idade Média com o Renascimento. Com o século XX, houve uma melhora da “reputação” do período Medieval a partir de novos estudos. Aquela concepção de um período obscuro e decadente começou a ser abandonado. Algumas interpretações sobre o Renascimento buscaram mostrá-lo como uma ideia de retorno a antiguidade e outros como uma continuação da evolução do pensamento medieval.
Ao final do capítulo o autor mostrou que a História precisa ter uma flexibilização da sua periodização, que o Historiador não deve seguir a risco as datações e marcas, pois existem períodos de continuidades e rupturas que se entrecruzam.
No sexto capítulo, A idade Média se torna “os tempos obscuros”, Le Goff apresentou que houve um desprezo da elite cultural do Renascimento em relação a Idade Média, essa depreciação originou termos como Idade das Trevas.
A elite cultural acreditava que não havia concepções culturais e estéticas durante o período Medieval. Entretanto, como sabemos, a Idade Média foi responsável pela criação de diversas obras primas. Le Goff assinalou a importância que teve Giotto, a passagem da arte românica para a gótica e a Divina Comédia de Dante para a cultura e artes do medievo.
Ao final do capítulo, o autor apresentou um panorama sobre a mentalidade do período a partir da ideia de bruxaria. O termo surgiu com Tomás de Aquino que seria uma humana que fez um pacto com Diabo. A personagem da bruxa ganhou força durante o período do Renascimento, mostrando como existiu uma relação das mentalidades do Medievo para a Renascença.
Além disso, Le Goff chamou a atenção para a redução do latim nessa sociedade que passava por transformações. Com a diminuição da língua latina houve o aparecimento das primeiras línguas nacionais.
No penúltimo capítulo, Uma longa Idade Média, Le Goff apoiou-se na concepção de Braudel sobre longa duração para pensar o termo Longa Idade Média. Para ele, diversas invenções e instrumentos de navegação utilizados durante o “descobrimento da América” tiveram sua origem nos progressos técnicos do período medieval. O autor notou que as transformações que levarão ao “descobrimento da América” foram resultados da continuidade de um progresso econômico que vinha com a produção e uso de metais. Para Le Goff, o Renascimento “só fez prolongar a Idade Média” (p. 125) que teve seu fim apenas com as revoluções Industrial e Francesa no século XVIII que mudaram completamente aquela sociedade e a concepção de tempo da humanidade.
No último capítulo, Periodização e Mundialização, serviu como a conclusão da obra, Le Goff reafirmou que o Renascimento seria um subperíodo da Idade Média. Além disso, ele faz uma clara defesa da noção de longa duração mostrando ser uma concepção fundamental para entender as combinações de continuidades e descontinuidades na História.
A obra A história deve ser dividida em pedaços tem uma importância ímpar para refletirmos sobre as periodizações e os marcos cronológicos da história. Como texto póstumo de Le Goff é uma defesa de sua vida como especialista no período Medieval, pois mostrou como não devemos entender esse período com juízo de valores e quebrar concepções errôneas sobre a época.
Com uma leitura agradável e uma linguagem clara, o livro deve estar presentes nas diversas prateleiras de Historiadores, não apenas Medievalistas. Nele vemos a defesa ao direito a História que a sociedade em um mundo cada vez mais conservador e globalizado precisa para compreender como é fundamental entendermos a relação do homem com o tempo.
Thiago Sampaio – Mestre em História pela UNESP/Assis.
LE GOFF, Jacques. A história deve ser dividida em pedaços. São Paulo: Editora UNESP, 2015. Resenha de: SAMPAIO, Thiago. Le Goff e a periodização da História. Dimensões. Vitória, n.43, p. 262-267, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]