BUZZI, Arcângelo R. A filosofia e o cuidado da vida. Petrópolis: Vozes, 2014. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 1, p. 181-186, jan/abr, 2017.
A linguagem utilizada na obra não pretende esgotar o significado do que seja esse tal cuidado da vida, já anunciado no título, mas antes fazer notar a relevância de tal tema para a elaboração da própria tarefa fundamental do pensamento – pensar a vida –, também expressa no título sob o nome de filosofia. Nesse sentido, Buzzi não conceitua propriamente nem o que seja cuidado e nem o que seja filosofia, mas convida o leitor a traçar um caminho no qual ambos os termos estão conjugados. O modo de utilizar a linguagem, então, é fundamental, pois se trata de indicar sem determinar.
Além disso, a maneira simples com que são colocadas as palavras e as citações permite uma intimidade com a obra, realizando, de fato, a proposta de viabilizar um caminho. Engana-se, porém, o leitor que acreditar que na obra há uma linguagem simplista: a simplicidade da obra está em sua essencial preocupação com o fundamental de cada questão levantada, sendo o autor, dessa forma, objetivo e preciso em suas assertivas. Além do mais, o próprio autor se utiliza de grandes expoentes do pensamento, mostrando-os como vias possíveis para pensar os vários desdobramentos do cuidado da vida. Não há equívoco em afirmar: a obra serve tanto para aqueles que já são iniciados nessa dinâmica própria do filosofar quanto para introduzir, nessa tarefa, tantos outros que dela se aproximarem. Por isso, pode-se dizer que o autor é capaz de continuar um caminho, pois escreve àqueles que já estão inseridos na própria filosofia, bem como é capaz de convidar a esse caminho, viabilizando-o pela linguagem simples, fundamental e, acima de tudo, por permitir ao próprio leitor a tarefa de pensar.
Outros dois elementos singulares a serem destacados sobre o conjunto da obra são: 1) a pluralidade de autores utilizados; e 2) as epígrafes no início de cada capítulo, exceção feita somente ao nono.
O conjunto de autores utilizados por Buzzi indicam duas situações interessantes: a primeira delas é: a tarefa de pensar o cuidado da vida também se realiza com o auxílio de outros expoentes do pensamento humano; a segunda: o cuidado da vida precisa ser, necessariamente, abordado pelo pensamento humano, pois todas as elaborações – concretas e abstratas, conceituais e materiais, científicas ou não – acontecem a partir da vida humana. Com isso, Buzzi inicia a construção de um alerta que perpassa toda a obra: pode ser que a vida, em sua corporeidade – o que também inclui o aspecto racional – tenha sido esquecida e substituída somente pelo aspecto racional, isto é, pelas ciências da razão. Diante disso, os autores citados não são somente fontes teóricas para embasar algumas afirmações, eles são, na verdade, indicações para o próprio leitor continuar a principal tarefa assumida pela obra: dar a pensar.
O outro elemento – as epígrafes no início dos capítulos – também permite uma dupla tarefa: a primeira é lê-las e perceber qual é a perspectiva tomada pelo autor na abordagem da problemática específica do capítulo. Por isso, a epígrafe adianta a própria interpretação do texto; a segunda tarefa é, terminada a leitura do capítulo, regressar ao início e perceber a intenção da epígrafe ao ser anunciada, isto é, antecipar a interpretação, ela convoca o leitor à sempre fundamental tarefa de regressar ao início e perceber que ali o pensamento vem às vias de fato.
A epígrafe, então, convoca, ou seja, chama o leitor para junto de si, tornando viável a continuidade do caminho. Após essas considerações gerais, apresenta-se a estrutura da obra: uma Introdução seguida de dez capítulos, nos quais sempre uma problemática é articulada ao cuidado da vida, e, ao final, uma Conclusão. Esta resenha mostra, a seguir, o principal desdobramento de cada capítulo, evidenciando a sua contribuição para a efetivação de um caminho no qual filosofia e cuidado da vida estejam articulados.
A Introdução traz de imediato: o cuidado é pré-ocupação, por isso, não é preciso – e nem possível – ocupar-se com o cuidado, pois, em todo ocupar-se, já há cuidado. Isso orienta todas as construções vindouras.
O primeiro capítulo – O senso pré-científico no cuidado da vida – faz um convite em suas entrelinhas: “dar um passo atrás” e perceber que a dimensão científica – as ciências da razão – estão fundadas num senso pré-científico, evidenciando, assim, a importância do regresso ao mundo das coisas – expressão fundamental ao longo de toda a obra, significando essa realidade que circunda o ser humano. O que se percebe aqui não é um apelo anticientífico; trata-se, na verdade, de um convite para perceber que a vida é anterior à ciência, donde o cuidado com a vida é, de fato, pré-científico. É possível, desse modo, a ressignificação da própria ciência.
O principal problema é que a dimensão científica se encontra acima da própria vida. O segundo capítulo – As instituições no cuidado da vida – mantém um tênue elo com o primeiro: a era da cientificidade corrompe as instituições sociais. Desse modo, necessita-se de uma ressignificação tanto da ciência quanto das instituições. Compreende-se isso a partir da importância dada pelo autor às instituições sociais, pois “a sociedade nunca deixa ninguém viver ao léu, está sempre no cuidado de seus membros”. (BUZZI, 2014, p. 23). Por isso, o segundo capítulo segue um caminho interessante: começa por elogiar as instituições como salvaguardas do cuidado mútuo, isto é, por serem responsáveis por distribuir, de maneira equitativa, o cuidado a todos e, em seguida, mostra a era da indústria e do capital como principal problema a ser combatido, pois transforma tudo, inclusive o ser humano, em objeto, ou melhor, em mercadoria. O propósito inicial da instituição é abandonado e trocado pelo interesse do capital especulativo: o interesse pelo próximo não é mais ético, mas puramente estético – viabilizado majoritariamente pelas redes online.
O terceiro capítulo – A percepção no cuidado da vida – funciona como ponto de chegada-partida: o propósito é viabilizar uma ressignificação plausível para os problemas apontados anteriormente – ponto de chegada – e, ao mesmo tempo, apontar para qual das abordagens será priorizada pelo autor nos capítulos posteriores – ponto de partida.
Há aqui um evidente exercício filosófico, capaz de conduzir o leitor “às coisas mesmas” – tal qual o lema da fenomenologia. Esse exercício possui uma finalidade bem-direcionada: despertar a consciência para a prática do cuidado. A intenção do autor, então, é mostrar que, de fato, antes do saber há o cuidado, e que todo comportamento é caracterizado, essencialmente, por esse ato de acurar. O cuidar (acurar) torna o ser humano um presente à própria vida: tanto mais vivo quanto mais acurado. E nas palavras do próprio Buzzi: “Quanto mais sujeitos corporificados, tanto mais e melhor nos sentimos situados dentro do mundo, no tempo e [em] lugar específico, na graça das coisas ou de uma só coisa”. (2014, p. 37).
Essa percepção de Buzzi é levada adiante no quarto capítulo – O desejo no cuidado da vida –. Deve-se ficar atento desde o início para o seguinte: esse desejo não é direcionado a um objeto. Na verdade, o desejo direcionado a um objeto já mostra uma transfiguração do próprio ato de desejar. O desejo próprio da vida é, de acordo com o autor, ir às coisas mesmas. Além do mais, o desejo provoca uma inquietação, pois é movido pela sensação de ausência. Essa inquietação, porém, não é desorientadora, mas libertária, pois possibilita à vida ser ela mesma. Por isso, a principal conclusão do capítulo é que o desejo deve conduzir o ser humano ao cuidado da vida, libertando-se para vivê-la, de fato, no ato de acurar. A potencialidade libertadora do desejo faz com que o vivente perceba o real, a beleza do instante e, nesse admirar, irrompa o infinito.
Isso permite a ligação com o quinto capítulo – A boa vontade no cuidado da vida –, no qual entrelaçam-se três temas: liberdade, oração e boa vontade. Após uma breve retomada do fato de as ciências da razão terem se sobreposto à vida, Buzzi afirma a importância da liberdade humana: ela permite autonomia para a realização das vontades. Além disso, a humanidade sempre admirou o conhecimento capaz de potencializar o poder da vontade. O problema foi a inversão acontecida.
Com isso, a dimensão da oração entra em pauta, não como oração institucionalizada ou devocional, mas como um “mergulhar no profundo silêncio no qual repousam todas as coisas”. (2014, p. 55). Aquele que ora é capaz de desprender-se totalmente de um querer saber ou possuir.
O ato de orar, conforme indica o autor, incide, necessariamente, num radical encontro com a própria vida. Aqui está, novamente, o cuidado como ponto fundamental. Por isso, do ato de orar nasce a boa vontade não como “querer-possuir”, mas como liberdade de encontro com a própria terra. Aqui Buzzi traz a figura de Francisco de Assis como exemplo.
Na continuidade, o capítulo – A faculdade imaginativa no cuidado da vida – tem dois ápices: um logo na epígrafe inicial de Kant e o outro no final, na citação de Nietzsche, afirmando que o homem é uma ponte, “um perigoso para além”. Para perceber isso, no entanto, é preciso compreender o seguinte: a imaginação é abordada por Buzzi em dois aspectos, sendo o primeiro como possibilidade de fuga para o mundo das máquinas, das imagens digitais, e o segundo como possibilidade de resgatar o homem desse mundo das imagens digitais, pois que tangencia a realidade. A faculdade imaginativa, então, é tanto fuga quanto resgate; e isso é de fundamental compreensão para o andamento da obra.
O sétimo capítulo – A luz do pensamento no cuidado da vida – pode ser considerado o principal momento do texto, mediante a perspectiva apontada por esta resenha de que a obra “dá a pensar”. Evidencia-se um exercício de pensamento proposto pelo autor a partir da análise da rosácea presente na Catedral de Saint Denis, em Paris. O capítulo traz duas perspectivas interessantes: o ver e o pensar. O ver humaniza. O pensar diviniza. A tarefa do pensar impele o ser humano ao medium das coisas, e essas, por sua vez, são percebidas pelos olhos e pelo pensamento, estando na luz. Destaca-se, ainda, o sentido figurativo do termo luz: aquilo que faz aparecer, que torna manifesto, que possibilita revelar. A luz, nesse sentido, possui uma íntima ligação com a verdade – isso, porém, fica guardado nas entrelinhas do texto.
O sentido da luz é levado adiante no oitavo capítulo – A luz da fé cristã no cuidado da vida –. A fé cristã é uma possibilidade de compreensão da luz como manifestação, como des-ocultamento, como revelação. Em momento algum, o autor fala que somente a fé cristã é portadora dessa luz. Além disso, a fé, como luz, é tratada como sobressalto, o que não significa uma fuga deste mundo, mas, antes, a radical entrega a essa realidade. A fé é capaz de conduzir o homem e fazer com que ele se encontre consigo mesmo, despertando novamente o cuidado. Esse cuidado com o si mesmo conduz adiante, de modo que o crente zela pela própria fé e pela existência dos outros, semelhantes na diferença. No caso da fé cristã, a cruz deve ser percebida como esse sobressalto, donde a conclusão: “Deus e homem são diferentes, mas o divino e o humano são um na mútua compaixão, no mútuo amor”. (2014, p. 82).
Essa perspectiva cristã é percebida também no nono e no décimo capítulos. O nono – A consciência no cuidado da vida – traz três caracterizações a respeito de seu tema central, a consciência: a primeira caracterização dada à consciência é aquela provinda da tradição judaico-cristã, indicando-a como “consciência de responsabilidade”; a segunda destaca que a consciência é sempre transcendente, ou seja, sempre está indo em direção àquilo que ela não é, por isso esse transcender não é no sentido religioso, mas filosófico; a terceira característica impele o ser consciente ao cuidado da vida, pois as coisas passam a ser percebidas em sua simplicidade. A percepção – tema recorrente em todos os capítulos –, então, não é outro modo de ver a realidade. O problema é que o próprio ser humano se esqueceu desse modo fundamental, priorizando as ciências da razão. Trata-se, mais uma vez, de ressignificar a importância das ciências da razão e o seu caráter derivado. A conclusão do capítulo liga-o ao anterior e ao seguinte.
O último capítulo – A prece do Pai-Nosso no cuidado da vida – elege a oração indicada no título como exemplo de entrega ao entendimento exposto anteriormente do que seja orar. Buzzi reafirma, nesse sentido, que orar é uma atitude própria do ser humano. Além disso, pode-se dizer que tal atitude independe de uma religião institucional, pois orar é entregar-se à vida. Logo, Jesus Cristo é tomado como modelo de oração: ele foi capaz de entregar-se plenamente à vida. Justamente por isso, a atitude de orar não está diretamente ligada a regras, normas e nem necessariamente a palavras. Merece atenção, de novo, o caminho proposto por Buzzi: fazer com que o ser humano enraíze-se cada vez mais na própria vida que é a sua.
A Conclusão prioriza a ideia de autonomia: o modo próprio de cuidar da vida. Essa autonomia, porém, não é no sentido individualista, mas essencialmente relacional. O autor mostra isso a partir da raiz da palavra: auto – movimento de erguer a si mesmo – e nomos – a norma, no sentido de administrar, habitar, cultivar. Disso decorre a passagem: “A autonomia no cuidado da vida significa, pois, que cada ser humano, estando na distensão da vida, participa e partilha da vida onde quer que ela se distenda, em toda diferença”. (2014, p. 111).
Ao final da obra, da qual se recomenda a leitura, o leitor se percebe envolvido nesse caminho e, quiçá, desperto para esse cuidado da vida, não teorizado por Buzzi, mas apresentado na própria dimensão filosófica da vida.
Luís Gabriel Provinciatto – Graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e, atualmente, mestrando em Ciências da Religião pela mesma instituição com bolsa de fomento CAPES. E-mail: lgprovinciatto@hotmail.com
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