O livro que temos em mãos, resultado de tese de doutorado defendida na UFRJ, é uma bem-vinda contribuição que interessará especialmente aos estudiosos da história da Amazônia e da fotografia brasileira. Seu autor, Andreas Valentin, persegue, desde uma abordagem da história social, os feitos de George Huebner. Tal era um exímio fotógrafo alemão que, nos últimos anos do século XIX, estabeleceu-se em Manaus, legando importante conjunto de imagens da Amazônia da era da borracha.
Antes de falar mais do fotógrafo, Valentin prepara o terreno, fornecendo elementos que contribuem para uma avaliação minuciosa da atuação de Huebner. O autor demonstra como na cidade natal desse personagem, Dresden, estabeleceu-se uma sólida indústria da fotografia. Tais empresas desenvolveram desde muito cedo atividades de ensino e pesquisa, estimulando assim a formação de profissionais e o aperfeiçoamento dos artefatos. De modo concomitante à popularização da imagem fotossensível, um grande número de fotógrafos partiu para todos os cantos do mundo, propagando assim retratos e vistas de povos e locais os mais longínquos da Europa. Desde a consolidação do Estado alemão os profissionais daquele país se lançaram à captura dessas imagens. As técnicas fotométricas – relacionadas intimamente à mentalidade racista, ao domínio colonial, e à formação de uma ciência nascente, a etnologia – foram a linguagem corrente na constituição dos retratos desses outros. Os de Huebner cujo foco é a população ameríndia que encontrou na Amazônia não escapariam, na maior parte das vezes, desse tipo de enquadramento.
O começo do estudo contempla ainda um panorama da região do norte brasileiro do meio do século XIX em diante. Em 1850, o Amazonas foi elevado à categoria de província e, nas décadas seguintes, viu abrir seus rios a embarcações de qualquer nacionalidade. As inovações tecnológicas da época marcariam logo a paisagem: o transporte a vapor estreava trazendo cientistas e artistas europeus – subvencionados pelo mecenato de D. Pedro II – cuja missão era construir uma nova imagem dos rincões do Brasil. Mas, se isso tudo é fato e teve lá seu impacto, foi a formação da teia extrativista da borracha que garantiu a entrada da Amazônia na modernidade. A goma ganhou espaço na Europa depois que esse material tornou-se matéria-prima para um sem número de produtos industriais.
Na Amazônia, os resultados do sucesso da borracha no mercado internacional são inúmeros. Podemos destacar a formação de uma nova elite – donos de seringais, comerciantes exportadores de produtos extrativistas e importadores de produtos industriais – ávida por um modo de vida que denotasse civilização. Nesse bojo que, no final da década, Manaus sofreu intenso processo de reforma urbana: a nova cidade foi cantada em verso e prosa pelos intelectuais da época, que destacavam seu novo traçado urbano e serviços como os de bonde, telefone e eletricidade. Foi essa a capital amazonense que Huebner conheceu e, posteriormente, se estabeleceu como profissional do Photographia Allemã.
Feitas essas considerações, Andreas Valentin centra o foco na atuação de Huebner na Amazônia. Os poucos rastros da vida desse personagem antes de sua primeira empreitada na região demonstram a sua relação com sociedades científicas, que o muniram do propósito de formar uma coleção de imagens como um instrumento preciso para o avanço do conhecimento. A primeira incursão do fotógrafo na América do Sul ocorreu entre 1885 e 1891. Percorreu a calha do Amazonas até Iquitos, e de lá até o alto Ucayali, local em que se associou, por um ano e meio, a um seringalista alemão. Em seguida, participou de uma expedição de três anos pelo território daquele país. O resultado das andanças foi um acúmulo de conhecimento sobre a região e os povos nativos que a habitavam, corporificado em centenas de fotografias.
Em seu retorno à terra natal, Huebner proferiu conferências e publicou artigos sobre sua experiência na América do Sul. Sua inserção numa rede de geógrafos, etnógrafos e outros cientistas o levou, em 1894, a uma segunda incursão pela Amazônia. Dessa vez, sua missão era coletar orquídeas raras no Alto Orinoco, região alcançada através dos rios Negro e Branco. Após oito meses de viagem pela região, Huebner permaneceu um tempo em Manaus, onde tomou contato com a colônia alemã e a elite econômica da cidade. Em 1896, o fotógrafo retornou a Dresden com uma série de imagens dos locais que passou e dos indígenas que neles habitavam. Não se sabe bem o porquê, mas o viajante não se demorou muito na Alemanha. No ano seguinte, voltou à Amazônia, e dessa vez definitivamente: fixou-se em Manaus e nessa cidade passou a trabalhar como fotógrafo.
A vida de Huebner como empreendedor na Amazônia foi movimentada. Os negócios foram certamente beneficiados pelo fato de o fotógrafo compor a colônia alemã em Manaus, que agrupava diversos profissionais liberais e, especialmente, os mais destacados exportadores de borracha para a Europa. Huebner estabeleceu-se primeiramente no hotel Cassina. Em 1899, mudou-se para estúdio próprio, já denominado Photographia Allemã. Três anos depois, associouse a Libânio do Amaral – professor na Academia de Belas Artes de Manaus – e mudou-se para a Avenida Eduardo Ribeiro, o ponto comercial mais nobre da cidade. Pelas salas do ateliê passou toda a elite manauara de então, buscando ser retratada pelo fotógrafo.
O fotógrafo destacou-se, porém, pela versatilidade. Huebner vendia produtos para outros profissionais do ramo e produziu muitas imagens externas – especialidade destacada na divulgação de seus serviços – para importante clientela. O Estado do Amazonas o contratou diversas vezes para a produção de álbuns oficiais, bem como as companhias de serviços urbanos, de navegação, de importação e exportação. O fotógrafo produziu por conta própria álbuns como o Vistas do Pará e O Valle do Rio Branco, bem como séries de cartões-postais com paisagens de Manaus, de igarapés do entorno e de interiores, como seringais dos rios Juruá e Javari. Huebner fez questão, ainda, de documentar indígenas de grupos diversos – legando importante conjunto a respeito – que se deparava em suas viagens ou que, por motivos vários, encontravam-se em Manaus. O reconhecimento pela qualidade de suas fotografias foi amplo: em 1908, Huebner recebeu medalha de ouro na Exposição Nacional do Rio de Janeiro e, dois anos depois, a mesma distinção foi concedida no Congresso Comercial, Industrial e Agrícola reunido em Manaus.
Os negócios iam muito bem, de tal modo que Huebner e Amaral chegaram a manter filial do estúdio em Belém, entre 1906 e 1910. A segunda década do século XX, contudo, chegou com o fim da riqueza da borracha no Brasil. Nesse período as plantações de seringueiras no sudeste asiático, levadas a cabo pelos ingleses, permitiram um produto de maior qualidade e mais barato que o amazônico. Mesmo com o mercado visivelmente em crise, os sócios persistiram no ramo até 1919, quando passaram a empresa para frente.
Sem o estúdio, Huebner passou a dedicar-se exclusivamente à pesquisa, coleta e plantio de espécies da flora amazônica. Em 1918, o fotógrafo adquiriu um sítio localizado em frente a Manaus, onde pôde cultivar as espécies coletadas em pontos mais distantes dali, em Coari, Tefé, São Gabriel da Cachoeira ou Tarauacá. As plantas eram endereçadas particularmente ao Jardim e Museu Botânico de Berlim.
O fato é que, mesmo que a fotografia tenha sido durante um bom tempo seu principal sustento, Huebner nunca deixou de colaborar com as instituições científicas europeias. Apresentava-se sempre como “membro correspondente da Sociedade de Geografia de Dresden”; foi importante colaborador, por anos a fio, do grande etnólogo Theodor Koch-Grünberg; e passou seu período amazônico inteiro encaminhando para os museus botânicos europeus plantas nativas da Amazônia. A dedicação de Huebner à flora da região que escolheu viver rendeu importante homenagem por parte de seus pares: um gênero de orquídeas é batizado com o nome do fotógrafo, Huebneria.
Cartas, diários, escritos comerciais, fotografias e periódicos, coligidos de arquivos brasileiros, suíços e alemães, conformam a ampla documentação utilizada por Andreas Valentin para traçar o perfil desse fotógrafo, aqui esboçado em grandes linhas. Com esse esforço, o autor o conduz a uma espécie de panteão dos pioneiros desse ofício no país. Isso não é de pouca monta. Marcar Huebner nesse grupo em que figuram, dentre outros, Marc Ferrez, Militão Augusto de Azevedo ou Augusto Stahl é menos um exercício de consagração que remonta a uma história em busca de heróis, e sim um reconhecimento de que os fotógrafos compõem um grupo que imagina nações de modo muito específico: por meio de representações visuais. Huebner produziu retratos e vistas de grande eficácia – com poder de atribuir valor a coisas e pessoas – através do manejo excepcional de seus apetrechos, desenvolvidos segundo os preceitos das ciências modernas. Assim, pôde recriar simbolicamente uma região rica por sua natureza, seus naturais e seu desenvolvimento econômico pujante.
Resenhista
Íris Morais Araújo – Doutoranda em Antropologia Social Universidade de São Paulo. E-mail: irisaraujo80@yahoo.com.br
Referências desta resenha
VALENTIN, Andreas. A fotografia amazônica de George Huebner. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2012. Resenha de: ARAÚJO, Íris Morais Temporalidades. Belo Horizonte, v.6, n.1, p.194-197, jan./abr. 2014. Acessar publicação original [DR]
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