A geografia política do desenvolvimento sustentável | Bertha Becker e Mariana Miranda
Esta coletânea reúne textos apresentados no simpósio ‘O desafio do desenvolvimento sustentável e a geografia política’, realizado no Rio de Janeiro em outubro de 1995, por iniciativa da União Geográfica Internacional e do Laboratório de Gestão do Território (LAGET) do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trata do polêmico tema do desenvolvimento sustentável. Os textos são de geógrafos, economistas, cientistas políticos e sociólogos, e tratam da desigualdade da distribuição dos recursos naturais, do desenvolvimento tecnológico, da globalização econômica, das relações entre problemas locais e globais e da eficácia de programas específicos baseados no controvertido conceito.
A coletânea reúne algumas contribuições conceituais e teóricas valiosas para o refinamento do conceito, possibilitando o seu uso mais preciso, tanto por geógrafos quanto por outros cientistas que pensam sistematicamente as relações entre os recursos naturais e o desenvolvimento sócio-econômico. Alguns artigos são mais propriamente normativos ou opinativos. Há numerosas discussões conceituais. Infelizmente, poucos artigos apresentam resultados de pesquisas originais, baseadas ou não no conceito. O conjunto é heterogêneo, como geralmente acontece com coletâneas, mas a heterogeneidade desse volume tem a desvantagem particular de colocar em dúvida a validade do próprio conceito que lhe dá o título. O volume inaugura uma verdadeira temporada de caça ao conceito de desenvolvimento sustentável.
A colocação clássica da ONU, publicada no Relatório Brundtland de 1988, definia o desenvolvimento sustentável de uma forma saudosamente simples, embora já bem abrangente: um “desenvolvimento que atenda às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de atender às suas próprias necessidades”. Quase um contrato entre gerações, com o problema grave de que as gerações do futuro nunca estarão presentes para assiná-lo. O economista Peter Bartelmus, entre outros, deu dimensões mais ‘duras’ ao conceito, poucos anos depois: “Desenvolvimento economicamente sustentável é o desenvolvimento que gera uma renda per capita nacional não-declinante através da substituição ou conservação das fontes daquela renda, ou seja, os estoques do capital produzido e do capital natural.” Assim, Bartelmus combina requisitos de ordem ‘social’ com outros de ordem biofísica. Já dentro da chamada ‘Agenda 21’, um programa concreto de desenvolvimento sustentável saído da Eco-92, e desde então em aplicação em diversas partes do mundo, apareceram os requisitos de justiça social, da participação comunitária e da melhoria das condições das mulheres e das minorias. As complexidades e ressalvas continuaram, em escala geométrica, nos anos seguintes.
Pelo menos dois autores de textos inseridos na coletânea seguem essa tendência e apresentam contribuições ao conceito. Theotônio dos Santos, por exemplo, coloca o imperativo da “eliminação da pobreza e das terríveis desigualdades entre as classes sociais, os povos e as regiões do globo para assegurar um desenvolvimento para todos”. Roberto Guimarães, apenas no item “sustentabilidade social” (pois há ainda as dimensões ‘ecológica’, ‘ambiental’, ‘demográfica’, ‘cultural’, ‘política’ e ‘institucional’ da sustentabilidade), acrescenta “os critérios básicos… da justiça distributiva… e da universalização da cobertura, para as políticas globais de educação, saúde, habitação e seguridade social. … elevar o salário real dos estratos mais pobres para que estes possam satisfazer suas necessidades básicas de alimentação, vestuário, saúde, moradia e educação…”
É fácil perceber que um conceito com tal amplitude não tem uso como instrumento de pesquisa científica. Na verdade, é algo que está muito mais próximo de uma formulação normativa derivada de uma utopia pós-socialista do que de um conceito científico. Creio que seja essa a origem da pouca efetividade de boa parte dos textos reunidos no volume: o ‘conceito’ gera muitas discussões teóricas e ideológicas, mas não parece gerar pesquisa.
O pouco espaço exige que a resenha de uma coletânea de quinhentas páginas e com textos de tantos autores se concentre em apenas alguns. Escolhi os que me pareceram mais eloqüentes em suas apreciações sobre o conceito de desenvolvimento sustentável. Por exemplo, a introdução de Roberto Pereira Guimarães, cientista político, merece destaque porque é uma ótima provocação sobre o conceito-tema, abrindo bem a já mencionada temporada de caça ao conceito. Além de não identificar qualquer sintoma de sustentabilidade na ordem sócio-econômica atual, dominada pela ‘farmacopéia neoliberal’, Guimarães nega que existam sequer atores sociais ‘portadores da sustentabilidade’. Ele faz críticas profundas — quase tão severas quanto às que dedica ao neoliberalismo — ao ainda jovem conceito de desenvolvimento sustentável, ressaltando que a literatura já registra mais de cem definições em pouco mais de dez anos. O conceito aparece para Guimarães como uma jovem hidra de cem cabeças e que merece críticas impiedosas desde o berço, e quase todos os demais autores publicados na coletânea fazem o mesmo.
Guimarães afirma acertadamente que nem o mercado nem a regulação estatal são capazes de produzir os bens públicos característicos de uma sociedade ambientalmente sustentável, e propõe, um tanto utopicamente, que mercado e Estado sejam ‘destronados’ pelos ‘interesses da sociedade civil’. Os critérios de sustentabilidade ‘social’ que ele propõe mais se parecem com antigos programas socialistas (moderados) do que com uma agenda original. Os critérios de racionalidade no uso de recursos naturais realmente não são característicos das economias e dos valores produtivistas de hoje, mas quase todos fazem parte há bastante tempo de programas conservacionistas desenvolvidos por atores que já se mostraram capazes de produzir efeitos positivos no mundo atual. No entanto, o radicalismo da crítica de Guimarães não deixa espaço para a consideração desses atores, digamos, ‘proto-sustentabilistas’, ou ‘reformistas’. Para Guimarães, simplesmente não há ‘portadores’ da sustentabilidade no mundo como ele é.
Não obstante as críticas intransigentes que faz ao neoliberalismo, Guimarães as suaviza quando sugere, como parte de uma fórmula sustentabilista viável, a combinação de um Estado dotado de forte “capacidade reguladora e de planejamento estratégico” com um mercado responsável pelas “atividades de natureza estritamente produtiva ou de infra-estrutura”. Ora, isso seria endossado de bom grado por um neoliberal moderado. De outro lado, Guimarães vê na globalização grandes perigos para os países do ‘Sul’, mas ainda assim pensa que a América Latina deve integrar-se cada vez mais na ordem econômica mundial. O perigo apontado é que integração a um processo desigual de desenvolvimento sustentável venha a favorecer mais os países do ‘Norte’ do que os do ‘Sul’. Enfim, Guimarães deixa pouco espaço para otimismo sobre a sustentabilidade para os países do Sul e faz quase todas as críticas cabíveis — e algumas extremadas — à atual ordem industrialista-capitalista, antecipando muito do que os demais autores da coletânea têm a dizer sobre os dois lados da questão, sustentabilidade versus não-sustentabilidade, e sobre as ‘insustentabilidades inerentes’ ao capitalismo. A nostalgia de um improvável ‘socialismo sustentável’ perpassa o texto de Guimarães, como a maior parte dos outros incluídos na coletânea.
Contribuição igualmente estimulante e bem distinta vem do também cientista político Eduardo Viola, que combina de forma mais produtiva os temas da globalização e da sustentabilidade. Primeiro apresenta uma provocativa classificação dos países em função de características como tamanho do território e da população, dinamismo econômico, estrutura produtiva, governabilidade e integração mundial. No seu esquema, o Brasil emerge como um país “continental”, junto com Rússia, China e Índia, uma posição um tanto surpreendente, mas em favor da qual inteligentemente argumenta. A seguir, o autor define as 12 “dimensões de globalização” (militar, econômico-produtiva, científico-tecnológica, ecológico-ambiental etc.), que permitem identificar a eventual integração daqueles mesmos países uns com os outros ou com blocos.
Por último, Viola identifica os atores sociais que, dentro de cada país e/ou num conjunto deles, interferem no palco mundial das disputas e cooperações em torno do desenvolvimento — sustentável ou não. A esses atores não-estatais, ele dá o nome de “novas forças socio-políticas transnacionais”, cujas iniciativas competem com ou mesmo superam as dos Estados nacionais. A classificação de Viola gera agrupamentos inesperados como, por exemplo, os “nacionalistas progressistas” (Partido do Trabalhadores, no Brasil, e zapatistas, no México), ou mais conhecidos, como os “globalistas conservadores” (Cavallo, na Argentina, e Bush, nos Estados Unidos). Viola tem o mérito especial de articular variáveis ambientais a não-ambientais, pois sabe que de nada adianta classificar países e grupos exclusivamente por critérios ambientais, já que outras variáveis, tradicionais e novas, entram na definição das suas atitudes e dos seus comportamentos. O esquema de Viola também reorganiza de forma analiticamente estimulante os velhos ‘blocos’ e ‘coalizões’ (como ‘Terceiro Mundo’, ‘bloco socialista’) que ainda povoam a imaginação de boa parte da mídia e do senso comum, mesmo dez anos depois da queda ou reforma profunda dos regimes socialistas e dos conseqüentes realinhamentos da ordem internacional.
Carlos A. de Mattos, por sua vez, acrescenta uma dimensão importante às muitas críticas que a obra encerra ao conceito que lhe dá o título: “Paradoxalmente, foi no próprio seio do clima intelectual a-utópico da pós-modernidade que uma proposta de claras ressonâncias utópicas como o desenvolvimento sustentável começou a desenvolver-se e a ganhar espaço.” Alerta, assim, contra o utopismo do conceito, que em certos círculos ambientalistas tende a substituir as utopias socialistas desabadas ou em declínio. Em seguida, Mattos apresenta considerações bastante pragmáticas sobre a aplicabilidade do conceito como diretriz desenvolvimentista em territórios de alta, média e baixa ‘fertilidade’ , ou seja, diagnostica, nos diversos países, capacidades diferenciais de responder a políticas e práticas sustentabilistas. E conclui realisticamente que “é praticamente impossível aspirar a que as idéias do desenvolvimento sustentável se imponham com a mesma força em todos os lugares do planeta”. Assim, o critério de sustentabilidade não garantiria sequer um simulacro da igualdade tão cara aos utopistas-sustentabilistas.
Paul Claval inicia seu texto com novo ataque ao utopismo do conceito ao escrever: “O desenvolvimento sempre envolve … uma maior pressão sobre os recursos, já que conduz a padrões de consumo mais elevados: daí as dificuldades para assegurar o desenvolvimento sustentável.” Ou seja, qualquer desenvolvimento, inclusive o sustentável, aumenta as pressões sobre o ambiente natural, retirando do desenvolvimento sustentável o status utópico de um harmonioso ‘fim da história’, com rios de leite e barrancas de mel. Mas infelizmente o artigo de Claval envereda por um caminho bem distinto, pois o autor gasta a maior parte do seu texto para denunciar, num tom quase apocalíptico (na acepção de Umberto Eco), que as redes globalizadas de informação (Internet, TV, telefone, mas, curiosamente, não o rádio) provocam desordens ligada à perda de identidades étnicas, culturais e nacionais. Com visível ‘mal-estar’, aponta como prejuízos causados pela globalização fatos díspares como os jeans que jovens de todo o mundo adotam e a incidência de drogas e crimes. Nesses aspectos, Claval mostra-se ainda coerente com sua postura multiculturalista, mas chega à incoerência ao apontar fenômenos complexos como os nacionalismos e os fundamentalismos religiosos como outros tantos sintomas da mesma globalização. Ora, na verdade, são estas claras reações contrárias ou mesmo obstáculos à globalização e, portanto, provas de sua limitação (como bem mostra Samuel Huntington em seu livro Choque das civilizações). Claval acaba defendendo, no tom utópico que ele mesmo critica, “medidas de protecionismo cultural … que não sejam permanentes” para defender línguas, dialetos e culturas ameaçados pela suposta homogeneização pela via da globalização. A que propósito serviriam medidas temporárias? Para que serve o adiamento do fim de um dialeto? Claval pode ser um sustentabilista, mas não simpatiza com as mudanças globais que integram o contexto em que surgiu o próprio conceito de sustentabilidade.
Pelo menos um artigo destoa gritantemente no volume. É difícil dizer que conteúdo sustentabilista tem o texto de Hervé Théry, que explica em minúcias as vantagens e desvantagens da construção de uma moderna auto-estrada de cerca de duzentos km de extensão na França, entre Bordeaux e Pau. O texto fica isolado no volume. Já Bernard Bret discute um ponto de grande pertinência para o conceito de sustentabilidade dentro do contexto globalizado: o desenho territorial dos Estados nacionais (inclusive suas fronteiras marítimas e oceânicas),que é definido por fatores políticos, militares e culturais, e confere a cada um deles um repertório quase que necessariamente desigual de recursos naturais. Portanto, seus potenciais de sustentabilidade variam por força de fatores ‘exógenos’ à sua ecologia biofísica: “A partilha política do planeta cria compartimentos com potencial muito desigual, cada parte confiscando para o seu proveito o benefício de suas particularidades físicas.” Afirma o autor, infelizmente sem mostrar evidências, que isso tem contribuído para aumentar as desigualdades entre os povos e países. Provavelmente está certo, mas não se empenha em compartilhar com os leitores os dados que confirmam sua tese. Ao menos somos lembrados de que algo tão elementar quanto o perímetro dos Estados nacionais pode sabotar qualquer pretensão de sustentabilidade, e aprendemos que as diferenças espaciais podem reforçar as diferenças sociais para além de quaisquer programas sustentabilistas. Mais uma crítica ao conceito, portanto.
Jean-Pierre Leroy inicia seu artigo com umas três frases contundentes que bem poderiam ser a epígrafe do volume: “Há centenas de definições de sustentabilidade. Um conceito susceptível de tantas definições não é operacional. Ao adentrar-se a discussão do ‘desenvolvimento sustentável’, entra-se no campo ideológico-político, mesmo que embasado sobre uma reflexão científica.” Mais uma saraivada de golpes no conceito. Leroy interessa-se pela questão da escala da sustentabilidade. Ao contrário de outros autores que centram sua atenção no global, Leroy reflete sobre a viabilidade da comunidade local como o locus da sustentabilidade. E distingue as “comunidades de pertencimento”, nas quais existem identidades culturais associadas ao espaço compartilhado, das comunidades meramente ‘espaciais’, muitas por vezes divididas em grupos e classes fortemente diferenciados cuja ação leva à ‘paralisia’.
No entanto, Leroy acaba decidindo que “a ‘comunidade local’ … não nos parece ser o local mais adequado para pensar os desafios do desenvolvimento sustentável”. Para ele, é na ‘microrregião’ ou na ‘sub-região’, num grau de abstração imediatamente superior ao local, que “deságuam as iniciativas locais e parece-me possível desencadear dinâmicas realmente impactantes de desenvolvimento”. Mesmo nessa outra escala, porém, o autor adverte que de nada adianta construir “territórios de economia alternativa” desconectados de processos regionais e nacionais. Assim, além de haver pouca concordância sobre o conceito, há divergências sérias sobre a escala apropriada para o seu emprego adequado, tanto na análise quanto nas intervenções sustentabilistas. De toda forma, esse artigo é especialmente importante para quem pesquisa experiências ou redige propostas concretas de desenvolvimento sustentável, pois discute a própria viabilidade destas últimas em termos de sua escala geográfica e social.
Anthony Hall explora as relações e as eventuais complementaridades entre políticas governamentais de desenvolvimento na Amazônia brasileira, de um lado, e o desempenho de ONGs ambientalistas baseadas em comunidades locais, ou atuando em nome destas. O autor mostra diferenças importantes e pertinentes no que se refere aos efeitos ambientais das ações humanas no desempenho das organizações não governamentais, ou ONGs. Parece-me, contudo, equivocada a sua fé nos postulados educacionais de Paulo Freire e nos princípios da teologia da libertação como razões para o “fortalecimento de um espírito de responsabilidade coletiva entre os usuários de recursos naturais (da Amazônia)”, espírito este que evitaria a ‘tentação’ de lucros imediatos. Ora, sem bem-estar e sem renda, as populações mais pobres de todos os lugares são precisamente as que aplicam as maiores taxas de desconto ao valor dos recursos naturais, mesmo que careçam de tecnologia para depredá-los a curto prazo. As pregações anticapitalistas de Freire e dos teólogos da libertação em princípio contribuem mais para aprisionar populações pobres em ciclos de pobreza baseados na exploração extensiva de recursos naturais do que para gerar bem-estar e renda que eventualmente lhes permitam a ‘folga’ imprescindível para valorizar mais o futuro dos recursos — e as futuras gerações — e agir de forma mais sustentável. É fato bem estabelecido que pobreza e conservação de recursos naturais raramente andam juntas, mas Hall perde isso de vista. Porém, o autor lembra que os pobres podem agir de forma insustentável, o que é útil à coletânea, uma vez que, nos outros artigos do volume, geralmente são os países capitalistas e grupos sociais ricos apresentados como os ‘culpados’ pela insustentabilidade.
O texto de Philippe Lená trata de uma questão inteiramente distinta, de ordem epistemológica, e é especialmente desafiador para os cientistas sociais interessados em temas ambientais. Afirma este autor, com toda a razão, que a tendência dos cientistas sociais de explicar ‘o social pelo social’ é uma saída fácil e inadequada para o desafio de estudar sociedades humanas ancoradas nos seus contextos concretos de recursos naturais. Para Lená, recuar para o ‘sócio-centrismo’ nesse caso leva o cientista social a simplesmente dissolver seu objeto. Lembra o autor que é “bastante difícil encontrar uma preocupação ambiental” nos clássicos da sociologia, da ciência política da antropologia e que essas disciplinas pagam por isso até hoje. Ou seja, ousar é preciso, e ele considera que o conceito de desenvolvimento sustentável é um instrumento analítico capaz de estimular ousadias dos cientistas sociais. Lená teme tanto a prevalência de abordagens ‘deterministas’ (biológicas) quanto o ‘imobilismo’ de um “sociologismo fechado em si mesmo”. Propõe outros caminhos, que podem ser a “defesa do mundo vivido” (baseada em Habermas), ou um ‘ecomarxismo’ pouco definido. Tais caminhos parecem-me duvidosos, mas um autor pelo menos, dos que estão reunidos na coletânea, desenha um futuro positivo para o conceito de desenvolvimento sustentável.
Lená adverte ainda contra ‘derrapagens’ comuns nas análises sociológicas dos problemas ambientais, mencionando o “culturalismo extremo” que as leva a atribuir a alguns grupos, como indígenas, seringueiros ou camponeses, “uma relação particular com a natureza que se presume traduzir um comportamento ecológico natural e inato que a sociedade urbano-industrial deveria imitar”. Com razão, Lená qualifica essas entronizações como uma “versão moderna do mito do bom selvagem”. Critica também visões populistas das ‘comunidades’, construídas com apoio da teologia da libertação. Assim, de outro ângulo, Lená também critica o utopismo semi-embutido no conceito de desenvolvimento sustentável.
Assinalando um dos momentos mais importantes do livro, Lená recupera o valor das políticas governamentais mais amplas e da cidadania democrática, quando mostra o quanto as ONGs, independentemente de sua ideologia de promoção da cidadania e da sua eficácia, são por natureza setoriais: “A desqualificação do Estado e das instituições representativas (coloca) um certo número de problemas. A ação do Estado irriga, em princípio, a totalidade do corpo social segundo um princípio igualitário independente da qualidade dos indivíduos beneficiados. Ora, a ação pontual, por definição não-generalizável, das ONGs (e dos projetos de desenvolvimento, funcionando de modo similar) tende a introduzir a diferenciação sócio-espacial sobre bases mal definidas, flutuantes, assim como novas formas de dependência ‘quase pessoais’ e clientelistas.”
Dessa forma, o princípio sustentabilista da eqüidade tende a ficar prejudicado se a atuação necessariamente seletiva ou focalizada das ONGs (ou de comunidades dotadas de relações “especiais” com a natureza), dentro e fora do campo estritamente ambiental, prevalecer sobre políticas governamentais voltadas para todos os cidadãos. Essa observação, a meu ver, relativiza qualquer crença, analítica ou ideológica, nas ONGs ou nas comunidades como atores únicos ou mesmo privilegiados da cidadania. Se elas não se combinarem com políticas e instituições de maior capilaridade social, podem — independentemente de suas boas intenções — tornar-se instrumentos ou bases de ganhos setoriais para grupos limitados. Embora nada haja de ilegítimo nisso, a verdade é que a ciência política há décadas trata da política e dos grupos de interesse, e o desenvolvimento sustentável é um conceito que pertence a um campo de análise bem distinto.
A falta de espaço não permite apreciar as outras contribuições. A coletânea tem virtudes, mas é insatisfatória, dados o nível e a variedade da formação dos participantes e o próprio tema. Não adianta chorar sobre o leite derramado, mas vale lembrar que um maior número de textos com achados originais de pesquisa traria densidade e uma direção mais produtiva às muitas críticas conceituais contidas na coletânea. Talvez o seminário que lhe deu origem não tenha solicitado textos de pesquisa aos participantes. Nenhum problema há nisso, mas o resultado literário dessa decisão é uma coletânea um tanto descosturada de textos de discussão conceitual.
Para quem nada leu sobre o conceito, a coletânea é por demais avançada, pois os textos são de autores de ponta, que vêm trabalhando com o conceito há algum tempo já. Definitivamente não é um livro para principiantes. Por outro lado, para quem conhece ou trabalha com o conceito, as divergências e os debates são excessivamente ralos, pois não estão adequadamente ancorados em dados, hipóteses e testes. Curiosamente, portanto, o livro fica a meio caminho entre leitores informados e leitores novatos; decerto interessará mais aos que gostam de debates doutrinários.
No fim das contas, talvez o conceito de desenvolvimento sustentável seja em si mesmo inadequado para costurar um volume de textos de cientistas, ou mesmo um simpósio científico. Da leitura do conjunto dos textos fica a impressão um tanto intrigante de que o conceito, tão jovem e tão criticado, de nada serve. A julgar por esse volume, ao menos, ele tem dinamismo para gerar reflexões, opiniões e julgamentos de valor, mas não parece capaz de incentivar pesquisas, achados e conclusões.
Resenhista
José Augusto Drummond – Professor do Departamento de Ciência Política, Universidade Federal Fluminense.
Referências desta Resenha
BECKER Bertha K.; MIRANDA, Mariana. (Orgs.). A geografia política do desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. Resenha de: DRUMMOND, José Augusto. Desenvolvimento sustentável: debates em torno de um conceito problemático. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.5, n.3, nov. 1998/fev. 1999.Acessar publicação original [DR]