WADI, Yonissa Marmitt. A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura. Uberlândia: EDUFU, 2009. 464 p. Resenha de: CONEGLIAN, Lucimar. Revista de História Regional v.15, n. 2, p.283-287, Inverno, 2010.
A História de Pierina: subjetividade, crime e loucura é resultado do trabalho de doutorado de Yonissa Marmitt Wadi, professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. A autora tem como temáticas de pesquisa: história da loucura e da psiquiatria; cultura, gênero e memória; sociedade e desenvolvimento regional; e práticas culturais e identidades.
Pierina Cechini – a protagonista do livro – nasceu no ano de 1880, foi a sexta fi lha de Antonio e Maria, italianos imigrantes. Na manhã da segunda feira, dia 26 de abril de 1909, no dia da missa de sétimo dia da morte de seu pai, ela cumpriu a promessa que vinha fazendo há alguns meses: matou sua fi lha de dezessete meses de idade através do afogamento em uma tina de lavar roupa. Esse ato desencadeou no indiciamento de Pierina e posteriormente sua internação no Hospício de São Pedro, de Porto Alegre.
Mas o que traz de relevante Pierina para que, quase um século depois de sua existência, estimular uma pesquisadora a produzir uma tese de doutorado sobre sua história? Nas palavras de Wadi, o resgate da história de “uma mulher singular” mostra “quão amplas e diversas, confl itantes, tensas e controversas podem ser as dimensões e possibilidades de uma vida” e contribui “na tarefa de desvelar como é múltiplo o social e quanto podem ser enganosas as impressões sobre a ‘importância’ de certos sujeitos sociais” (p. 25). Pelo olhar de Wadi, Pierina oportuniza a descrição da vida quotidiana de uma mulher pobre, fi lha de imigrantes italianos, que viveu nos primeiros anos do século XX, no município de Garibaldi, no Estado do Rio Grande do Sul.
Fato interessante a destacar é que, ainda que o livro tenha rendido 464 páginas, as fontes diretamente ligadas à biografada foram poucas: o registro policial de um crime e algumas cartas escritas por Pierina quando interna em um hospital psiquiátrico. Com essas parcas fontes, associada a uma farta pesquisa histórica sobre a dimensão de gênero e de loucura naquele período, a autora desvela com maestria a condição do feminino das imigrantes. A pesquisa contribui com informações sobre diferentes aspectos do viver dos imigrantes no início do século XX: a forma de organização da família; as condições econômicas; as questões de distribuição das terras; o acesso aos serviços de saúde; a prática da medicina convivendo com as práticas e crendices populares; o tratamento mental nos hospícios da época.
O livro está dividido em três capítulos. No primeiro, intitulado Caminhos, a autora se aplica na explicação de como era o quotidiano de trabalho dos imigrantes italianos, especialmente das mulheres. Contempla como se dava a relação das famílias com a terra e as distribuições dos lotes feitas pelo governo do Rio Grande. Ainda, nele é apresentada a história pessoal da protagonista – a escolha do noivo, o casamento e as relações com o marido, o nascimento da fi lha.
Wadi contextualiza muito bem aspectos do viver quotidiano da biografada e muito do que está contido nesse capítulo refere-se às possibilidades de existência naquele período histórico. Seguindo Ginzburg (1989), a autora reconstitui a biografi a de Pierina a partir da história de outros “homens e mulheres do mesmo tempo e lugar” (p. 48).
Como a história de tantas outras mulheres suas contemporâneas, Pierina trabalhava nas lidas domésticas e em serviços ligados a terra, cumprindo o papel cultural dado à mulher naquele período histórico. Cabia às mulheres fazer as tarefas domésticas acrescidas de algumas das tarefas na lavoura: o preparo, o plantio e o cuidado das plantações. As tarefas domésticas incluíam não apenas a arrumação da casa e o preparo dos alimentos, mas também a confecção das roupas, do sabão, do artesanato, entre outros, contribuindo, sobremaneira, com a economia doméstica. Sobre esse período de sua vida, Pierina registra, nas suas cartas, o desconforto e o desencanto de viver a vida de uma mulher pobre no início do século XX.
No Capítulo 2, Loucuras…, a autora problematiza aspectos sobre a ‘perturbação e sofrimento’ de Pierina. Existia difi culdade de compreensão, por parte dos familiares e da comunidade de entorno, no entendimento de suas queixas relacionadas ao desgosto e tristeza que sentia. Wadi aponta “que ela queria morrer e que achava que todos da família também deveriam, pois eram muito pobres” (p. 184), sentimento esse que Pierina registrou em seus escritos através da “hideia de querer morer de fome” (p. 198).
Ainda neste capítulo, são retratadas as difi culdades dos imigrantes pobres em relação aos tratamentos médicos, e as relações que interconectavam a medicina, o uso de plantas medicinais e as crendices populares ligadas ao curandeirismo.
No caso de Pierina existiu indícios de a família ter recorrido a várias práticas usuais na época: chamaram o médico que “parece não ter encontrado doença em Pierina” (p. 185), mas, mesmo assim, receitou-lhe remédios. Recorreram ao saber popular manifestado pela atitude de afastar a fi lha da mãe com o intuito de interromper a amamentação, vista como causa do enfraquecimento de Pierina. Foi ainda ministrada a técnica da sangria, “baseando-se na acepção de que o alívio das tensões, provocado pela saída do sangue, poderia restabelecer o equilíbrio de um corpo desequilibrado, portanto doente” (p. 241). Ocorreu também a tutela de cuidados efetivada pelas freiras do convento local, numa mistura de práticas higienista com religiosidade na busca da cura.
Cada uma dessas intervenções pretensamente terapêuticas são discutidas por Wadi em profundidade, resultando esse capítulo em importante fonte de pesquisa histórica nessa temática. O terceiro e último capítulo, descreve a trajetória da protagonista a partir do assassinato de sua fi lha, Elvira Maria. Este capítulo demonstra como as questões de gênero estão imbricadas no inquérito policial, que chamou para testemunhar apenas fi guras masculinas. Isso também direcionou o destino de Pierina, uma vez que Wadi sugere que a lógica masculina à época desconsiderou as queixas de infelicidade que ela há meses manifestava para sua família e conhecidos. Apesar de Pierina ser incansável em sua tentativa de não ser vista como louca – “eu não so loca, eu so criminosa” (p.327) -, fato repetido em suas cartas, na data de 05 de julho de 1909 ela foi internada no Hospício São Pedro.
“A mística de um amor materno inato à natureza feminina surgiu, invocada pelos peritos, para comprovar o caráter distorcido de Pierina” (p. 370). Crime ou ato de loucura? Considerar a ação de Pierina como crime implicaria em qualifi car as razões apresentadas por ela para explicar o ato cometido.
Considero este capítulo especialmente interessante no que diz respeito à descrição da lógica presente naquele tempo histórico sobre a loucura. O quotidiano de tratamento no Hospício São Pedro, com sua ‘terapêutica moral’; as manifestações de insatisfação dos médicos diretores e tentativas de melhoria dos serviços; a laborterapia, geralmente atrelada às questões de gênero, reforçando a normatização dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres; estas são questões importantes na compreensão da história da psiquiatria no país.
Pierina queria ser ouvida e, para isso, escreveu. Porém, as cartas de Pierina foram interpretadas como sintomas de doença, frustrando seu intuito de comunicar-se e expor as razões de seu crime. Seu “projeto de comunicação foi totalmente ingênuo, como o de todo escrevente que acredita ser a explicação contida em seus escritos, irreversível ou incontestável” (p. 37). Seu discurso e suas ações foram classificados, como está registrado no Prontuário do Hospício São Pedro como “depressão melancólica com idéias delirantes místicas associadas à perversão dos sentimentos afetivos – psicopatia constitucional” (p. 351). Com o diagnóstico posto, a fala de Pierina ficou desqualificada e silenciada. As razões de a pena ter sido cumprida no hospício e não na cadeia envolve uma série de análises vinculadas às questões de gênero, já que a história das mulheres e a experiência social da loucura, são “espaços onde se cruzam, misturam e confundem-se as relações de gênero, as relações sociais e as relações de poder” (p. 44).
A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura é um trabalho exemplar no que diz respeito à conjugação de “sinais, vestígios e pistas tênues deixados pela escritura de Pierina” (p. 25). Wadi, ao retirar Pierina da invisibilidade histórica, qualifica-a como sujeito social importante na compreensão das relações sociais, de gênero e de loucura nos anos iniciais do século XX.
Lucimar Coneglian – Mestranda em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – PR. Psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial de Castro. E-mail: luconeglian@ uol.com.br.
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