A História deve ser dividida em pedaços? | Jacques Le Goff

Em um dos seus últimos trabalhos, Jacques Le Goff discute a propriedade ou não de se dividir a História em períodos ou, como consta do título, em pedaços. O livro encontrase distribuído em doze itens: Preâmbulo (pp.7-9); Prelúdio (pp.11-14); Antigas Periodizações (pp.15-23); Aparecimento Tardio da Idade Média (pp.25-32); História, ensino, períodos (pp.33-43); Nascimento do Renascimento (pp.45-58); O Renascimento atualmente (pp.59-73); A Idade Média se torna “os tempos obscuros” (pp.75-95); Uma Longa Idade Média (pp.97-129); Periodização e Mundialização (pp.131-134); Agradecimentos (pp.135-136) e Referências Bibliográficas (pp.137-149).

Nesse trabalho, Le Goff postula claramente a favor da ideia de uma Longa Idade Média e/ou, se desejarmos, uma Idade Média Tardia, que seria encerrada com as chamadas “revoluções” Industrial e Francesa no século XVIII. Em contrapartida, contesta a ideia de um Renascimento que teria rompido com o período medieval nos séculos XV e XVI.

Tradicionalmente e, também, didaticamente, costuma-se situar o termo da época medieval em meados do século XV, mais precisamente em 1453, marcada por dois acontecimentos destacados para tanto. De um lado, fala-se da tomada de Constantinopla pelos turcos Otomanos; de outro, do término da Guerra dos Cem Anos, entre a França e a Inglaterra.

Ora, por acaso, detendo-nos nesses episódios, retomamos a velha questão da arbitrariedade das cronologias e que, no que tange à crise da ordem medieval (retração no século XIV e crescimento no século XV), ela não vem a ser uma questão menor, mas de importância capital, uma vez que, se a aceitamos aleatoriamente como instaurada nesses mencionados séculos, negamos todo um conjunto estrutural que prossegue existindo, que é herdeiro direto dessa crise e que, necessariamente, dá prosseguimento a diversos elementos que dela são oriundos.

Jacques Le Goff reflete aqui, sobre o conceito hoje amplamente discutido, da existência da mencionada “Longa Idade Média”, fazendo com que ela se estenda até o século XVIII e, noutras partes, ainda mais adiante desse século como, apenas para citarmos um exemplo, diversas regiões e/ou áreas do Oriente europeu.

Dessa maneira, uma primeira questão que a obra nos coloca, tendo em mente esse conceito de uma “Longa Idade Média”, é aquela do significado desta “crise da ordem medieval” e se ela efetivamente vem a ser uma “crise” ou uma “inflexão”, um momento de “readaptação” daquela ordem em virtude das transformações estruturais ocorridas durante o período conhecido como Idade Média Central, que compreenderia os séculos de XI a XIII.

Nesse trabalho, Le Goff busca demonstrar uma tendência: é a de aceitarmos não a ideia de uma “crise” em si mesma, com todo o peso que esse conceito pode acarretar, mas que se trata de uma readaptação, de um reordenamento. Assim, pois, seu significado é que se trata de um momento de inflexão, de readaptação, resultante da própria dinâmica da Sociedade Feudo-Clerical (para utilizarmos aqui a ideia do professor Hilário Franco Júnior). Dessa maneira, tal rotulação – apesar da precariedade de que todas elas sofrem – para poder constrastá-la com outra, utilizada para essa época dos séculos XIV e XV, pelo professor José Luis Romero, que dela trata lançando mão de um título que até podemos acreditar mais adequado: o de “mundo feudo-burguês”. No título de sua obra de 1980, a expressão por ele utilizada é de Crisis y Orden en el Mundo Feudo-Burgues (México, Siglo XXI, 1980), que seguindo as posturas de Le Goff, nos parece mais apropriada para as estruturas desse momento histórico. Tal opção nos indica estarmos não mais dentro de uma “ordem medieval clássica”, mas no momento exato em que a dinâmica da Sociedade Feudo-Clerical havia chegado ao máximo de sua expansão, ou seja: havia chegado aos seus limites possíveis e as ambiguidades nascidas dessa expansão chegaram ao ponto de inflexão, determinando a necessidade de sua reorganização. Prova disso, como salienta Le Goff é que, a propalada “crise” é muito mais quantitativa que qualitativa, uma vez que as mutações já estavam latentes, alimentando-se e crescendo graças a ela mesma.

A periodização indica uma ação humana sobre o tempo e sublinha que seu recorte não é neutro (p.12). Para santo Agostinho, por exemplo, há uma associação com as idades humanas, estabelecendo-se seis idades da vida e que haveria “uma decreptude progressiva com o envelhecimento do mundo, que encontrava-se em sua sexta idade. Essa seria, até o século XVIII, a postura que impediu o nascimento da idéia de progresso. O homem, como imago Dei no mundo medieval “sempre encontrará em si os dons de renovação do mundo e da humanidade que, mais tarde, serão chamados de renascimentos” (p.19).

O desejo de periodização aparece apenas nos séculos XIV e XV. Na Itália desses séculos surge a ideia do aparecimento de uma cultura inédita, implicando uma visão pejorativa do período anterior, mas a expressão Idade Média não é corrente até fins do século XVII, triunfando entre os filósofos do século XVIII (pp.26-27). Já no século XIX, perde essa conotação pejorativa com o aparecimento da escola dos Annales. Todavia, ainda nos dias atuais, permanece como uma expressão costumeiramente utilizada no sentido anterior.

Como ressalta Le Goff, uma periodização jamais é um ato neutro ou inocente, mas é obra do homem sendo simultaneamente artificial e provisória, evoluindo com a própria história. Ela permite controlar melhor o tempo passado, mas também sublinha a “fragilidade desse instrumento que é a história” (p.29). O termo “humanismo” inexiste antes do século XIX e, ao redor de 1840, “ele passa a designar a doutrina que coloca o homem no centro do pensamento e da sociedade”. O “Renascimento” leva tempo para se impor à Idade Média e tem seu lugar privilegiado na Itália, onde encontramos a emergência desse termo (pp.30-31). Todavia, trata-se mais da manifestação de grupos – especialmente o mercantil – que, apesar de nascerem na Idade Média, não eram reconhecidos pela sociedade de ordens/estamental da época.

“Com a periodização, o historiador formata uma concepção do tempo e simultaneamente oferece uma imagem contínua e global do passado, que acabamos por chamar `história´”. “Aquilo que é atualmente `história´ constituiu-se em seguida de maneira lenta, primeiramente em saber particular, depois em matéria de ensino”. É somente no século XVII que se inclui o ensino da história, antes um saber particular dos cronistas e, em 1802 Napoleão Bonaparte torna o seu ensino obrigatório, mesmo que limitado” (pp.33-38). Como matéria de ensino, o nascimento da história ainda dizia respeito ao domínio intelectual da Europa (p.42). E é apenas no decorrer do século XIX que nasce a oposição entre um “Renascimento das Luzes” e uma Idade Média obscura (p.43).

Se Petrarca (século XV) já fala em uma época obscura, a ideia do “Renascimento” data do século XIX, com Jules Michelet (1798-1874), que enxerga a Idade Média como uma época bizarra, monstruosa e artificial (pp.45-48). O Renascimento colocaria a história em movimento cujo intérprete é o historiador contra a solidão dos cronistas medievais (p.49). Era a visão do retorno de um passado glorioso, a latinização geral da cultura – âmago do “Renascimento para Jacob Burckhardt – das festas profanas, do livre arbítrio… O “Renascimento” leva a uma laicização que tende a se generalizar (pp.53-58). E ainda no início do século XXI como no XX, o “Renascimento” continua a inspirar escritos dos historiadores que, “em sua maior parte, mesmo com reservas, são laudatórios” (p.59). O autor perpassa as ideias de Michelet, Burckhardt, Jean Delumeau dentre outros, onde transparecem perspectivas de evoluções e rupturas na instrução e da educação, da vida cotidiana dominada pelas festas… A modernidade no campo religioso apresentando o “Renascimento” como um período completo a partir também do descobrimento da América, da circunavegação mundial, da ruptura da cristandade latina entre protestantismo e catolicismo (pp.53-72).

Para Le Goff o “Renascimento” que didaticamente abre a chamada “Idade Moderna” (1453-1789) não vem a ser um período particular. Tal seria um último “renascimento” de uma Longa Idade Média. Disto destaca que a mundialização cultural e descentralização do Ocidente deve ter a sua periodização questionada, que ela é necessária para o historiador, todavia deve possuir maior flexibilidade (pp.71-73). O período medieval não apenas não ignora a existência dos antigos (pagãos) mas os utiliza frequentemente e lhes dá continuidade… A leitura e a escrita são disseminadas na Idade Média quanto na Antiguidade… No século XIII observa-se a teologia transformando-se em ciência devido à profunda racionalidade do pensamento científico escolástico na Idade Média. Vem da Itália o conflito da periodização histórica com a ideia do “Renascimento” (p.77-78). Se santo Agostinho propunha uma ideia pessimista das seis idades do mundo (mundus senescit) os clérigos acabam por se insurgir contra essa ideia dizendo que seus contemporâneos deveriam se reconhecer com modernos em relação aos antigos (p.80).

Um ponto de viragem para a modernidade inédita afirma-se com o Policraticus de João de Salisbury. No século XIV a imitatio Christi, que anteriormente fundamentara, por exemplo, o nascimento da ordem franciscana, reaparece no século XVI como a devotio moderna. Já no século XII o “homem é o objeto e o centro da Criação” (p.83). O século XVI traz a ruptura da Reforma, mas o centro é sempre o cristianismo e no XVII, os letrados não crentes são vistos como libertinos (p.86).

Se existe um campo em que a novidade do “Renascimento” parece inegável é o da arte. Há obras primas em abundância na Idade Média – especialmente nas iluminuras – mas que são pouco visíveis… O destaque da arte cria também o artista, sendo que o primeiro a ser reconhecido pelos contemporâneos é Giotto (p.88) célebre –dentre outras razões – por seus retratos de são Francisco. Assim, o retrato é uma invenção capital da Idade Média, demonstrando a valorização do indivíduo. A presença da vegetação é apenas prolongada pelo dito “Renascimento”. Esse elemento é digno de destaque na Divina Comédia e/ou no Romance da Rosa, em que se verifica o florescimento simbólico da vegetação. Por meio de Mozart, “vemos o indvíduo que se afirma brilhantemente. O tipo essencial que marca a transição entre uma Longa Idade Média e os tempos modernos (p.91). Traduzindo-se entre outros tantos exemplos colocados por Le Goff que “as rupturas são raras. O modelo habitual é a mais ou menos longa, a mais ou menos profunda mutação, é o ponto de virada, é o renascimento interior” (pp.92-95).

Em suma, há uma extensa continuidade nas estruturas ditas “modernas” que, na realidade tiveram sua origem na Idade Média. Para Le Goff é a “Enciclopédia” que marca o final de um período e a chegada de novos tempos (p.107). Quanto à anexação da América, a questão colocada ao historiador é determinar o que é mais importante, aquilo que morre ou aquilo que continua? (p.110) Temos a retomada de Granada pelos reis católicos em 1492; a expulsão dos judeus da nascente “Espanha” com a cristandade entrando definitivamente na construção nacional; outro fator dentre aqueles que estruturam a história em períodos encontra-se também o fator linguístico… “Será que foi devido a isso que 1492 se tornou o marco de um novo período da história?” (pp.111-112) “Se o Ocidente conhece um longo desenvolvimento do século VII até metade do XVII, é certamente no campo político que ele é mais espetacular” (p.115)

Outro evento que inspira a ideia da existência de um “Renascimento” é aquele das Grandes Navegações e descobertas, que teriam impulsionado o comércio. Todavia, a maior evolução consecutiva à descoberta da América encontra-se relacionada à economia monetária. “Não se pode falar de capitalismo até o advento de Adam Smith, quando a economia se emancipa das práticas e dimensões da Idade Média. O advento da Reforma – protestante e católica – encontra suas raízes na Idade Média. Para Le Goff, como já mostramos anteriormente, o indício da emergência de um novo período verifica-se com a “Enciclopédia”, em que se estabelece “a primazia da razão e ciência sobre o dogma cristão” (p.120). Para Mirabeau, em 1757, “Progresso” corresponderia ao movimento da civilização para adiante, para um estudo cada vez mais florescente. A Revolução Francesa, então, seria a vitória do progresso e também a do indivíduo (p.120).

De tudo até aqui exposto, podemos observar que a crise de retração do século XIV e a de crescimento do século XV, de fato, nada mais são que a reorganização necessária da sociedade da época, que deixava de ser Feudo-Clerical para tornar-se Feudo-Burguesa. Tal é que o século XV retoma o crescimento cuja válvula de escape é a continuidade da expansão, agora não mais contida pela Europa e/ou o Mediterrâneo: o Ocidente transborda para o Atlântico. Para tanto, necessitariam centralizar seus esforços, o que é efetivado pelas nascentes Monarquias Nacionais: a economia segue seu caminho rumo à busca de novos metais e mercadorias – sempre o sentido quantitativo e não qualitativo – episódio que é capitaneado pela incipiente burguesia. Por seu turno, a Igreja busca a sombra do monarca diante das “Reformas”…

Assim, segundo Le Goff, a Longa Idade Média muda apenas em meados do século XVIII. Desde o Renascimento do século XII o homem feito à imagem de Deus no XIII torna-se o verdadeiro assunto: por meio de Deus, para os tomistas. “O humanismo depende de uma longa evolução que remonta à Antiguidade” (p.125). Novo é o recurso metódico à experiência e, em particular, no século XVI, a autópsia…As heresias despontam da própria diversidade medieval… “O Renascimento dos séculos XV e XVI anuncia os verdadeiros tempos modernos na segunda metade do século XVIII” (p.128). O que de fato se observa é a lentidão da passagem de um período para outro. Segundo François Furet, a Revolução Francesa durou todo o século XIX, o que explicaria que muitos historiadores, inclusive os que adotaram a ideia de um Renascimento específico, tenham empregado a expressão Idade Média e Renascimento. “E se um século corresponde a essa definição – o que, aliás, indiscutivelmente faz a sua riqueza -, é o XV” (pp.132-133).

Encontramo-nos “mais próximos da realidade e de uma periodização que permite um uso fácil e ao mesmo tempo rico da história se considerarmos que períodos longos foram marcados por fases de mudanças importantes, porém não maiores: subperíodos que para a Idade Média chamamos de “renascimentos”, no cuidado de combinar o novo (‘nascimento’) e a ideia de um retorno a uma idade de ouro (o prefixo ‘re’, que faz voltar atrás e subentende semelhanças)” (p.133). Atualmente a história entende uma longa duração e mundialização. Exemplo disso é uma tese que professa ser a Revolução Francesa uma revolução Ocidental e Atlântica. Percebe-se aqui não apenas a tentativa de mundialização como tal ideia fica incompreensível sem sabermos que ela nasce no contexto da Guerra Fria e procurava agrupar os países capitalistas ocidentais. Mas, de fato, a mundialização se verifica através da comunicação, relação de religiões e culturas que se ignoravam, gerando um fenômeno de absorção, de fusão. Dessas duas, a “humanidade conhece apenas a primeira dessas etapas” (p.134). A periodização justificase “por aquilo que faz da história uma ciência, não uma ciência exata, mas uma ciência social, que se funda em bases objetivas a que chamamos fontes” (p.132).

Le Goff finaliza seu ensaio lamentando o aparecimento de uma publicação que exalta, uma vez mais, a ideia de um Renascimento revigorador da sociedade, olhando com desdém para a época medieval, uma vez que, em sua opinião, o Renascimento, tomado como uma época específica pela história contemporânea tradicional “só marcou um último subperíodo de uma Longa Idade Média” (p.131). Caberia, ao término dessa ligeira exposição, retomarmos os títulos de dois grandes autores: Huizinga e Philippe. Wolff: a crise da ordem medieval foi, efetivamente, o “Outono da Idade Média” ou a “Primavera de Novos Tempos”?

Ruy de Oliveira Andrade Filho – UNESP-ASSIS. E-mail: ruy.andrade@uol.com.br


LE GOFF, Jacques. A História deve ser dividida em pedaços? Tradução de Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Editora UNESP, 2015.Resenha de: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.16, n.2, p. 315-322, 2016. Acessar publicação original [DR]

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