A grande degeneração: a decadência do mundo ocidental | Niall Ferguson
Niall Ferguson, em “A Grande Degeneração” traz mais uma tese polêmica acerca da crise no mundo Ocidental. Professor da Universidade de Harvard, além de associado ao Instituto Hoover e à Universidade de Stanford, Ferguson é um dos mais renomeados historiadores do mundo, com uma vasta coleção de livros e prêmios, como o Benjamin Franklin Prize for Public Service e o Hayek Prize for Lifetime Achievement, rotineiramente lembrado pelas teorias sobre o Ocidente e a decadência do modelo tanto econômico quanto político vigente deste lado do mundo.
“A Grande Degeneração” não poderia ser diferente. Publicada em 2013, a obra trata de temas já tratados pelo autor em outras obras, nas quais defende a tese de que o Ocidente e suas instituições estão fadados ao declínio. Contudo, nesta obra, Ferguson teme que esse declínio se torne uma degeneração, ou seja, um evento mais radical em proporção e intensidade e, sobretudo, irreversível.
Ao analisar a crise mundial de 2008, Ferguson acusa quatro pilares do mundo ocidental que devem ser responsabilizados pela ocorrência da mesma, a saber: a democracia, o capitalismo, o Estado de direito, e a sociedade civil. Cada um desses fatores, devido a sua relevância na construção do argumento de Ferguson, é tratado em capítulos específicos, nos quais o autor faz uma analise de suas falhas e recomenda soluções.
De acordo com Ferguson, a grande dívida pública que os países adquiriram ao longo das transações comerciais, a alarmante desigualdade econômica e até a globalização – trazendo consigo a revolução tecnológica – devem ser postas sobre a mesa para debate como causadoras da decadência no Ocidente. No entanto, essas são características já intrínsecas ao funcionamento dos países ocidentais, motivo pelo qual o autor acredita tão fervorosamente em um declínio dessas nações.
Desde o começo, Ferguson atrela suas teorias a Adam Smith, quando este, em “A riqueza das nações” refere-se ao estado estacionário, contudo, citando a China. Ferguson utiliza-se do mesmo conceito, mas aplicando-o ao Ocidente, de forma prática e perceptível até para leigos. Segundo ele, o estado estacionário é aquele momento em que o crescimento arrefece, entrando numa tendência a estabilidade em sua trajetória, posicionando-se paralelamente ao eixo X (indicando constância). Suas características encontram-se nos salários baixos e em uma elite monopolizadora do sistema jurídico e administrativo (FERGUSON, 2013: 14). Da mesma forma que Adam Smith culpa as instituições chinesas pela estagnação do país à época, Ferguson culpará as instituições ocidentais pelo seu declínio.
A primeira das instituições elencadas é a democracia. Curiosamente, o autor faz relação com o poema mais famoso de Bernard Mandeville, “A fábula das abelhas”, no qual fica clara a sátira ao governo inglês vigente a partir do século XVII. No poema, fala-se de um governo rico, de uma economia avançada, cientifica e socialmente organizada, mas, sobretudo, Ferguson preocupa-se com a forma de governo, destacando que a nação era dominada por reis, cujo poder era limitado por leis (FERGUSON, 2013: 34). Na Inglaterra – e o autor, como inglês, pode testemunhar sobre isto mais que qualquer um – a Coroa governa ao lado do Parlamento, que apenas ganhou maiores poderes após as Revoluções do século XVII, estas alimentadas pelo Iluminismo. Desta forma, a monarquia continua tendo o poder, mas este limitado pelo Parlamento, composto por figuras da alta sociedade inglesa. Contudo, o autor não critica a governança inglesa nas mãos da camada mais rica, algo observado certamente não só na Inglaterra, mas sim trata de como a dívida pública é gerenciada de uma maneira indiferente à própria população, em especial, àquela que ainda não nasceu, mas que terá que arcar com as consequências do endividamento.
Ferguson não irá tratar do déficit representativo ou do governo das elites, pois acredita que estes não são problemas existentes no que ele chama de “democracias maduras”; para o autor, o maior desafio nessas nações é a conexão entre as gerações, que não mais existe, mas que se torna um desafio a ser enfrentado. O autor acredita que este vínculo dentro da sociedade poderá enfraquecer a pretensão por adquirir novas dívidas, um dos fatores responsáveis pelo declínio do Ocidente.
Para alcançar tal link entre as gerações, Ferguson utiliza-se do exemplo prático adotado na Alemanha e alguns estados nos EUA, referindose a uma reforma orçamentária onde os políticos teriam poder de intervenção limitado na economia do país. No entanto, Ferguson ressalta esta não é uma medida efetiva, visto que a dívida ainda está sendo utilizada como estímulo em economias recessivas e que as gerações mais velhas ainda estão afastadas das mais novas. O autor afirma que se não forem alcançados os objetivos previstos por estas medidas as democracias ocidentais podem seguir o rumo da Grécia e da Argentina, numa “espiral recessiva”, ou, em um caso um pouco mais otimista, manter-se como o Japão e os EUA, com dívidas cada vez maiores, mas com crescimento nulo através de uma redução dos empréstimos públicos, um “novo estado estacionário”, como ele denomina.
O segundo capítulo trata do próximo fator que Ferguson acredita ser determinante no declínio ocidental: o capitalismo, ou mais especificamente, os mercados. Ferguson, mais uma vez, impressiona por não seguir a linha tradicional de críticas à desregulamentação dos mercados após a década de 1980, colocando esta como culpada da queda produtiva nos países, mas sim traz a “regulamentação demasiada complexa” como a origem da crise atual no Ocidente. Ferguson descreve essa regulamentação complexa em cinco etapas: a primeira, o alto valor dado às ações e aos acionistas pelos bancos, agora altamente dependentes destes atores; a segunda, a avaliação de riscos que passou a ser função de empresas privadas, que utilizaram seus próprios pré-requisitos para mensuração; a terceira, referente aos bancos centrais e a mudança de atitude quanto à sua política monetária, no que concerne ao ajuste das taxas de juros dependendo da movimentação de ativos; a quarta, a maior possibilidade dada às famílias de baixa renda de adquirir imóveis, o que pode ter um caráter social, mas que leva a uma fragilidade tanto para essas pessoas quanto para o próprio mercado imobiliário; e a quinta, os efeitos da política chinesa de desvalorização da sua moeda, que atingiu diretamente os mercados internacionais.
A desregulamentação ou como denominada aqui de “regulamentação demasiada complexa” tem como propósito ajudar no funcionamento do mercado, mas elas não tomam como base a natureza do mercado. Ferguson compara a movimentação financeira aos estudos de Darwin. Para o último há passos a serem seguidos: (i) os genes seriam as informações, guardadas e transmitidas de um indivíduo, ou neste caso, de uma empresa para a outra; (ii) a mutação, ou “inovação” que ocorre espontaneamente tanto no mundo biológico quanto no financeiro; (iii) a competição, que decide aqueles que “sobrevivem”; (iv) a seleção natural, a qual mantém aqueles com características diferenciadas; (v) a formação de “espécies” financeiras novas; finalizando (vi) na possibilidade de extinção. Ferguson argumenta que da mesma forma que os sistemas naturais estão interconectados, os sistemas financeiros e mercados nacionais tornaram-se interdependentes, fazendo com que a mínima oscilação em determinada parte o mundo produza um efeito dominó ao redor do globo. A complexidade das conexões entre os mercados, a qual Ferguson tanto critica, também podem ser revertidas e utilizadas como solução para os mesmos problemas que causa. Logo, defende Ferguson, o posicionamento dos bancos como “autoridades” do sistema financeiro, mas em conjunto com uma “capacitação” dos seus diretores, ou seja, tornar os banqueiros aptos a entenderem o funcionamento do mercado para que possam articular suas ações em torno das movimentações do mesmo.
Apesar de relacionar as causas da degeneração ocidental principalmente à economia, Ferguson trata de outras esferas e de como estas influenciam umas nas outras. Seu primeiro capítulo possui uma abordagem principalmente política, e no terceiro, ele discutirá acerca do Estado de direito. Utilizando-se da história inglesa, o autor descreverá o Estado de direito como aquele no qual a lei é acessível e eficaz, protegendo os cidadãos na sua forma mais básica, através do resguardo dos direitos humanos fundamentais. Esta concepção de Estado está baseada no trabalho de juízes e legisladores, que se “utilizam de seus vastos conhecimentos”, análise aguçada e bom senso, adquirem o poder de zelar o respeito às leis e punir aqueles que não as cumprirem. Um país onde juízes e legisladores cumprem com seu papel da forma correta possui um ambiente favorável ao crescimento e desenvolvimento; no entanto, a nação onde o Estado de direito é governado por indivíduos que abusam de seu poder está fadado à perda. Por sua origem, Ferguson defende o common law, o direito baseado mais em decisões jurídicas passadas do que nas leis propriamente ditas, como um sistema que possui mais eficiência do que a civil law, o seu oposto, e que vigora em diversos países Ocidentais.
Ferguson apresenta, no entanto, algumas ameaças que o Estado de direito sofre no Ocidente, entre elas cita, a maior complexidade da legislação, assim como os seus custos e a manutenção das liberdades civis, que nem sempre serão cumpridas, entre outras. Essas ameaças, em conjunto com a relação das leis com o mercado, que controla apenas o direito à propriedade e permite que o mercado controle os outros aspectos, está causando uma crise nos Estados Unidos, quanto ao seu desempenho. Contudo, o Estado de direito permitiu que as nações que o aplicaram alcançassem diversos outros benefícios. De acordo com economistas, o estabelecimento do Estado de direito dá-se em quatro etapas, sendo elas: (i) reduzir a violência; (ii) proteção dos direitos de propriedade; (iii) controlar o governo através de instituições e (iv) combater a corrupção. A China, novamente, aparece como exceção de Estado que alcançou um crescimento econômico impressionante sem possuir um sistema jurídico funcional, na visão do autor. Apesar disso, Ferguson aponta que os economistas apontam que se a China não adotar este modelo, em alguns anos seu crescimento será limitado. Questão essa que merece maior cuidado e moderação, principalmente a depender do futuro e da manutenção da estratégia chinesa de inserção e participação no mercado global.
Em seu quarto capítulo, Ferguson traz o último fator responsável pela estagnação do mundo Ocidental, mas também aquele que pode gerar as maiores mudanças e ainda reverter o quadro atual: a sociedade civil. Mais do que o declínio da democracia, é especialmente perceptível a “queda do capital social” nos países ocidentais, com o esquecimento das associações, clubes e pequenas comunidades dentro de bairros e cidades. Muito do que acontece atualmente no âmbito social recai como culpa da tecnologia, das revoluções nas comunicações, na globalização, etc., e é exatamente este ponto que Ferguson irá descartar. Utilizando-se dos textos de Alexis de Tocqueville durante todo seu capítulo, o autor traz o que ela chama de “a passagem mais potente de A democracia na América”, no qual fica claro que tanto Ferguson quanto Tocqueville veem no Estado a culpa pela “indiferença” crescente da sociedade. E isto se deve principalmente à quantidade de promessas e deveres não cumpridos pelo Estado.
Este provavelmente é o trecho mais polêmico e controverso do livro, na qual o autor fala das escolas privadas versus a educação pública. Ferguson acredita que as escolas estatais foram benéficas na formação da nação, já que, de acordo com as próprias palavras do autor, “indivíduos escolarizados são trabalhadores muito mais produtivos”. Contudo, a educação oferecida pelo poder público é apenas medíocre, e isso levou, por conseguinte, a uma melhora no sistema educacional privado. É fácil intitular Ferguson de elitista, mas a sequência lógica do autor refere-se ao momento em que a sociedade civil volta a se envolver nos assuntos do Estado, neste exemplo, através da educação. Relacionando este tópico com a democracia, é possível falar do déficit democrático e da restrição do papel do cidadão apenas ao voto, algo que há muito tenta ser combatido por intelectuais ao redor do mundo.
Ao final de sua análise acerca da degeneração do Ocidente, Niall Ferguson traz o seu pensamento sobre o futuro, e como as outras nações não ocidentais terão papel importante no desenrolar dos próximos anos. Ele classifica quatro tipos de acontecimentos: os “conhecidos conhecidos”, referentes ao inegável crescimento exponencial da população mundial e das inovações tecnológicas; os “desconhecidos conhecidos”, as descobertas de recursos minerais e tecnologias antes imprevistas, assim como o impacto das crises sobre os mercados nacionais; os “desconhecidos desconhecidos” que, como o título já deixa explícito, não podem ser previstos; e por último, os “conhecidos desconhecidos”, as ameaças imprevistas ao sistema mundial, estas no entanto que já ocorreram, como bolhas financeiras, inflação, guerras.
A lógica de Ferguson é fácil de ser entendida, mas também fácil de discordar. Considerar aspectos separadamente sem inseri-los no todo cria um viés de análise. Deixa de lado a ascensão de outras nações não ocidentais, da mesma forma que não considerar todas as nações que se encontram no hemisfério ocidental como nações “ocidentais”, mesmo que estas sigam ou tentem seguir o mesmo modelo político e econômico daquelas consideradas parte do mundo ocidental também consiste em uma dificuldade analítica para o leitor.
Contudo, ao longo do texto, é possível observar de forma prática todos os fatores que Ferguson coloca como responsáveis pelo declínio do modelo ocidental. Porém, em cada um desses pontos também é aceitável adicionar considerações descartadas pelo autor: o déficit representativo, o claro domínio das elites, a exclusão de camadas mais pobres da sociedade mais participativa que Ferguson tanto defende, são algumas outras falhas desse sistema ocidental que pode levá-lo ao seu notório fim. Limitar a análise a alguns países ocidentais também cria um viés na leitura da obra. Ainda, pode afetar o entendimento e, principalmente, a correlação entre os diversos fatores que não foram evidenciados pelo autor e não se observam com tamanha evidência como nos países selecionados. A obra é interessante, especialmente no seu intuito de despertar curiosidade e a discussão derivada da leitura. Diagnosticar o fim da sociedade vigente há tantos séculos, analisando nada além dela mesma e dos problemas causados por ela própria é algo extremamente complexo, mas dominado com maestria por Niall Ferguson. Não se trata de concordar ou discordar, mas de revisar e compreender o método de análise da conjuntura feita pelo autor.
Resenhistas
Alexandre César Cunha Leite – Economista, Mestre em Economia Política (PUC/SP), Pós-Graduado em Relações Internacionais (PUCMINAS) e Doutor em Ciências Sociais/Relações Internacionais (PUC/SP). Professor Adjunto (DE) da Universidade Estadual da Paraíba (PPGRI/UEPB). Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Ásia-Pacífico (GEPAP/UEPB/CNPq), pesquisador do Grupo de Pesquisa em Potências Médias (GPPM/PUCMINAS/CNPq) e pesquisador do Grupo de Pesquisa Economia Política do Imperialismo (UFRRJ/CNPq). E-mail: alexccleite@gmail.com
Maria Gabriela Galindo de Oliveira – Aluna do curso de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba. Bolsista IC -UEPB/CNPq do Grupo de Estudos e Pesquisa em Ásia-Pacífico (GEPAP/UEPB/CNPq)
Referências desta Resenha
FERGUSON, Niall. A grande degeneração: a decadência do mundo ocidental. Trad. Janaína Marcoantonio. São Paulo: Planeta, 2013. Resenha de: LEITE, Alexandre César Cunha; OLIVEIRA, Maria Gabriela Galindo de. Revista de Economia política e História Econômica. São Paulo, ano 10, n. 34, p. 226-231, agosto, 2015. Acessar publicação original [DR]