A Herança Imaterial, do historiador italiano Giovanni Levi, chegou ao Brasil quinze anos após sua publicação pela editora Einaudi, em 1985, conservando o seu título original, (L’eridità immateriale. Carriera di un esorcista nel Piemonte del seicento. Torino: Einaudi, 1985) uma vez que na França tinha sido publicada como Le pouvoir au village. A tradução, sim, manteve o prefácio de Jacques Revel entitulado “A história ao rés-do-chão”, publicada pela primeira vez na edição francesa (Paris: Gallimard, 1989). Esse prefácio oferece numerosas pistas que facilitam a leitura deste livro que já foi consagrado como um clássico da micro-história por parte da crítica especializada. Ora, nesta breve resenha pretendo entrar na análise, não tanto do conteúdo, mas sobretudo do método desta produção historiográfica, em especial naquilo que caracteriza a micro-história italiana, ou seja, a redução da escala de análise no seu método de pesquisa e, em seguida, o jogo entre a dimensão detalhada do enfoque e a escala ampliada do contexto social que lhe atribui sentido e que é enriquecido com as novidades provenientes da microanálise.
De que trata A herança imaterial?. O próprio título é apresentado como um enigma a ser decifrado pelo leitor. Para Jacques Revel, haveria várias respostas possíveis para responder à pergunta sobre o conteúdo da obra e nenhuma delas estaria totalmente errada, mas tampouco exata. Nas palavras dele, essa múltipla escolha ofereceria as seguintes possibilidades: a) a carreira de um exorcista no Piemonte do século XVII, tal como o indica o subtítulo; b) as estratégias familiares e individuais, visando à lógica dos comportamentos econômicos e do funcionamento do mercado de terras; c) as relações hierárquicas do poder que estruturam o Antigo Regime no Norte de Itália; d) as relações entre centro e periferia, entre a capital e uma comunidade local, numa época vital para a construção do Estado moderno; e) cada um desses itens (e alguns outros ainda) estaria presente, mas sob a forma de uma variação sobre um tema que nunca aparece.1 Ainda para Revel, há no A Herança imaterial um jogo estratégico de engano que consistiria em atrair o leitor para um terreno onde, em vão, pensa que poderia se encontrar o objeto do texto que pretende entender e interpretar. Assim, o livro começa com a campanha regional de exorcismos do padre Giovan Batista Chiesa, vigário do vilarejo de Santena, em 1697 (capítulo 1); em seguida o padre desaparece para só reaparecer no capítulo V, ou seja, 117 páginas depois. Se o elemento “micro” do relato se referia à biografia do padre Giovan Batista, então há algo que não fecha bem. Ou, segundo o próprio Levi, haveria uma outra forma de escrever uma biografia. Poderia tratar-se, então, de uma história local sobre o vilarejo de Santena, situado a 20 quilômetros de Turim?. Na verdade, a vila foi objeto de uma vasta pesquisa, que permitiu reunir um vasto material prosopográfico abrangendo 40 anos e 32.000 referências nominais. Mas o resultado do enfoque demográfico acabou sendo lacunar e tudo induz a pensar que Levi não teve a intenção de reconstruir a vida de uma aldeia piemontesa dos finais do século XVII. Todavia, para entender A Herança imaterial, Levi propõe-nos uma mudança do ponto de vista: não aceitar os modelos estruturalista e funcionalista de uma história lida de cima para baixo, mas entrar na pele dos habitantes de Santena para ir descobrindo que o sentimento abstrato, porém onipresente, que os possuía e dominava era a incerteza, ou seja, o medo daquilo que não podia ser previsto, inclusive porque não se participava das instâncias onde se geravam as decisões políticas e econômicas. Para Revel, a incerteza seria o personagem principal que costura o livro de Levi. Incerteza frente às guerras, à fome e às contínuas mudanças nas alianças políticas; medo de perder as terras que se possuem ou arrendam ou perder a proteção dos senhores locais e das autoridades centrais piemontesas. Assim, todas as condutas sociais dos habitantes de vilarejos como Santena se fundamentavam na construção de estratégias múltiplas capazes de diminuir ou pulverizar os riscos de desgraças sempre ameaçadoras.[2] Ora, além da incerteza proposta por Revel como o conceito chave que estrutura toda a obra, considero que o outro personagem central do livro é o poder. Historiadores, sociólogos e cientistas políticos quase sempre colocam o poder do lado da autoridade e da nobreza fundiária. Ora, Levi parte da hipótese de que o poder não dimana (necessariamente) de uma instituição ou das riquezas. Não é uma coisa mas uma configuração histórica. Decifrado de baixo para cima, o poder aparece em uma dimensão inédita, inesperada e não garantida por nenhuma instituição. Trata-se de uma instância em contínua transformação e contradição, inclusive entre os elementos que a estruturam (É lá nas contradições desse poder onde os homens e as mulheres encontram os seus resquícios de liberdade). Por exemplo, o poder conquistado pelo pai de Giovan Batista, Giulio Cesare Chiesa, foi fruto de seu trabalho como mediador de conflitos que ameaçavam enfraquecer profundamente a comunidade de Santena. Esse poder foi justamente a herança imaterial que transmitiu para seu filho, e que este tratou de manter intacta interpretando-a a seu modo com as suas práticas de exorcismo. De fato, dilapidou a sua herança por não perceber que as condições sociais e políticas em que se podia exercer esse poder haviam mudado e por achar que podia transgredir as normas da economia moral do seu tempo. A incerteza e o poder são, então, conceitos universais que se encontram no centro do relato.
Giovanni Levi – e isto pode surpreender mais do que um intelectual latino-americano – é professor de história econômica na Universidade de Veneza, com especialização em economia política do Estado (Absolutista) Moderno. Além de L’ eredità immateriale, publicou Centro e periferia di uno Stato absoluto (Torino: Rosemberg, 1985) e, em parceria com J. C. Schmitt, Storia dei giovani. (Bari: Laterza, 1994). Ora, o conteúdo do A herança imaterial reflete bem a erudição acadêmica de Levi. Longe de se tratar de uma história cultural ou de mentalidades à moda da maioria dos annalistes da terceira geração (1968 a 1988), Levi revela uma sólida renovação da história social, a qual se fundamenta em relações econômicas, políticas e culturais, entrelaçadas numa rede de significações sociais. Dessa forma, se os capítulos primeiro e quinto tratam de processos que o poder instaura contra Giovan Batista Chiesa, o segundo e o terceiro tratam da história agrária protagonizada por três famílias de meeiros e da formação de um mercado de terras, enquanto os dois últimos visam a interpretar as estratégias e aparências do poder político local. Quero dizer: Giovanni Levi, professor de história econômica, trata a economia, a política e a cultura no seu conjunto, como manifestações do social. A história não se estilhaça em fragmentos, migalhas, flashes ou ficção. Não é uma história cultural divorciada da história social. Um dos méritos do livro de Levi consiste, justamente, em mostrar que a incerteza dos habitantes de Santena e o poder que se alastra sobre eles têm fundamentos econômicos, políticos e simbólicos. Por exemplo, a partir dos seus sentimentos de incerteza e medo, eles elaboram estratégias coletivas que pretendem dar respostas econômicas, políticas e culturais a esse poder para assim minimizar os seus efeitos devastadores. Esse método de abordagem provém da sua visão da sociedade piemontesa do século XVII como: “uma economia moral das classes populares, que sugere a existência de uma cultura complexa, na qual os direitos da sociedade prevalecem sobre aqueles impessoais da economia” [3], uma definição que mostra uma clara alusão à obra de Edward P. Thompson. Estamos em presença, na realidade, de uma história vista como a totalidade dos acontecimentos sociais.
Por que o público leitor brasileiro deveria se interessar pela história de um exorcista, do seu pai, ou de um pequeno grupo de camponeses de um vilarejo do Norte da Itália nos finais do século XVII?. Aparentemente, só um pequeno núcleo de especialistas em história regional da Europa Moderna poderia interessar-se por essa temática. Porém, essa aparência engana, porque o aggionamento historiográfico da micro-história italiana se torna verdadeiramente notável e pode servir de paradigma inspirador, sobretudo por causa da sua renovação dos métodos da pesquisa social. Essa renovação fundamenta-se em várias opções metodológicas e até técnicas. Para começar, a micro-história em geral e A Herança imaterial, em particular, não se definem pela redução da escala nem por lidar, por exemplo, com uma história regional ou local. Define-se, sim, por um “jogo de escalas” entre o micro e o macro, entre a microanálise de particularidades históricas como texto e um universo maior como contexto. Nessas idas e vindas entre o estudo de, por exemplo, uma comunidade local ou regional ou uma série de biografias e a sociedade que as compreende, o micro faz os descobrimentos e o macro lhes atribui significados ao localizá-los num contexto. Não há micro-história sem o jogo de escalas, sem o contexto; a simples redução da escala não leva a parte nenhuma já que só apresenta crônicas, mesmices ou microinteligência. Ao ser entrevistado pelo historiador costarriquense Juan José Marín, o historiador italiano comentou: “Na micro-história a redução da escala se utiliza para compreender a história geral. (…) Isto pode ser ilustrado se considerarmos de que maneira se usa o microscópio. Através dele, podemos ver as coisas anteriormente não visíveis, mas que existiam. (…) A micro-história procura analisar como funciona a sociedade na sua base e, a través desses dados, generalizar conclusões com o intuito de gerar perguntas e respostas capazes de serem comparáveis em outros contextos. (…) Ao perceber o micróbio, é possível generalizar e entender a doença”.[4] Um exemplo disto é o capítulo terceiro do livro comentado, Reciprocidade e comércio de terras. Na entrevista a Marín, Levi comenta que procurou generalizar como se criou o mercado do preço da terra estudando um pequeno vilarejo da Itália. Ele acredita ter criado uma indicação sobre que perguntas devem ser formuladas para estudar os mercados de terras no mundo. A história pequena, que não é generalizável, não explica nada. Por isso é que as crônicas locais quase sempre acabam defraudando o historiador.[5]. Um aspecto digno de ser ressaltado é a estratégia com que Levi vai montando o andaime dos seus capítulos. Em primeiro lugar, divide a temática em uma série de números. Por exemplo, o Capítulo I. “Os exorcismos de massa: o processo de 1697”, é dividido em dez pontos e, enquanto os primeiros seis itens consistem numa detalhada descrição dos eventos e dos seus protagonistas, os quatro restantes apresentam uma interpretação e contextualização do anteriormente descrito de forma empírica. Assim, no começo do ponto sete anota: “Até aqui deixei todo o espaço para a história, sem tecer hipóteses ou fazer comentários. Este é o momento narrativo que será dedicado à análise da vida social de Santena”.
Essa estratégia de construção do texto pode ser útil, porém não essencial. O que resulta absolutamente necessário na produção historiográfica é a descrição de fatos e processos, de um lado, e a sua interpretação à luz de uma teoria social, de outro. Fazer uma afirmação nesses termos não constitui uma banalidade óbvia se olhamos ao nosso redor, vendo como os historiadores locais e regionais apresentam fatos “verdadeiros” como se eles se auto-interpretassem, enquanto uma parte dos historiadores acadêmicos publica artigos teorizantes com escassa fundamentação empírica na prática da pesquisa documental. O equilíbrio entre os fatos e os processos pesquisados e a sua interpretação à luz de uma teoria social é uma proposta tão fácil de formular como difícil de executar. Levi, em A herança imaterial, atinge com virtuosidade esse equilíbrio, separando simples e drasticamente os fatos da explicação. Uma outra característica metodológica de A herança, a qual Levi compartilha com Carlo Ginzburg, consiste na sua obsessão por mostrar aos seus leitores o processo da pesquisa, as suas lacunas, dúvidas e impasses, e não somente os seus resultados coerentizados artificialmente. Vejamos a opinião esclarecedora de Levi discorrendo sobre a sua narrativa: “Os historiadores devem utilizar uma nova forma de escrever e de se comunicar. Nesse momento, fazem uso da sua autoridade, indicando que a história foi isso ou aquilo ou dizendo ‘eu opino que isso foi assim’. Nesse sentido, os historiadores nunca mostram os limites das suas construções, não mostram a cozinha más somente o pão”.[6]
Carlo Ginzburg, no artigo, Microstoria: due o ter cose che so di lei [7], tenta caracterizar a micro-história através de três elementos principais: a) o construtivismo consciente, em que não haveria nada de antemão e não podem aceitar-se certas evidências epistemológicas tradicionais; b) a premissa anticética, segundo a qual a verdade não brota da construção interna do sujeito cognoscente, mas o conhecedor se municia com instrumentos para representar – o mais fielmente possível – algo externo a ele; c). a imprescindibilidade do contexto como valor significativo e explicativo. O contexto constitui-se num verdadeiro coringa que salva a micro-história da irrelevância da escala reduzida. Já segundo Giovanni Levi, as características compartilhadas pelos micro-historiadores seriam: a redução da escala; o debate sobre a racionalidade; o papel do particular (porém, relacionado com o social); a atenção prestada à recepção do relato; uma definição específica do contexto e, last but not least, a rejeição do relativismo cultural. Assim como Carlo Ginzburg empreendeu uma verdadeira cruzada contra as posições do ceticismo de Hayden White, da mesma forma Levi escolheu a Clifford Geertz como alvo para defender a história das agressões do relativismo. Com efeito, Levi recrimina Geertz e seus seguidores (entre eles Robert Darnton), por induzirem as ciências sociais a uma evolução relativista que as estaria levando ao beco sem saída da pluralidade de interpretações (uma interpretação de interpretações) e, mais ainda, a um magma de elementos sem hierarquizar.[8] Na entrevista a Marín, Levi expressa a sua fé nas possibilidades de o historiador poder descrever, com algum tipo de rigor, o real: “Tanto Chartier, Ginzburg e eu pensamos que a realidade existe. Não é uma ficção nem uma coisa incognoscível. Nisso os três polemizamos contra Hayden White, o desconstrucionismo e todos aqueles que acham que procurar a realidade é uma ficção”. E, mais na frente: “A realidade consiste no esforço de compreendê-la nos seus limites (…). Pelo contrário, os desconstrucionistas dizem que, já que não é possível conhecer toda a realidade, não é possível conhecer nada”.[9]
Depois dos comentários que antecedem, talvez agora fique mais claro por que seria proveitoso devotar um pouco da nossa atenção a esse “lugar comum e história banal de Santena”. Nos movimentos literários do texto vemos desfilar, como num filme, os exorcismos de massa; uma biografia (“excepcional-normal”) do padre Chiesa; as estratégias dos camponeses na mercantilização das terras (em que ainda prevaleciam as relações interpessoais sobre as leis do mercado); o poder, simbólico, porém real, de Giulio Cesare Chiesa, que emanava do seu ascendente moral e relações sociais e não das suas posses ou investidura política e, finalmente (depois de assistir à derrota de Giovan Batista por acreditar que a sua herança era “material”), as estratégias nobiliárias, eclesiásticas e populares que reconfiguram o poder em confrontação com um Estado cada vez mais absoluto e centralizador. Por último, apesar das aparências enganosas, quero insistir uma vez mais que não estamos na presença de uma história local ou regional que se fecha sobre si mesma, já que Giovanni Levi formula perguntas que extrapolam amplamente o seu objeto pesquisado. Podemos apropriar-nos dessas perguntas para abordar problemáticas de história social em contextos bem diferenciados no tempo e no espaço. É nesse sentido que deve ser entendida a reflexão de Levi ao final do seu livro: “Prefiro pensar que toda esta multidão que passou diante de nós, tenha contado alguma coisa não somente para si mesma”. Acredito que Levi teve pleno êxito nesse seu empreendimento. A herança imaterial (mais, inclusive, que O queijo e os vermes de Carlo Ginzburg) constitui-se num verdadeiro paradigma da micro-história, justamente por causa do uso magistral do jogo de escalas capaz de formular questões universais.
Notas
1. Jacques REVEL. A história ao rés-do-chão. In: Giovanni LEVI. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 22-23. O mesmo autor publicou o artigo Microanálise e a construção do social, em Jacques REVEL. Jogos de escalas. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
2. Giovanni LEVI. op. cit., p. 26. Revel exagera ao colocar a incerteza como protagonista central do livro e entra em contradição com o título que ele próprio criou para a edição francesa: O poder na aldeia.
3. Giovanni LEVI. op. cit, p. 44.
4. Entrevista de Juan José Marín a Giovanni Levi. Heredia: (Costa Rica) 1999, p. 2. http://historia.fcs.ucr.ac.cr/mod-his/e-levi-cost.htm.
5. Giovanni LEVI. op. cit., p. 74.
6. Idem, p. 21.
7. Publicado em Quaderni Storici, n. 86, 1994.
8. Ver: Justo SERNA e Anaclet PONS. Cómo se escribe la microhistoria. Ensayo sobre Carlo Ginzburg. Valencia: Frónesis: 2000, p. 245.
9. Levi a Marín, p. 10-11.
Resenhista
Andreas Leonardus Doeswijk – Professor Visitante do departamento de História da Universidade Estadual de Maringá. Doutor em História Social do Trabalho pela Unicamp.
Referências desta Resenha
LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Resenha de: DOESWIJK, Andreas Leonardus. Diálogos. Maringá, v.6, n.1, 189-195, 2002. Acessar publicação original [DR]
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